O Menino sem rosto da Rua 59

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Resenha do novo livro de Nelceu Alberto Zanatta, O Menino Sem Rosto, que provoca a reflexão sobre a importância de contar e ouvir histórias, desde cedo, para a formação de uma consciência que realmente enxerga, além dos olhos.

Quando Davi entrou no pátio foi assustador.  Estava na porta que dá para os fundos da casa; e sei lá em que casa estávamos.

Mas Davi não subiu a escada e parou junto ao seu canto, em seu primeiro degrau. Tentei sair correndo pela outra porta, achando se tratar de um presságio.  Pedi para sair pelos fundos, por onde todas as pessoas sem rumo saem um dia, mas não tive teve como não olhar. Como não estava a sós, falei a ela:

_Vamos embora daqui pois alguém chegou à porta.

_Mas é só um menino, não deve ter muito a querer.  Damos uma fruta qualquer e ele se irá, ouvi.  O que pode querer um menino em um pátio esquecido de uma casa abandonada?

Então resolvi ficar e o observei de longe, com a eterna desconfiança de um adulto frente a uma criança.

Por que será que os adultos desconfiam?  Eles sabem mentir muito bem, mas crianças ainda não aprenderam. Fica desigual este encontro.

_Não tenha medo de mim senhor, sou apenas um menino, falou. Quanta sabedoria para um garotinho, pensei? 

_O que posso fazer mal, falou. Deve haver uma criança dentro de você, e caso não me aceitares, posso ficar amigo dela somente. Teremos todo o tempo, de todos os dias e anos para que você possa me aceitar.  Por enquanto, posso ir falando com seu menino oculto.

_Como pode falar estas coisas? Alguém ensinou a você tais palavras?

Minha voz sumiu, minha boca secou, minhas pernas e braços, já não as sentia. Mais próximo a mim do que eu mesmo, Davi deu um passo decisivo para que eu não entrasse em desespero.  E, então, aproximou-se, fazendo um pedido.

_Eu não o vejo senhor, apenas o sinto.  Não vejo nada, aliás, apenas ouço. Depois eu penso, depois eu falo.  O que aprendi foi ouvir, ouvir e ouvir.  E depois repetir.  O que eu falo é porque antes de mim, alguém falou.  Mas agora eu cansei! Preciso falar as minhas próprias palavras.

E o Davi se aproximou e pediu:

_Conte uma história pra mim?

Paralisado que estava, com os nervos contorcidos por tantas perguntas a responder, por não ter como não olhar, como não ver, apenas respondi;

_ o que você tem Davi?

É que o Davi não tinha rosto.

A sua cabeça a minha frente, como a de uma escultura que, com os anos, foi perdendo seus traços, o seu rosto era compacto e de uma forma só.  Como um homem que nunca sorriu, nada se via em sua face.

_Mas o que você faz aqui? Nesta casa abandonada?

_É que eu estava andando pela rua e vinha me batendo pelas casas quando ouvi vozes.  E fui entrando aos poucos.  Mas, mas, se esta casa está abandonada porque você mora nela?

_Bom, em não moro aqui e estava somente de passagem, respondi.  É que nós gostamos muito de coisas abandonadas, gostamos demais de coisas sem uso, sem valor algum e vamos nos agarrando a elas como que quem precisa de coisas velhas para manter as novas.

_Não entendi muito bem.  Eu não sei o que é uma coisa nova ou uma coisa velha.  Eu vivo a cada dia sem esperar que eu acorde amanhã. Como eu não vejo, não sei o que é velho e o que é novo.  Mas você pode me contar uma história?  Qualquer delas.  A minha Mãe, quando partiu, disse que eu era para ouvir muito, depois, ler muito, e que depois que eu fizesse tudo isso, aos poucos, começaria a ver.

_E quando a sua Mãe partiu?

_Agora.

Quando eu entrei neste portão ela seguiu. Ela me falou:  filho, entre por este portão porque eu vou seguir em frente.  Mas não sei o que é em frente. Acho que ela não vai muito longe porque nem sabe o que é seguir em frente. Ela não enxerga mais.

Fiquei no meio do caminho, sem avançar em minha fuga, sem atender o seu pedido, sem saber que a saída para o desconhecido, muitas vezes, é apenas ficar.

_Só queria uma história, senhor! Continuava ele.

_Não tenha medo senhor, porque não faria mal a ninguém.  Nem correr eu posso.  Aprendi a sentir cheiros e ver somente vultos a minha frente.  Que mal eu faria?

Tudo o que eu preciso é ouvir uma história.  Porque se eu ouvir eu vou enxergar.   Foi o que minha Mãe falava. Mas ela mesma nunca ouviu qualquer história.  Então não sabia contar.

Cansada de não enxergar, começou a andar e andar até bater neste portão. E eu junto.  Quando ela tropeçava, eu também tropeçava.

E estou andando a dias, sempre seguindo o cheiro de uma mata aqui próxima.  Quando sinto que estou me afastando volto aos poucos para a sua beirada.

_E eu finalmente entendi que mesmo próximo ao lugar em que queremos andar, ali mesmo poderemos nos perder.

_Ouvir! Minha Mãe falava, também é uma forma de enxergar.  Ouça muito meu filho, pois assim você poderá ver um dia.

Então eu saí de casa com este seu lembrete:  ouvir muito, com muita atenção e assim vou começando a ver.

_Mas e a sua Mãe, perguntei!

_Há, a minha Mãe eu a perdi pelo caminho.  Porque ela não enxergava também.  Então nós cansamos um do outro.  Eu até lembro que a sua voz foi se distanciando aos poucos, como que levada pelo vento e, aos poucos, fomos nos perdendo um ao outro.

Ela estará sempre comigo!  Mas cansamos de não ver nada.  Cansamos de ter um ao outro somente pela nossa voz, pois esbarrávamos dentro de casa, o tempo todo, ao dormir e ao acordar.  Um dia, acordei e resolvi partir.  Pois para quem não enxerga, tanto faz ficar ou partir pois na escuridão não há amanhecer.  Somente anoitecer.

_Mas pense bem.  Há muitos rostos por aí.  Você consegue ver alguns agora?

_Se você me contar uma história, acho que sim.

 Pelo menos um pouco. 

Tomei Davi em meus braços e contei a ele uma velha história.   …havia um Reino onde o Rei e sua corte proibiu livros e a sua leitura.  À noite, seus soldados passeavam pela cidade para roubar rostos…E a Vila sem livros, parecia sem vida, com a cor desbotada das cores sem vida dos sonhos que não querem ser revelados…  Assim, estes rostos apenas tinham um corpo que os levava a caminhar, dormir ou acordar, mas sem vida alguma.  Que diferença para o mundo fazem eles?

Aos poucos, Davi abria seus olhos e como um milagre em tempo real, seu véu de pele como que se descobria de seu rosto.

_Há, tem uma luz dentro de cada um.  Já nasce com a pessoa.  É uma luz muito intensa, brilha muito, mas quando o tempo vai passando ela se apaga aos poucos. Ouvindo, lendo, renascemos à luz.

_Olha aquele homem caminhando!  Há algo que brilhe em seu rosto?  Nada, não?  Pois é. Você quer tanto um rosto, mas pode se tornar como ele; sem luz alguma para emitir, sem nenhum raio para alcançar os outros, sem nada a brilhar e sem nada a refletir. Ele caminha para um grande buraco na rua, que, mais dia menos dia, vai engolir seu corpo e o seu rosto.

_Mas eu prefiro qualquer rosto a nenhum, respondeu o menino.

Você me falou que ajudaria e eu não vou mais sair do seu lado, porque a sua voz está me levando para algum lugar. 

_Eu não vou mais abandoná-lo até porque se eu não ajudar você sou eu quem perderá aos poucos o seu rosto.

Até porque nosso rosto é um rastro que Deus deixou sobre a Terra, qualquer coisa que o lembre, um pequeno fiapo divino que nos fala em como seria Deus, de fato.  Nele podemos encontrar as suas digitais. Porque não há rosto igual entre milhões. Mesmo assim, um mundo inteiro está caminhando agora em direção ao nada, porque de seus olhares, nada há o que esperar.

_Quando você tiver o seu rosto, você entenderá o que eu falo; ver uma criança sorrir é de Deus.  Não é daqui.  Ver uma pessoa sorrindo, ver um rosto feliz, nada é daqui.  Só pode ser de outro mundo.  E, ao ouvir muitas histórias, você aprenderá a olhar, certamente.

_Será que os rostos que não sorriem é porque ouviram as histórias erradas, perguntou?

Continua…

(Resenha do novo livro de Nelceu Alberto Zanatta, O Menino Sem Rosto, que provoca a reflexão sobre a importância de contar e ouvir histórias, desde cedo, para a formação de uma consciência que realmente enxerga, além dos olhos.)

Autor: Nelceu Zanatta. Também escreveu e publicou no site “Pedrinho pequeno e sua caminhada em busca de fé”: www.neipies.com/pedrinho-pequeno-e-sua-caminhada-em-busca-de-fe-uma-historia-fascinante-em-livro/

Edição: A. R.

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