O “Novo Normal”
é uma Vaca seguindo
a manada.
O que é isso que todos começam a chamar de “Novo Normal”? Qual era mesmo a “velha normalidade”? E a pergunta que mais deve(ria) incomodar: O que é “normal”?
Poderia destrinchar uma série de teorias que convergem e divergem sobre esse conceito. Tudo, porém, de alguma forma levaria à mesma conclusão que canta Caetano Veloso: “De perto, ninguém é normal / Às vezes, segue em linha reta / A vida, que é ‘meu bem, meu mal”. E ao que parece, a vida, essa “Vaca Profana”, tem seguido a linha e nada há de efetivamente novo na aparente “normalidade”. A não ser que a “normalidade” seja essa absurda indiferença humana, as contradições sociais, culturais, econômicas que apenas se revelam ou permanecem veladas, mas de alguma forma mais provocativas, no contexto de um novo tipo de pandemia mundial.
De toda forma e ao que tudo indica, apesar disso, prevalece o entendimento da vida e da morte, na visão apenas do que é “meu” e não “nosso” bem ou nosso mal.
Ou seja, passado o susto da impotência inicial, prevalecido o contágio da ignorância, da indiferença e “eu” fragmentado e isolado na “bolha comum”, a pandemia começa a se tornar aquilo com a qual e sem a qual tudo continua tal e qual. Esse é o significado e o sentido que consigo entender daquilo que, apesar de ser incomum, caótico e intensificar as mazelas da condição humana, começa a ser entendido como “novo normal”. Ou seja, seria como parafrasear a canção do poeta e dizer: Vaca profana mantém teus cornos para dentro e junto com a manada. “Derrama o leite bom na minha cara / E o leite mau na cara dos caretas”.
Os caretas modernos dos tempos de pandemia que fiquem com o leite mau dessa vida, Vaca Profana das divinas tetas das quais somente os “bons e os justos”, defensores da moral e dos bons costumes, somente aqueles que entendem a vida como a pátria acima de tudo e os privilégios da divina vaca, acima de todos, são dignos de seguir a “vida normal” mesmo que tenham que fingir terem se adaptado à novas necessidades.
Nada vejo muito de “novo” na normalidade que segue. Talvez, novas encenações do cotidiano, mutações superficiais que mal tocam o cerne da existência e perpetuação da negação da dignidade humana em formas atualizadas e adaptadas ao slogan do “Novo Normal”. Vejo apenas as vacas seguindo a manada ao som do mesmo berrante, mesmo que soprado por outro fazendeiro que tão pouco é “novo” e muito menos “normal”.
E por falar em “vaca”, e por apreciar a metáfora da natureza poética, ao rabiscar esses devaneios, flagrei-me diante do livro A Revolução do Bichos, escrito por George Orwell, publicado originalmente em 1945.
Abri o livro exatamente na página na qual meu filho o largou e leio trecho que diz: “Quanto aos outros, sua vida, ao que sabiam, continuava a mesma. Geralmente andavam com fome, dormiam em camas de palhas, bebiam água no açude e trabalhavam no campo; no inverno, sofriam com o frio; no verão, com as moscas. […] não conseguiam lembrar se as coisas tinham sido melhores ou piores que agora. […] Os bichos consideravam o problema insolúvel; de qualquer maneira, dispunham de muito pouco tempo para essas especulações.” (Orwell, ed. 2020, p. 103).
Entendi, assim, porque meu filho- que completa 13 anos neste mês de setembro de 2020 -, antes de ir brincar, fechou o livro e me disse, indignado: “Pai, os porcos são muito filhos da p….”.
Sim, eu sei que nesse momento, alguns dos que me leem, defensores da normalidade, da moral, dos bons costumes e da família “tradicional”, estejam berrando indignados por não ter pedido para meu filho não dizer “palavrão” (embora eu não tenha dito que não o fiz) e pior ainda, por perverter sua educação deixando ler um livro dessa natureza (o qual ele mesmo escolheu sem que tenhamos indicado). Sim, eu sei que isso não é normal e não é novo, seja lá o que você entende por “normalidade”.
Poderia agora retomar uma série de estudos sérios e aprofundados sobre essa complexidade; poderia convidá-lo a refletirmos juntos e apurarmos os nossos argumentos, mesmo que não cheguemos ao mesmo entendimento; poderia convidar você a refletir a respeito do fato de que sob o véu da ideia de um “Novo Normal”, talvez sejamos induzidos a considerar “normal”, comum, aceitável justamente aquilo que deveríamos combater mesmo que tivéssemos que pensar novas formas para isso.
Poderia convidar você ao diálogo que foge dos extremos e a perceber que, talvez, apenas talvez, você e eu pensemos que somos agraciados com o leite bom das divinas tetas, mas não enxergamos que essa Vaca é Profana e nós somos os profanados. Mas, claro, isso exigiria tempo, reflexão, pensamento, e, pior, a coragem de enfrentar a dor que é nos descobrirmos apenas seguindo a manada.
É, sobre o que é “normal”, e se realmente faz sentido falarmos sobre uma “nova normalidade”, parece mais um desses problemas insolúveis e, como dispomos de pouco tempo (mesmo sem saber se realmente usamos o tempo ou nos usam o tempo todo), não vamos nos deter nessas “especulações” de desocupados improdutivos. Segue a manada, afinal, o “novo normal” exige recuperar o “leite derramado”. O “Novo Normal” é uma Vaca seguindo a manada.
Fico me perguntando na leitura que faço dos que se apressam com o “novo normal”, preocupados que estão com a tão “insuportável anormalidade” da pandemia: como será o “novo normal” para os/as desempregados/as, os precarizados/as, os subempregados/as, os/as “sem-direitos”, os/as de sempre, os/as de antes e os/as de agora, ainda mais precarizados em razão do impacto que a crise pandêmica produziu em suas vidas? Haveria “vidas matáveis”, “humanos descartáveis”, “humanos essenciais” no “novo normal”? (Paulo César Carbonari) Leia mais, clicando aqui.
Autor: Sidinei Cruz Sobrinho
Sobre o autor: Um bicho tentando se manter anormal em tempos de “novas normalidades”. Também estudou Direito, Filosofia, é professor, é estudante e você pode criticar ele diretamente a ele pelo e-mail sidineicsobrinho@gmail.com