Reproduzimos, nesta Seção do site, entrevista com ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, concedida à Revista Radis número 259/abril 2024. Esta entrevista demonstra os desafios do Brasil para conciliar agenda econômica/de desenvolvimento com as questões emergentes do meio ambiente.
Filha dos seringais
Não foi fácil encontrar uma brecha na rotina da ministra. Marina não para. Da estiagem em Roraima às enchentes no Acre, de um encontro com jovens no Rio de Janeiro onde falou sobre justiça climática em tempos de transformações às reuniões em seu gabinete em Brasília para discutir o mercado de carbono e a transição para a economia verde. Sua fala é um percurso por todos os lugares por onde passa: Vale do Taquari, Brasileia, São Gabriel da Cachoeira, Curralinho. Nesse trajeto, ela nos convoca a todos.
Da pequena comunidade de Breu Velho, onde nasceu no Seringal Bagaço, em Rio Branco, ela guarda muitas histórias e a casinha em miniatura onde morou com a avó. “Para nunca esquecer de onde eu venho”. Aos 66 anos, mãe de quatro filhos, três vezes candidata à Presidência da República, Maria Osmarina da Silva Vaz de Lima — nome de batismo — está cada vez mais aguerrida.
Em 2023, durante uma reunião do G-20, indagou de forma direta: “Se esse grupo aqui tem a consciência do problema, porque tem acesso aos melhores estudos científicos, aos recursos financeiros e tecnológicos, o que está faltando para começar a fazer a diferença?”
Aqui, ela esboça uma resposta. Com a palavra, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Ministra, há 17 anos, a senhora esteve na capa de Radis e, já naquele momento, alertava para os efeitos do aquecimento global na vida das pessoas, em especial entre os mais vulnerabilizados. O que mudou de lá para cá?
Acho que a gente tem uma mudança paradoxal. A primeira delas é que ampliou a consciência. Há 17 anos, a gente falava dessas questões, mas não tinha a mesma reverberação que hoje tem. A gente não tinha a quantidade de meios de comunicação mostrando o problema, não tinha tantas pesquisas científicas. A outra questão é que também aumentaram os problemas. Ou seja, hoje, nós temos uma percepção muito maior porque a gente tem um agravamento da situação. Eu diria que teve uma ampliação da consciência em função de vários vetores, inclusive o vetor da dor e do sofrimento concreto. As pessoas perdem seus entes queridos, perdem suas casas, seu patrimônio, suas ruas, suas cidades — seja pela seca e pelo calor intenso, seja pelas cheias.
“A política ambiental tem que ser transversal.”
Ministra Marina Silva com professor, pesquisador, economista e ambientalista, Convidado deste site, Marcus Eduardo de Oliveira (https://www.neipies.com/author/marcus_oliveira/ )
Por outro lado, aumentou também o negacionismo?
Eu diria que, naquele momento [2007], a gente ainda não tinha um segmento organizado politicamente com uma quantidade significativa de gente fazendo uma militância negacionista em relação às mudanças do clima. Agora, a gente tem um contraponto também mais organizado nessa sociedade dividida. Naquela época, a gente era considerado um nicho, uma minoria, um segmento. Sempre repito: a gente era os ‘ecochatos’, os ‘ecoterroristas’, que ficavam falando de coisas que pareciam tão distantes. Ou seja, agora a gente tem os meios de comunicação, a própria sociedade e uma quantidade muito maior de pessoas relacionando essas questões e debatendo os efeitos das mudanças climáticas. Da parte do governo, se 20 anos atrás, a gente era um grupo pequeno, agora a gente tem o próprio presidente da República liderando essa agenda e dizendo que a política ambiental tem que ser transversal. Porque os problemas causados pelos danos ambientais são igualmente transversais em relação à saúde, às questões econômicas e à qualidade de vida das pessoas, até porque os mais afetados são sempre os mais vulnerabilizados.
Ondas de calor intensas, enchentes, eclosão de novas pandemias. Já estamos sentindo na pele, e de maneira irrestrita, as consequências da crise climática. A pergunta é: o que falta para que a pauta ambiental ganhe adesão total?
Sinto que hoje temos uma aderência incomparavelmente maior. Vou medindo pela minha trajetória de vida. Aos 17 anos, quando a gente começou essa luta, lá atrás com Chico Mendes [ambientalista, sindicalista e seringueiro, símbolo da preservação da Amazônia, assassinado em 1988], a gente era o gueto do gueto. Dentro do próprio campo progressista, a gente era uma minoria — inclusive, muito incompreendida. Diziam que, nessa luta ecológica, a gente era um jogo nas mãos do capitalismo americano para tentar frear a luta dos trabalhadores. Ou seja, tínhamos isso dentro do próprio espaço em que a gente gostaria muito de ser, pelo menos, acolhido. Eu diria que houve, sim, um aumento significativo de adesão entre os formadores de opinião e até em determinados setores de alguns nichos econômicos. Mas do ponto de vista do Congresso, por exemplo, infelizmente essa luta continua sendo minoria. Quando vamos para os temas ambientais, que são os temas de ponta do debate hoje no mundo — a disrupção tecnológica, a questão da mudança climática, o desafio de como as democracias continuarão vigorosas e dando respostas aos problemas da humanidade —, temos ali uma minoria de parlamentares identificados e comprometidos com essa agenda.
Que rumos esse debate tem tomado dentro do Congresso?
É sempre no caminho de retrocesso: como vamos flexibilizar licenciamento? Como vamos flexibilizar a questão em relação ao uso de agrotóxicos? Como vamos flexibilizar a demarcação de terra indígena? Como vamos conter a criação de unidades de conservação? É totalmente na contramão do que precisa ser acelerado.
E como garantir que a pauta ambiental e climática seja prioridade no governo, que em sua base de apoio também reúne setores contrários a essa agenda?
Dentro do governo hoje a mudança é muito grande. Dos 88 programas do PPA [Plano Plurianual], coordenado pela ministra [do Planejamento] Simone Tebet, 50 estão ligados à agenda ambiental e de sustentabilidade. O ministro [da Fazenda] Fernando Haddad está coordenando o Plano de Transformação Ecológica pensando em eixos estratégicos e já trabalhando nos processos de implementação desses eixos. Conseguimos, com a ajuda do Ministério da Fazenda, fazer com que o Fundo Clima, que era da ordem de 400 milhões de reais, passasse agora com os títulos verdes para cerca de 10 bilhões de reais para projetos de desenvolvimento sustentável na área de clima. O próprio PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] coloca a questão da sustentabilidade para que projetos muito complexos e com muita pressão política sejam logo reencaminhados para estudos. O ministro [da Casa Civil] Rui Costa encaminhou para estudos a Ferrogrão [Projeto de ferrovia para ligar o Pará ao Mato Grosso], a exploração de petróleo na margem equatorial e o projeto da [Usina Nuclear] Angra 3. Anteriormente, essas coisas iam direto para o PAC. Agora, está no PAC, mas não vai andar enquanto não vierem os estudos de viabilidade.
“Tem que cair a ficha de que aquele Brasil, com aquelas regularidades naturais que nós tínhamos, não existe mais. Então, vamos ter que acelerar o processo.”
Foto: Luan Martins
O que ainda falta?
Essa pergunta que vocês fazem é a mesma pergunta que fiz numa reunião do G-20: “Se esse grupo aqui tem a consciência do problema, porque tem acesso aos melhores estudos científicos, aos recursos financeiros e tecnológicos, o que está faltando para começar a fazer as coisas, já que 80% dos recursos financeiros do mundo, digamos assim, estão nas mãos dos 20 países mais ricos, e já que mais de 70% das emissões de CO2 estão sendo feitas por esses países mais ricos? O que está faltando para fazer a diferença?” Acho que tem uma complexidade objetiva, material. Como se perdeu muito tempo desde a Rio 92 [Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, popularmente conhecida como ECO-92] sem fazer o dever de casa, a gente chega ao momento que a mudança climática e os eventos extremos estão instalados, mas, por não ter sido preventivo fazendo o dever de casa progressivamente, você olha e diz: “Mas o que dá para fazer agora?” Agora, não tem mais uma resposta. Não se consegue mudar a matriz energética da noite para o dia. Ainda bem que o Brasil, ao longo desses anos, conseguiu ter uma matriz energética 43% limpa e uma matriz elétrica quase 90% limpa. Mas, mesmo assim, ainda tem espaço para mudança. E somos um país vulnerável porque dependemos de hidroeletricidade. Tem que cair a ficha de que aquele Brasil, com aquelas regularidades naturais que nós tínhamos, não existe mais. Vamos ter que acelerar o processo.
Como isso vai ser possível?
Eu acho que essa aceleração depende de vários esforços: os esforços globais e os esforços no âmbito dos estados nacionais. Nós estamos trabalhando nossas NTCs [Notas Técnicas Conjuntas] para que elas sejam ambiciosas; estamos trabalhando o Plano Clima [principal orientador para o Brasil manter o ritmo de redução no desmatamento e a transição para a economia de baixo carbono rumo à neutralidade climática]; nós temos cerca de nove ações na área de mitigação e 15 ações na área adaptação. A questão da adaptação é urgente, urgentíssima e, infelizmente, essa é uma agenda que foi sendo negligenciada não só no Brasil, mas no mundo. Não sei se é negligenciada, mas a gente falava muito de mitigação, mitigação, mitigação. Agora, a gente está vendo que há necessidade de adaptação, inclusive, do ponto de vista de pensar que novas doenças estão surgindo ou que estão se alastrando para regiões em que elas não existiam. Eu digo que a gente vai ter que se desadaptar. Ao mesmo tempo que a gente vai ter que se adaptar a uma nova realidade, vamos ter que nos desadaptar da velha realidade que tínhamos.
Eu fui no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, e falei assim: “Olha, infelizmente esse lugar aqui é um lugar vulnerável, esses eventos vão acontecer de novo”. E aí, uma pessoa dizia pra mim, resistindo: “Não, mas isso aqui aconteceu há 93 anos”. Talvez querendo dizer: “Vocês, ambientalistas, se aproveitam do problema”. Mas, infelizmente, as enchentes aconteceram três vezes só no ano de 2023. É uma pedagogia dura, difícil de lidar. A pessoa pensa: “Ah, mas a minha rua não vai mais existir? A minha casa não vai existir? A minha empresa não tem mais como ser aqui? A minha identidade com esse bairro, às vezes até com esse município, como fica?” Eu vi agora em Brasileia [cidade do Acre que registrou a maior cheia de sua história em fevereiro]. O município é terra arrasada. Já foram feitas várias reconstruções lá. Não tem como insistir para mudar uma realidade que, no ano que vem, vai acontecer de novo.
“Pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção ambiental estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento.”
Nesse cenário, há um ano e meio, a senhora assumiu mais uma vez o comando do Ministério do Meio Ambiente — hoje também Ministério de Mudança do Clima. Está sendo como esperava? Que balanço é possível fazer?
Esse primeiro ano foi duplamente desafiador. Primeiro, foi um ano de reconstrução de políticas públicas, não só na área ambiental, mas em vários setores, principalmente aqueles completamente abandonados e até mesmo perseguidos pelo governo anterior — por exemplo, a área dos direitos humanos, das políticas para mulheres, a área social. A área ambiental, nem se fala. E esse processo não se encerra porque se passou um ano. Tem estruturas que continuarão sendo fortalecidas porque o esgarçamento foi muito grande. Mas acho que a gente conseguiu sair de um momento basal, ali na UTI, para poder ter alta e começar a trabalhar. Estamos trabalhando. Só que nós decidimos que não íamos esperar pelo orçamento ideal ou a situação ideal. A gente foi trabalhando da forma como foi possível desde que chegou aqui. E já no primeiro ano, conseguimos uma redução de desmatamento de 50%. Isso é muita coisa diante da terra arrasada que a gente encontrou. Nós pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção ambiental estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento, pegando os eixos estratégicos de um plano de transformação ecológica: a questão das finanças sustentáveis, do adensamento tecnológico, da infraestrutura resiliente, da bioeconomia, da segurança energética, e a agenda da economia circular. Pensamos todos esses eixos sinalizando que os desafios de um novo ciclo de prosperidade que o país precisa não é mais na velha lógica da visão puramente desenvolvimentista que perpassou toda a história do Brasil nos últimos séculos. Esse desafio também entra numa outra fase: não mais da formulação, agora é da implementação.
“Os desafios de um novo ciclo de prosperidade que o país precisa não é mais na velha lógica da visão puramente desenvolvimentista que perpassou toda a história do Brasil nos últimos séculos.”
E quais são os maiores desafios a partir daqui?
Nós temos uma contradição: ao mesmo tempo que os investimentos terão de ser de longo prazo e com mais recurso, a gente tem mecanismos fiscais que nos impedem em relação a várias políticas que o Estado gostaria de patrocinar e de estar ali na ação de indução dessas políticas. Então, o primeiro desafio foi da reconstrução e da formulação de novas políticas ou da atualização de políticas que deram certo e que precisavam ser atualizadas, como foi o caso do PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], a retomada de políticas que tinham sido paradas, como foi o caso do Fundo-Amazônico e outras. E agora nós estamos neste ano com o desafio de implementar tudo aquilo que a gente planejou. Na Amazônia, depois desses primeiros meses, tivemos uma redução de 29,2% no desmatamento em cima dos 50% que já haviam caído. Por outro lado, tem um desafio enorme em relação ao Cerrado. O bom é que conseguimos fazer o PPCerrado [conjunto de medidas intersetoriais para tentar conter a destruição de parte da vegetação do Cerrado] e estamos em fase de implementação. Tivemos ali uma pequeníssima queda de 4% em relação a 2023, mas ainda não dá para dizer que é uma tendência. É um esforço hercúleo.
Como lidar com essas contradições?
Às vezes, as pessoas falam: “Ah, mas tem contradições”. Existem contradições! Nós somos uma frente ampla, não tem como ser diferente. A contradição faz parte da dinâmica política, social, cultural, acadêmica, né? Dentro do mesmo departamento, você vai ter abordagens metodológicas, que muitas vezes podem parecer contraditórias. É da natureza das dinâmicas humanas. Mas o importante é que o presidente Lula, ele mesmo, está liderando a agenda. A ministra do Meio Ambiente não teria força para dizer: “Não, o Ferrogrão não entra agora no PAC, vai para estudo!” A gente apresenta as razões, os argumentos técnicos, mas a decisão, o poder disso é do presidente da República. E mesmo que haja as contradições, elas têm que ser dirimidas politicamente e tecnicamente. Nem tudo é dirimido só politicamente. A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] não pode dizer que aquele agrotóxico não faz mal para saúde, em função de uma visão política. Assim como o Ibama tem a liberdade de dizer que determinado empreendimento não tem viabilidade ambiental e que é preciso buscar alternativas, que às vezes até podem ter um custo maior. Mas, paciência, é isso que precisa ser feito.
Por Adriano De Lavor, Ana Cláudia Peres e Luíza Zauza* (estágio supervisionado)
FONTE: https://radis.ensp.fiocruz.br/entrevista/o-negacionismo-climatico-ameaca-a-vida/
Edição: A. R.