O problema da fome no mundo — e no Brasil —
não está na produção de alimentos: hoje, se produz quantidade
de alimentos suficiente para se alimentar a todos no planeta.
Assim, a questão é de se ter acesso a esses alimentos.
Setenta anos depois de o sanitarista brasileiro Josué de Castro ter denunciado a fome como um “flagelo fabricado pelos homens contra outros homens”, o Brasil já consegue enxergar a fome como um problema político? Como o mundo tem olhado para esse drama humano e universal? Nesta entrevista concedida à Radis por e-mail, outro brasileiro, o agrônomo José Graziano da Silva, reflete sobre essas questões. Responsável pela implantação do Fome Zero, em 2003, programa precursor de uma série de outros que colocaram a luta contra a fome na agenda das políticas públicas do Brasil, Graziano hoje está no segundo mandato como diretor-geral da FAO, órgão da ONU responsável pelo combate à fome e à pobreza por meio da melhoria da segurança alimentar. Aqui, ele explica por que os programas sociais que contemplem o acesso aos alimentos não podem deixar de ser prioridade.
Por que, apenas três anos depois de deixar o Mapa da Fome, o Brasil já corre o risco de voltar a figurar nesse indicador?
Para entender o possível retorno do Brasil ao Mapa da Fome, precisamos recordar, antes, quais foram os fatores que o levaram a sair do mapa, depois de décadas. A experiência brasileira revela que é necessária uma firme atuação de governo, por meio de um conjunto de programas sociais, articulados em torno do conceito de segurança alimentar. Ações específicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos, o crédito ao pequeno produtor rural, os bancos de sementes, além do Bolsa Família, são ferramentas fundamentais para o combate à pobreza. Seriam insuficientes, porém, se não fossem combinadas com medidas macroeconômicas de geração de crescimento inclusivo de empregos formais, de valorização real do salário mínimo, previdência social robusta, aposentadoria rural não contributiva etc. Foi com essa combinação de esforços que as camadas mais vulneráveis da população brasileira passaram a ter acesso aos alimentos básicos, que antes lhes eram vedados por causa da alta dos preços e da baixa renda. Os indicadores econômicos do Brasil em 2017 mostram, entretanto, que o salário mínimo deixou de ter um reajuste real acima da inflação e que poucos novos empregos foram criados no último ano. Nessas condições adversas, seria fundamental a manutenção dos investimentos sociais no orçamento de 2018, conforme recomendam o FMI e o Banco Mundial. O que se noticia, porém, são cortes nos orçamentos dos programas sociais e das redes de proteção social; daí a nossa preocupação.
Que leituras é possível fazer das estratégias de que o Brasil lançou mão naquele período?
Por terem logrado resultados positivos em pouco mais de uma década, as estratégias nacionais de combate à fome tornaram-se, em grande medida, diretrizes e referências para estratégias adotadas em outros países. O Brasil é fonte de inspiração para outras nações no enfrentamento da fome estrutural por meio de políticas públicas articuladas e previstas no orçamento nacional.
Por que essas políticas estão se revelando mais frágeis do que pareciam há bem pouco tempo? Quão longe ainda estávamos de consolidar o combate à fome e à miséria como política pública?
A crise econômica brasileira terminou por impedir que se consolidasse uma política de segurança alimentar. Para que a fome seja combatida de maneira eficiente, nossa recomendação é sempre a adoção de políticas anticíclicas: quando há recessão econômica, propõe-se aumentar os investimentos nos programas sociais. Não é só o tema da alimentação. Os gastos sociais do governo são muito importantes: as pessoas são muitas vezes pobres porque não têm acesso aos bens comuns, como saúde, educação — e não podem pagar por eles. Há que se entender que a chamada linha da pobreza é muito flutuante. Ter ou não ocupação informal, mesmo que temporária, pode empurrar a família para cima ou para baixo dessa linha.
Estivemos no interior da Paraíba e testemunhamos como programas de transferência de renda vinham revertendo a situação de pobreza absoluta e miséria extrema, o que fazia do Brasil uma referência no modelo da renda básica universal. É possível dizer que, com uma série de cortes nesses programas, estamos na contramão do restante do mundo?
Os últimos dados da fome da FAO revelam que, em 2016, houve um aumento da fome mundial pela primeira vez na última década, e há três razões para isso: os conflitos armados, as mudanças climáticas e a redução de políticas de proteção social em razão da recessão econômica. Trata-se, sim, de uma situação que não afeta somente o Brasil. No entanto, precisamos entender que o investimento em políticas sociais e a alocação de recursos para a redução da pobreza são, também, janelas para a oportunidade de crescimento. No caso brasileiro, é motivo de preocupação a recente adoção de Emenda Constitucional que estabelece um teto orçamentário para os gastos sociais no Brasil. Sua aplicação deve dificultar gravemente a realização dos direitos sociais, tais como o direito a uma alimentação adequada, ou nos casos de saúde e educação.
Que cara tem a fome no Brasil?
A fome tem muitas caras, como costumo dizer. A cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meia idade, com muitas crianças e que vive no meio rural. Em geral, o marido migra e não a leva, resultando em grande parte no abandono da família. Essa mulher, com muitos filhos, já de uma idade mediana e que foi abandonada, tem de ser beneficiária de mecanismo de proteção social — se não, jamais irá deixar tal condição, assim como os seus filhos. Essa é a geração que está sendo comprometida pela ausência de políticas sociais. Então, por mais deficiências que possam ter programas de transferência de renda — e que geralmente não têm, pois são facilmente corrigidos —, não se justifica deixar sem um mínimo atendimento as pessoas que não têm condições de ter acesso à alimentação. Apesar disso, uma outra cara da fome brasileira, como revelado na última Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], está também na periferia dos centros urbanos, onde se encontra um grande número de famílias sem emprego estável.
Quais você diria que são os maiores desafios para quem trabalha com o combate à fome no atual contexto brasileiro?
Quando tive a oportunidade de trabalhar como Ministro Extraordinário do Combate à Fome no primeiro governo Lula, pude contribuir na realização de uma das principais prioridades traçadas por aquela administração: fazer com que cada brasileiro pudesse passar o dia com a certeza de que faria três refeições: café da manhã, almoço e jantar. Com o Fome Zero e com a implementação dos sucessivos programas sociais, o Brasil conseguiu, nos anos seguintes, livrar milhões de pessoas da pobreza extrema e da fome. O compromisso político assumido naquela ocasião permitiu que os pobres tivessem seu lugar cativo no orçamento. Quando isso não é prioridade, fica muito mais difícil por em evidência a importância de se consolidarem políticas de segurança alimentar e de combate à fome.
Qual a relação entre os programas sociais e a questão da segurança alimentar?
Os programas sociais, em especial os de transferência de renda condicionada como o Bolsa Família, possibilitam o acesso das famílias mais pobres à alimentação básica. O problema da fome no mundo — e no Brasil — não está na produção de alimentos: hoje, se produz quantidade de alimentos suficiente para se alimentar a todos no planeta. Assim, a questão é de se ter acesso a esses alimentos.
Do ponto de vista de alguém que tem a trajetória ligada às questões de segurança alimentar, qual a sensação de ver a fome voltar a bater na porta de milhões de brasileiros?
A sensação é, naturalmente, de grande frustração e tristeza, mas em nada nos desanima a prosseguir neste caminho. Somos muitos a enfrentar este desafio, desde Josué de Castro, mas também figuras históricas como o Betinho, com sua campanha do Natal sem Fome, e Dona Zilda Arns e todos os colaboradores da Pastoral da Criança. Mais recentemente, temos a atuação dos membros do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], ativistas das ONGs humanitárias, enfim uma enorme rede que atua em torno das Conferências Nacionais de Segurança Alimentar. Enfrentar a miséria e a fome deve ser uma preocupação de todas e de todos brasileiras e brasileiros. Não é um problema só do governo, é de toda a sociedade.