Suspeito que este processo limitado e instrumental de mobilizar a educação por meio das mensurações, compromete e danifica a formação mais ampliada dos estudantes, pois não é capaz de mobilizar o desenvolvimento de capacidades mais amplas para uma vida democrática cidadã.
Nas últimas décadas tem sido frequente um discurso inflamado de que a educação pública não tem qualidade e que só irá melhorar se implantarmos processos de avaliação rigorosos, medições eficientes, aplicação de provas de larga escala, utilização de padrões internacionais de avaliação e adotarmos a lógica empresarial para gerenciar o funcionamento da escola. Ana, Prova Brasil, Enade, Saeb, Enem, Pisa são algumas das siglas e nomenclaturas que tem povoado as escolas e as redes de ensino nos últimos tempos, com o firme propósito de que mensuração torna-se o projeto condutor que levará a medir a “qualidade educativa” no Brasil.
Certamente, devem haver boas intenções e boas razões, embora os principais proponentes venham dos setores empresariais da educação que tem transformado educação num bem de consumo, numa mercadoria que pode ser ofertada, comprada e vendida por dinheiro. Suspeito que este processo limitado e instrumental de mobilizar a educação por meio das mensurações, compromete e danifica a formação mais ampliada dos estudantes, pois não é capaz de mobilizar o desenvolvimento de capacidades mais amplas para uma vida democrática cidadã.
Segundo a filósofa Martha Nussbaum (2012, p. 40), as capacidades são “um conjunto de habilidades inter-relacionadas para escolher e agir, desse modo, a capacidade vem a ser uma espécie de liberdade: a liberdade substantiva de alcançar combinações alternativas de funcionamento”. Em consonância com essa ideia, destaca-se a necessidade de preservar a independência e de assegurar a capacidade do indivíduo de manter o pensamento crítico que lhe permita avaliar a coerência daquilo que lhe é dito e conceber alternativas para tudo o que lhe é oferecido (Ibidem, 2014, p. 78).
Nussbaum (2012) questiona a questão das medições em educação a partir de duas questões: o que as pessoas são realmente capazes de ser e fazer? E quais são as reais oportunidades de escolha e ação que a sociedade lhes oferece? A partir desses questionamentos, a autora realça, por meio da teoria comparativa de qualidade de vida demonstrada pelo economista indiano ganhador do Prêmio Nobel em Economia em 1998, Amartya Sen, de que a heterogeneidade impossibilita a medição de oportunidades e capacidades.
Ao evidenciar tal impossibilidade de medição, Nussbaum critica as abordagens que mesclam todas as esferas da vida e as transformam em um único dado mensurável, como o Produto Interno Bruto (PIB). A partir dessa perspectiva, podemos pensar os formatos de avaliação em larga escala que tem sido ovacionados pelos empresários da educação e pela mídia alinhada ao neoliberalismo, tendo em vista que estas medições avaliam os indivíduos de forma reduzida, a partir dos resultados de uma única medida numérica. Essa medida, por sua vez, acaba por desconsiderar as capacidades mais ampliadas dos alunos e as desigualdades existentes no processo.
Não existe avaliação justa quando são ignoradas as desigualdades do processo.
Nessa perspectiva, Almeida (2020) chama a atenção para as diferentes realidades dos educandos, relacionadas às esferas culturais, sociais e econômicas. Tais realidades, por não serem igualmente justas, acabam por desnivelar as chances que os alunos têm de obter o desempenho almejado; “desse modo, torna-se insólito equiparar, de modo ilustrativo, um aluno de uma escola cujo foco é a formação moral ou crítica-social com aquele que tem um ensino tecnicista, voltado para a resolução das questões do Enem” (Almeida, 2020, p. 417). Em consonância, Nussbaum (2015) evidencia a importância de considerar dois aspectos: o indivíduo e a situação. Além de se considerar a situação do indivíduo, deve-se considerar as diferenças individuais, pois as experiências influenciam os aspectos psicológicos de cada um.
Nesse contexto, podemos refletir acerca das medições, na medida em que “o raciocínio crítico e a imaginação empática não podem ser mensurados por meio de testes quantitativos de múltipla escolha” (Nussbaum, 2015, p. 134). Esse método de mensuração acaba por não contemplar o que o indivíduo é capaz de ser e fazer. Por meio dos avanços do processo de aprendizagem, dispostos no método de autoavaliação (e não nos formatos de avaliações de larga escala), seria possível o desenvolvimento crítico-reflexivo do educando a partir de uma avaliação mais ampla e globalizada. Tal avaliação ampliada estaria pautada pela educação como forma de desvincular e perceber as relações de poder, emancipação humana e desalienação, avançando, assim, para a construção de um saber autônomo e humanizador.
As capacidades que Nussbaum (2012) propõe visam a uma educação humanizadora e sensível, por meio das artes e das humanidades, a qual seria capaz de nos libertar de uma educação mecanizada e padronizada cuja única finalidade é fazer com que os alunos tenham bom desempenho em avaliações. Essa educação humanizadora seria uma forma mais correta de mostrar o que cada um realmente é capaz de ser e fazer, indicando o quanto um educando é qualificado e se está apto a ingressar na educação superior, por exemplo.
Quando a avaliação fortemente induzida pelas medições numéricas de larga escala vão se tornando o critério de aferir “qualidade na educação”, temos um processo limitado de escolarização e de formação, pois produz uma semiformação (Adorno, 2000) e um processo tecnicista padronizado de formatação dos estudantes. Perde-se o ideal humanizador da formação, quando a escolarização sucumbe à demanda do mercado de trabalho e ao consumismo alienado, que exige cada vez mais treinamento, eficácia, eficiência, subserviência e ausência de pensamento crítico e reflexivo.
Esse modelo de mensuração de avaliação proposto evidencia o que Bachelard (1996, p. 261) denuncia ao dizer que “medir exatamente um objeto fugaz ou indeterminado, medir exatamente um objeto fixo e bem determinado com um instrumento grosseiro, são dois tipos de operação inúteis que a disciplina científica rejeita liminarmente”.
Dificilmente teremos uma escola pública melhor e mais justa se continuarmos apostando nas medições como projeto norteador da educação de qualidade e na falácia da meritocracia.
O pensador François Dubet (2004, p. 542) reconhece que “a concepção puramente meritocrática da justiça escolar se defronta com grandes dificuldades e, mesmo que aceitemos o princípio, fica claro que ele deve ser ponderado”. Ele mesmo observa que “a Sociologia da Educação mostra que a abertura de um espaço de competição escolar objetiva não elimina as desigualdades” (Dubet, 2004, p. 542), e aqui estão em jogo tanto as desigualdades entre as pessoas quanto as desigualdades entre os sexos e os grupos sociais, sendo que os mais favorecidos têm vantagens decisivas. É falacioso dizer que a igualdade de oportunidades para o acesso escolar elimina as desigualdades escolares.
Dubet (2004, p. 542) também ressalta que “uma igualdade de oportunidades meritocráticas pressupõe, para ser justo, uma oferta escolar perfeitamente igual e objetiva”. No entanto, o que se vê e o que quase todas as pesquisas mostram é que “a escola trata menos bem os alunos menos favorecidos”, isto é, as equipes de professores são menos estáveis, não há suporte familiar aos alunos e as atenções destinadas aos estudantes são diferentes.
Nas palavras do próprio Dubet (2004, p. 543): “quanto mais favorecido o meio do qual o aluno se origina maior sua probabilidade de ser um bom aluno, quanto mais ele for um bom aluno, maior será sua possibilidade de aceder a uma educação melhor”. Nesse sentido, há “uma certa crueldade do modelo meritocrático”, pois “os ‘vencidos’, os alunos que fracassam, não são mais vistos como vítimas de uma injustiça social e sim como responsáveis por seu próprio fracasso”.
Essa condição de assumir a responsabilidade pelo próprio fracasso possui efeitos perversos na autoestima dos alunos, fazendo-os muitas vezes renunciar à escola e abraçar a violência. Ao impedir que percebam que seu fracasso pode ser decorrente das desigualdades sociais e de um conjunto de outras variáveis, a meritocracia reforça as desigualdades.
Outro problema igualmente relevante do princípio meritocrático acorado nas medições implica um conjunto de problemas no âmbito pedagógico. Como ressalta Dubet (2004, p. 543), “o princípio meritocrático pressupõe que todos os envolvidos na mesma competição sejam submetidos às mesmas provas”. No entanto, quando a competição começa, imediatamente vêm à tona as diferenças; “os que são incapazes de continuar competindo” desanimam, sentem-se impotentes, despreparados e mesmo “desanimam seus professores”; assim, passam a ser deixados de lado, marginalizados e esquecidos. Ao final, o sistema meritocrático reforçou as desigualdades que já existiam, com a diferença de que agora a vitória dos vencedores foi merecida.
Dubet (2004, p. 544) finaliza suas reflexões levantando alguns questionamentos sobre a virtude e a própria ideia de mérito: “O mérito é outra coisa além da transformação da herança em virtude individual? Ele é outra coisa além de um modo de legitimar as desigualdades e o poder dos dirigentes?”. E, seguindo os passos de John Rawls, ainda questiona: “o mérito realmente existe?”, “pode ser medido objetivamente?”, “pode ser aplicado às crianças e até que idade?”; “Se não somos responsáveis por nosso nascimento, como sê-lo por nossos dons e aptidões?”. Esses são questionamentos profundos, instigantes, provocativos e oportunos que convergem com o pensamento de Nussbaum (2015, p. 135), a qual afirma que, “nos Estados Unidos, o exame nacional […] piorou as coisas, como normalmente acontece com os exames nacionais”. Tais dimensões são completamente ignoradas em exames padronizados. No entanto, seriam essas dimensões que possibilitariam, por exemplo, que as crianças e os jovens se dessem conta das desigualdades sociais, de que a narrativa meritocrática é cruel e ilusória, de que a vida escolar pode ser mais intensa e criativa do que uma simples preparação para a realização de exames padronizados. Infelizmente, no caso do Brasil, estamos indo na direção contrária dessa possibilidade.
Em suma, o sistema de medição na educação carrega em si diversas limitações por considerar que todas as pessoas possuem as mesmas oportunidades e por não levar em consideração a natureza particular de cada sujeito.
Nussbaum (2014) considera a relação entre as humanidades e as artes um importante pilar de uma formação para a cidadania. Por conseguinte, as políticas educacionais, segundo a filósofa, devem cultivar tais áreas para que a democracia sobreviva (Nussbaum, 2014). Dessa forma, uma educação humanizadora pautada nas capacidades deve incutir no educando o hábito de questionar-se, principalmente sobre suas crenças e o que lhe é imposto. É por meio da inquietude do perguntar-se que equívocos, preconceitos e injustiças serão evitados.
Ao refletir sobre suas práticas atuais, o sujeito consequentemente modificará suas práticas futuras, pois tal reflexão, além de proporcionar o autoexame, provoca também uma mudança de atitudes, uma tomada de consciência e a responsabilização pelos próprios atos. O indivíduo torna-se, então, responsável pela própria liberdade, pela defesa e promoção de uma sociedade democrática e pela construção das condições de construir um mundo comum de convivência.
Para os que desejarem ampliar as reflexões apresentadas neste breve texto, indico o artigo “Critica as medições em Educação à Luz da Teoria das capacidades: a meritocracia que reforça a desigualdade”, que escrevi em parceria com Thalia Leite de Faria e Julia Costa Oliveira, publicado na Revista Internacional de Educação Superior (Riesup).
Segue o link de acesso: https://www.researchgate.net/publication/357860769_Critica_as_Medicoes_em_Educacao_a_Luz_da_Teoria_das_Capacidades_A_Meritocracia_que_Reforca_a_Desigualdade
Referências:
ADORNO, Theodoro. Educação e emancipação. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz &Terra, 2000.
ALMEIDA, V. S. O Enem como instrumento de autoavaliação: um projeto não efetivado.
Revista Educação e Políticas em Debate – v. 9, n. 2, p. 407 – 420, mai./ago. 2020.
BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução Esteia Dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
DUBET, F. O que é uma escola justa? Cadernos de Pesquisa. v. 34, n° 123, p. 539-555, set/dez, 2004.
FÁVERO, Altair Alberto; OLIVEIRA, Julia Costa; FARIA, Thalia Leite de. Critica as medições em Educação à Luz da Teoria das capacidades: a meritocracia que reforça a desigualdade. Revista Internacional de Educação Superior (Riesup), Campinas/SP, v.8, 2022. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2446-94242022000100214
NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
NUSSBAUM, M. Educação e Justiça Social. Tradução de Graça Lami. Ramada: Pedago, 2014.
NUSSBAUM, M. Crear Capacidades: propuesta para el desarrollo humano. Barcelona: Paidós, 2012.
Autor: Dr. Altair Alberto Fávero – altairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF. Também escreveu a reflexão “A construção de uma pedagogia da autonomia”: https://www.neipies.com/a-construcao-de-uma-pedagogia-da-autonomia/
Edição: A. R.
Texto muito reflexivo…essas provas realmente tentam igualar os estudantes, o que não é real….temos muitas diferenças em uma sala de aula. Qual o objetivo?
Texto muito reflexivo…essas provas realmente tentam igualar os estudantes, o que não é real….temos muitas diferenças em uma sala de aula. Qual o objetivo real?