O que Rubem Alves veio fazer em Passo Fundo, em uma fria tarde de abril?

1947

Rubem Alves, abandonando o púlpito, caiu na educação. Salvou-se a si mesmo, salvou a milhares.

Dos preparativos para sua vinda à Passo Fundo

O telefone tocou na Secretaria da Faculdade de Educação e, para surpresa de todos, era o professor Rubem Alves.  A sua ligação, histórica, para confirmar presença em um pequeno encontro sobre os rumos da educação, sobretudo nas séries iniciais. Mas o projeto era mais pomposo, chamado “Seminário Regional de Filosofia da Educação”.

Rumos?  Será que os tomamos por certos?  Bem, isso foi em 1985. Ainda poderemos revê-los, os rumos, todos eles, apesar de a educação continuar nesses 40 anos, em caminhos retorcidos.

Estávamos em abril e fomos ao Salgado Filho recebê-lo. Os plátanos do aeroporto cobriam as calçadas com suas folhas, logo à saída, o que chamou a sua atenção, pois havia mais folhas dispersas ao chão do que suspensas em seus galhos.  E ele ficou maravilhado!

O seu olhar e sua percepção já o distinguiam, mas só depois de todo esse tempo, vimos publicado em suas “Melhores Crônicas”.  Ao contrário de quem reclama de folhas caídas, lemos:  _ que educação perversa fez com que as pessoas se tornassem cegas para a beleza generosa das árvores, tratando suas flores como se fossem sujeira…Amanhã, suas calçadas estarão de novo cobertas de ouro. 

Quanta sabedoria! E nós, vivendo intensamente a partir de então, Rubem Alves, por uns instantes apenas, exatamente no momento que construía mundos ainda não descritos. Ou escritos. Confirmando-se a seguir.

E, em uma fria tarde de abril, estávamos ao lado de quem viria ser um dos maiores expoentes da educação brasileira. Um gigante próximo, nós, que queríamos a revolução, primeiro na educação, para transformar um país, e que nestes anos nos devolvia aos poucos, a liberdade tomada décadas atrás.

E ele mesmo, um exilado por vontade própria, passando os anos de chumbo fazendo o seu doutorado em Nova Jersey, no que viria ser um dos mais didáticos tratados teológicos dos anos 70 e 80. Quanta pretensão a nossa!  Saídos há poucos anos do “2º grau”, querendo mudar o mundo, atirando para todos os lados do céu, acertamos em sua maior constelação. Estávamos, enfim, com Rubem Alves!

A sua simplicidade franciscana nos alertava, contudo, quando enviou uma carta ao Diretório Acadêmico, falando o seguinte:

mas acho que, se o Paulo Freire vai à Passo Fundo, eu não deveria ir.  Somos amigos, iremos dizer coisas parecidas, haverá divisão de auditórios e uma duplicação de gastos. Por favor, escreva-me dizendo de sua preferência”. 

-Como assim, escrever? Gostaria de ter lhe respondido… “Nossa preferência é que você more aqui, Professor, e fique conosco pelo menos um semestre no prédio da Faculdade de Educação. Tire-nos deste túnel de discussões sem fim a que nos submetemos e nos ensine uma grande lição, a do pintassilgo que seja, aquele mesmo que fora julgado e condenado, quando caíra em um poço de sapos”. E que mais tarde, fora condenado pois falara em um mundo de sol e chuva, de gramas e árvores, de cores e de tantas alegrias, coisas que os sapos julgavam delírio de um pássaro perdido.

Nós, iniciantes, não queríamos ser condenados, pois acreditávamos, deveria haver um caminho melhor para a construção de uma educação mais lúdica, solidária, inclusiva.

Da sua participação no Encontro de Formação

O auditório da UPF estava tomado. O Pe Elli Benincá, avalista pedagógico nesta quadra de abril, eufórico. Alguns alunos sentados no chão. Vários professores boquiabertos, constrangidos com o que ouviam, donos que eram de conceitos sobre estruturas educacionais ultrapassadas, resistindo a um tipo de saber sobre quaisquer mudanças, em um novo modelo na arte de educar.  A sua desconstrução sobre o que se pensava em ensinar, caiu como toneladas às cabeças presentes, acostumadas à temperatura morna dos temas que estendiam aos seus alunos.

– Sem sabor não há saber, iniciou sua fala. O aprendizado se dá neste espaço de prazer, onde todos os sentidos são convidados para a ceia do aprendizado. Foi o suficiente!  O dia estava ganho!

O grande imã para que Rubem Alves fosse aplaudido demoradamente, por seus utópicos seguidores, em parte, devia-se ao lançamento de seus últimos dois livros, e que chegara à cidade, há um ano, talvez, e que pelos quais, alunos e professores da área consideravam um marco: “Conversas com gosta de ensinar” e “Estórias de quem gosta de ensinar”. Foi suficiente para ele cair no gosto (e desgosto) de quem estava com a enxada nas mãos para começar a ‘lecionar’. Uma divisão, nas águas turvas do debate burocrático sobre educação, e que, seguramente, nunca mais fora o mesmo para os presentes.

Porque o destino pregara uma peça ao professor, ele mesmo reconhece, quando disse que chegou aonde chegou, porque tudo dera errado em sua vida. Benditos sejam os erros aos quais nos submetemos, sem entender, tentando, experimentando, para depois ouvir o que ouvimos do Pastor Rubem Alves, que abandonara seu rebanho por vontade própria, para se livrar dos lobos da burocracia nas Instituições religiosas, que há muito esqueceram sua vocação original e agora vivem somente para auto manter-se.

Modelos de organizações que perdem sua essência na origem, transformam-se em estruturas rígidas, autorreguláveis, com um fim em si mesmas, muito organizadas, limpas, mas com pequenos sinais de mofo que crescem em suas quinas.

Rubem Alves, abandonando o púlpito, entregou-se à educação. Salvou-se a si mesmo, salvou a milhares.

De sua volta à Campinas e dos nossos outros encontros

Voltando à capital, com ele muito feliz, paramos em Bento para um café. Presenteou-nos com uma garrafa de vinho que, seguramente, ficou fechada por anos.

Em 1986, em sua sala de estar em Campinas, e servidos com um café de gosto mineiro, discutimos uma tarde inteira, em como apresentar uma proposta de mestrado à Unicamp, sobre uma ideia extravagante: ensinar filosofia às turmas iniciais do ensino médio…através do teatro.  Quanta ousadia!

– Mas isso faz todo sentido, falou!  Se grande parte de nosso dia a dia se dá sobre uma plataforma de encenação, cabe ao teatro formar os melhores professores e diretores.  E, ao invés de mestres com cabelos brancos, perderem turnos para explicar uma afirmação de Paul Valèry: “o que seria dos homens, sem a ajuda das coisas que não existem,” não seria melhor montarmos uma peça para entendermos sua afirmação? Um diálogo no teatro poderia condensar, reduzir e iluminar seus conceitos, dramatizá-los, atraindo a muitos. Pois esta afirmação, por si só, tem o valor de um livro inteiro.

Então, aprendemos que é no riso e no prazer em que se dá o verdadeiro saber.  E, se o nosso corpo é a extensão de nossos sonhos e vontades, será pelo sabor, gostando, desejando, respondendo ao mesmo corpo, em seu anseio por aprendizagem genuína.  Afinal, que conhecimento permanecerá se não fizer sentido ao nosso corpo, ou, qual a lição que permanece em nossa mente, se dela nunca fizermos uso? Mas isso é conversa para outro dia.

A saudades nos invade ao falarmos de Rubem Alves, que pensava, Deus escolheria morar em jardins, não nas igrejas. Aos templos, Deus iria visitar seus vitrais, mosaicos de vida em distorção de cores, que lembravam matizes de galáxias em formação, o que entendia muito bem. Mas morar mesmo, Deus o faria em Jardins, quaisquer deles, porque os lembraria do paraíso em que criara, onde realmente o sabor e o saber aconteciam, na sua explosão de sentidos. Como no Jardim das Delícias, do pintor Bosch, várias vezes lembrado.  E em como deveria ser nosso aprendizado em espaços floridos, debaixo de jequitibás, não em bancos gelados, de escolas avinagradas, ouvindo professores zangados…  Mas isso foi nos anos 80!

Bem, de Passo Fundo ele partiu emocionado.  Tanto foi o carinho e acolhimento. 

Mutuamente, prometemos um novo encontro, amplo, cheio de desafios. E ele voltaria sim, pois sentira uma vocação imensa no desejo de aprender com aqueles que aqui conhecera. Seu espelho, um ator religioso de passagem para sujeito na educação, fora refletido em grande parte do auditório.

Despedindo-nos em Campinas, e já na tristeza da partida, ouvimos, quando falou:

-Bem, agora vou andar por um jardim aqui próximo e levar meus olhos pra passear.

Que falta você nos faz Rubem Alves!

Referências de livros:

  1. As melhores crônicas de Rubem Alves –  Papirus
  2. Transparências da Eternidade –  Verus
  3. Na morada das Palavras –  Papirus
  4. Fomos maus alunos (Com Gilberto Dimenstein) –  Papirus
  5. Por uma Teologia da Libertação
  6. Conversas sobre política –  Verus

Autor: Nelceu Alberto Zanatta, autor da crônica: “Árvores não conversam? Sinos não falam? Nos jardins das rejeições, tudo é possível!”: https://www.neipies.com/arvores-nao-conversam-sinos-nao-falam-no-jardins-das-rejeicoes-tudo-e-possivel/

Edição: A. R.

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