O pivô da separação

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Em tempos tão obscuros como o que vivemos,
sorrir é uma afronta, uma negação e um ato revolucionário
contra um mundo que convida à tristeza a todo tempo.
Vamos resistir sorrindo.

Se o assunto for samba, meu oráculo é a Ilona. A garota sabe as letras de todas as músicas, quem as gravou e, quase sempre, o nome do disco. Quando não conhecia um samba entoado numa roda – coisa rara – era capaz até de adivinhar o compositor:

– Com essa linha melódica só pode ser do Wilson Moreira – dizia ela e quando conferíamos era batata.

Ilona respirava samba. Segunda-feira se revezava entre o samba do trabalhador e a Pedra do Sal. Na terça-feira ia para o Beco do Rato, quarta esforçava-se na oficina de percussão de que tanto gostava, a quinta terminava nos sambas da Praça Tiradentes. Sexta a laje do Santa Luzia era templo a ser visitado. Sábado e domingo não tinham destino certo. Os sambas do Chapéu, Cabeça Branca, Terreiro de Crioula, Buraco do Galo, Serrinha, ou o da feira da Glória podiam ser visitados.

Tudo isso para chegar ao fato e ao lugar que realmente interessam. Estávamos ali na Praça Tiradentes, quando o Fernando Procópio mandou uma letra dele e do Tinho Brito sobre as diversas formas de amar:

“Eu vos declaro marido e marido
Eu vos declaro mulher e mulher
Hoje a união tem um novo sentido
Tudo é permitido, casar quem quiser…”

Do outro lado da roda, um desconhecido – nem tão desconhecido assim, já que encontrávamos com ele em vários lugares na boemia carioca – entoava toda a canção com uma emoção comovente. Ilona, feminista e defensora de todas as formas de amor, que já tinha uma paixão platônica pelo desconhecido, não conseguiu tirar os olhos dele e logo decretou com toda a segurança de uma mulher:

– Hoje eu já sei quem eu vou levar para casa!

Dito e feito. Hidelgardo não teve nem chances para resistir aos encantos dela. Em pouco tempo, eles já haviam trocado vários beijos e a determinada levou-o para casa.

O romance foi engrenando. As ficadas aleatórias com encontros fortuitos foram ganhando caminho para combinações cada vez mais frequentes. Cinemas, praias, jantares eram vividos com a força que a paixão merece, porém o samba, elo fundamental entre ambos, continuava sendo o programa favorito.


Lembro-me bem da cara de apaixonada de Ilona no Beco do Rato ao ver Daniel Rozadas cantando e seu novo amor utilizando-se da letra para se declarar:

” Pra que a gente aproveite ainda mais
E mais desse sabor
Pra que a gente aceite que a paz
Enfim nos encontrou
E quem acha que é cedo demais
Nunca se apaixonou
Chame de loucura ou do que quiser
Eu prefiro amor…”.

O romance parecia descambar para um namoro e eu fazia gosto, porém percebi que algo não estava bem, quando Ilona apareceu lá em casa de surpresa. Insisti para saber o motivo do rosto fechado e ela cedeu:

– É que ontem aconteceu um acidente.

Explicou que, no meio de um beijo maravilhoso, um implante dentário, vulgo pivô, de Hildegardo se soltou e ela acabou engolindo:

– Fiquei entalada! Quase sufoco. Pior que foi um dente da frente. O coitado nem vai poder sair de casa.

Falou do constrangimento do rapaz, que logo pediu para ir embora da casa dela, ainda que minha amiga tentasse tranquilizá-lo. Argumentava que a cena, apesar de bizarra, não mudara nada o que sentia, mas que Hidelgardo passou o dia sem nem mandar um oi.

– Deve estar com vergonha. Deixa correr um tempinho – emendei.

Mal fechei a boca e o telefone Ilona começou a tocar. Ao ver quem ligava, ela abriu um largo sorriso e mudou completamente o humor, pedindo licença para falar com sua paixão. Foi para o quarto e lá demorou poucos minutos antes de voltar enfezada.

– O que houve? – perguntei.

– O Hildinho telefonou perguntando se eu tinha achado o pivô dele.

Ilona contou que respondeu que aquela pergunta era sem propósito, pois jamais havia pensando em tentar procurar o tal pivô nos excrementos por razões óbvias.

Segundo minha amiga, o rapaz ficou indignado, ensaiando dizer que não tinha dinheiro para reparar o estrago feito pelo beijo lascivo da noite anterior e que ela havia sido inconsequente em não procurar seu implante. A coisa foi de mal a pior e nem ela sabia quem havia batido o telefone primeiro.

O encanto morrera ali, assim como se morre o amor em cada esquina, com ou sem motivo, para que um novo possa nascer. Nas semanas seguintes, eles tentaram alguns encontros, todavia a química intensa de outrora se perdeu.

Não demorou muito para que voltássemos às rodas de samba com todo o vigor, mas agora com uma diferença. Quando o cantor puxava “aquela boca sem dente que eu beijava/ já está com dentadura…” minha amiga fingia que algo acontecia e saía de perto da roda.

(Esta publicação faz parte do livro A VIDA AMOROSA DOS MEUS AMIGOS, escrito pelo autor)

“Não existiria sentido em literatura se a gente não pudesse se mostrar assim: escondido nos outros. A VIDA AMOROSA DOS MEUS AMIGOS é o livro mais particular e, paradoxalmente, o mais universal de Fernando Tenório.

Ele é particular, pois recolhe histórias e delas aproveita-se para construir a sua trajetória, que começou em Maribondo, passou por Maceió até chegar ao Rio de Janeiro. No entanto, essa ode à amizade torna-se universal, justo quando os personagens ganham humanidade, brilho, cor e sonoridade. Entre heróis pouco convencionais e vilões desprovidos de vilania, eles ficam maiores que as páginas do livro, saltando delas e saindo pelas ruas para incorporarem-se em várias figuras humanas familiares, as quais trombam com cada um de nós ao longo da vida. As idiossincrasias dos personagens encontram-se, portanto, com as de muitas pessoas conhecidas pelo leitor, inclusive ele próprio. E é aí que a magia acontece. Apesar de presunçosa, uma vez que cada um ri e goza de modo único, a proposta inicial desse livro foi a de trazer a alegria e os sorrisos. Em tempos tão obscuros como o que vivemos, sorrir é uma afronta, uma negação e um ato revolucionário contra um mundo que convida à tristeza a todo tempo. Vamos resistir sorrindo. Vamos à leitura. Isbn: 9788599396094 Autor: Fernando Tenório
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