O que seria uma cidade, sem considerar as pessoas?

1937

Fui convidada a participar do Cine Debate do CMP Sindicato para comentar o documentário “O corpo e a cidade modernista”, evento que faz parte do VII Congresso dos Professores e Professoras municipais com o tema: Cidades Educadoras: o que temos a ver com isso? Foi um prazer dividir os conhecimentos e reflexões que seguem.

Começamos a nossa reflexão, fazendo uma análise do Documentário “O corpo e a cidade modernista”, um documentário sobre a influência do urbanismo modernista de Brasília na relação afetiva de seus habitantes, seus espaços urbanos e relações interpessoais.

Caso desejar conferir o documentário na integra acesse: https://youtu.be/DC8UqPxfnY4?t=115

O narrador estreia o documentário com um simples, mas não raso, questionamento: o que constitui uma cidade? E eu voz pergunto: São as pessoas? Os edifícios? As ruas? Os carros? O conjunto de tudo isso?

Penso que cidade é uma daquelas palavras que o significado não comporta. A gente pode definir ela de inúmeros modos, mas a sua complexidade nos faz sentir que há mais no não dito que no descrito.

A Arquiteta & Urbanista Raquel Rolnik (1988), no livro O que é Cidade, trabalha o conceito por meio de uma metáfora: “a cidade é antes de mais nada um ímã, antes mesmo de se tornar local permanente de trabalho e moradia”. Shakespeare, em sua obra intitulada como Coriolano, questiona por meio do personagem Sicinius:  O que é a cidade, se não as pessoas?

Pensando bem, fica evidente que a matéria-prima das cidades não é o concreto, mas as pessoas. E se a cidade é primordialmente feita por pessoas, é lógico supor que a forma que ela adquirir também vai dizer muito sobre pessoas, vocês não concordam?

Com Brasília, não foi diferente, começando pela própria localização, situada no centro do Brasil, pode querer significar um estado presente? Ou um estado vigilante? Ou um estado centralizado?

Ela é um caso bem peculiar no Brasil, particularmente é a única cidade que eu conheço por aqui que foi projetada para depois virar cidade. E tudo começou com um concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil. O vencedor, entregando, polemicamente, a proposta em uma folha branca desenhada a lápis no último do segundo tempo, foi o Lúcio Costa. Niemeyer era amigo dele e veio depois, atuando com maior ênfase na arquitetura monumental.

O Modernismo era a tendência da época, uma vertente estilística inovadora que veio com força após a Segunda Guerra Mundial. Utilizava da pré-fabricação, da tecnologia, da pureza dos elementos. Less is more, já ouviu essa frase por aí? Ou melhor, menos é mais? Pois, é, ela é a criação de um arquiteto modernista chamado de Mies van der rohe, que retratava bem o espírito da época, que talvez possa ser traduzido por otimização.  

Mas, mais do que apenas um estilo, o Modernismo pode ser visto como uma busca por ruptura com um período excessivamente ornamental e também desigual. Representava a superação da dogmática vertente neoclássica da Alemanha Nazista, por exemplo. O não aceitar mais o estado das coisas, o querer fazer diferente.

E essa história aparentemente estranha de projetar cidades do zero ou reestrutura-las surgiu graças a uma necessidade de ordem em meio ao caos gerado em função da concentração de pessoas em cidades no Período Industrial.

O Brasil, assim como todo o ocidente, se abriu a essa nova vertente. As coisas começaram a dar as caras por aqui na semana da Arte Moderna, ainda 1922. O movimento antropofágico é um exemplo disso, um impulso quase que desesperador pela busca da nossa identidade.

Brasília veio depois, inaugurada em 1960, era a consolidação das ideias modernas. Se fundamentou na carta de Atenas que concebia a cidade em quatro funções básicas: habitação, trabalho, diversão e circulação. Uma cidade de oportunidades em que cada cidadão teria acesso ao bem-estar e a sua beleza pelo menos em ideal.

Estruturada em uma cruz, talvez com intenções religiosas, no final da história ela acabou virando um avião, visto de cima. Dizem que Lúcio Costa acabou priorizando as curvas de níveis e que não foi nada intencional o desenho de avião, inclusive ele até se incomodava com esse apelido carinhoso. Mas, cá entre nós, a parte planejada era justamente chamada de plano piloto, avião parecia combinar, não é mesmo?

Lúcio Costa previu Brasília em diferentes escalas ou em diferentes formas de sentir a cidade. A primeira que podemos citar principalmente em função de seu destaque é a Escala Monumental, de extremo carácter simbólico. Lúcio Costa que me perdoe, mas, para vocês compreenderem, seria o corpo do avião!

Lá estão situados a praça dos três poderes, a Esplanada dos Ministérios e também o Conjunto Cultural da República, dentre outras coisas semelhantes (é geralmente a parte de Brasília que mais aparece na TV). Segundo Lúcio Costa, é justamente nesta escala em que o homem adquire a dimensão do coletivo, do entendimento da grandiosidade e da concepção intrínseca de que ninguém faz aquilo sozinho. Ela também representa a pujança e a grandiosidade da nação brasileira.

Em um segundo momento, podemos citar a escala residencial, que seriam as superquadras, como vimos no documentário. Lá a escala é menor e se adapta ao indivíduo. As alturas máximas para construir são de 3 a 6 andares. E o térreo sobre pilotis, que seriam apenas pilares, livres para a circulação. E há uma proibição interessante, há uma proibição em instalar grades ou muros. A única cerca por lá são às árvores, ou seja, os edifícios são cercados de árvores. Existem também a previsão para o comércio de bairro, cinema, igreja e a localização da escola primária próxima ao clube de vizinhança.

Segundo o próprio Lúcio Costa, a cidade não seria dividida em bairros ricos e pobres, haveria integração ao invés de discriminação. Ele até teria orientado que os edifícios residências deveriam ter uma cota para a população mais baixa, visando a integração e socialização. Mas, como a gente viu no documentário, isso acabou não acontecendo.

E temos a escala gregária, que se situa no cruzamento dos dois eixos, que abriga os setores comercial, bancário, hospitalar e rodoviário. E que o documentário cita como a parte da cidade mais parecida com as outras.

E por fim, a escala bucólica, que como o próprio nome insinua são os parques, às áreas verdes, o lago, os gramados, os espaços “vazios” entre aspas.

Se não fosse o documentário para estragar tudo, talvez eu teria convencido vocês que Brasília é um lugar todo de bom de se viver, não é mesmo? Então, a gente pode se perguntar onde está o problema? E mais ainda, o que exatamente isso que eu estou falando tem a ver com cidade educadora?

Então, particularmente, avalio que o tendão de Aquiles de Brasília é a mobilidade. A forma como ela foi grandiosamente projetada, espraiou a cidade e criou grandes distâncias, sem o devido suporte de infraestrutura para transportar e conectar as pessoas.  

Outro ato falho, vamos dizer assim, foi a aposta tanto de Juscelino Kubitschek na indústria automobilística, como de Lúcio Costa. Acredito que ambos foram seduzidos pela potência tecnológica e ideológica que representava e ainda representa o automóvel. É claro que isso gerou riqueza e desenvolvimento para o país, e essa é a parte boa. Mas, também está causando sérios problemas não só em Brasília, e que a gente tende a negligenciar.

Um ano depois da inauguração de Brasília, em 1961, Jane Jacobs, que nem urbanista era, era uma jornalista, escreveu uma obra fantástica de bom senso chamada Morte e Vida das Grandes cidades, criticando o sistema de caixinhas. Ela não usa esse termo, mas o porém de uma cidade modernista era justamente a fragmentação ou a setorização, para dar um nome mais bonito. Os setores bem definidos que enxergamos em Brasília.

Eu não sei o que vocês pensam a respeito, mas eu julgo que essa é uma visão ainda bem enraizada no ocidente. A gente costuma ter pouca compreensão holística, e é por isso que muitas vezes fica difícil compreender o que a cidade tem a ver com educação. Isso se aplica as cidades, as profissões, a nossa visão de mundo.

Exemplo do médico quando trata do fígado com um remédio que lhe causa outro problema, ai você vai em outro médico e ele lhe dá outro remédio, mas para tratar especificamente daquele outro problema, e assim segue… vocês já passaram por uma situação assim? E no final, como fica a nossa saúde? Percebem a importância de compreender o todo?

Mas, voltando para Jacobs, o que ela defendia é que para uma cidade ter vitalidade ela vai precisar de diversidade, de conexões, de proximidade.

Utilizando palavras do nosso documentário: “uma cidade é amada quando ela é vivida”. E para a gente amar uma cidade a gente tem que se sentir parte dela.

E a certas formas de projetar que favorecem a união e a coletividade. Como, por exemplo, os espaços comunitários acessíveis, próximos da gente, que não são especificamente os shoppings centers, mas, por exemplo a praça da Gare. Que você vai para ter paz, para olhar um lago, se divertir com os cachorros correndo enlouquecidamente pela grama e roubado a sua pipoca e assim sucessivamente.

Parque da Gare de Passo Fundo, Passo Fundo, RS

Espaços que a gente aprende que pode conviver com os diferentes, pois eles também são iguais. Espaços tão belos que somos impelidos de jogar um lixo no chão. Espaços para trocar as drogas por música, apresentações, esporte e diversão. Espaço de mistura e também de respeito.

O ponto chave da educação em cidades é a coletividade, é essa troca. É como os espaços urbanos podem aproximar ou como vimos em certos lugares de Brasília, afastar. E agora a gente chega em mais um ponto importante e eu prometo que já estou acabando. A Coletividade é o oposto da individualidade. E há certos momentos em nossas vidas que precisamos usar de nossa individualidade, mas, o problema mesmo acontece quando há claramente uma falta de equilíbrio desse jogo.

Quando a individualidade toma proporções inadequadas, a gente começa a enxergar o espaço público como de ninguém ao invés de nosso, e aí não cuida. Quando um povo é muito individualista, a gente começa a perceber isso na forma em que o espaço urbano vem sendo projetado. Como por exemplo, nos investimentos em transporte individual ao invés do público. E aí de fato Lúcio Costa talvez tenha errado ou sido seduzido pela promessa do automóvel, pois ele pensou tanto na coletividade, mas esqueceu da coletividade na mobilidade, o que hoje é uma das principais raízes do problema de Brasília.

Nos referenciando pelo período atual, se a gente pensar que o importante é ter lugar pra eu passar com o meu carro e o outro que fique em casa, a gente nunca vai resolver o problema de mobilidade de uma cidade. Que se resume em transporte público de qualidade, a fim de reduzir a emissão de CO2 e números de carros circulantes, o que no final da história, fará bem a todos nós humanos e inclusive para o Planeta.

Tem outro exemplo que eu gosto de dar que é sobre os muros, proibidos em Brasília, inclusive. Quando você tem uma calçada estreita e muros altos, a sensação é de opressão, insegurança e de mal-estar. E aí quando a gente vai construir uma casa o que a gente faz? Reclama que tem o recuo obrigatório e na sequência fecha ela de preferência com muros altos para nos sentirmos protegidos. E aí, vocês lembram daquele exemplo do médico que eu dei anteriormente? Ou da falta de visão holística, do todo?

Se aplica aqui também, pois ao criar esse ambiente protegido interno, mas inseguro externo, você aumenta as chances de criminalidade na sua própria rua e isso também prejudica a você. Utilizando as frases do imperador Marco Aurélio, “o que faz bem para colmeia faz bem para abelha”! E o que faz mal para a comunidade….

Claro que teríamos muitas discussões, como por exemplo, o papel da prefeitura em uma cidade educadora, o papel das comunidades, das escolas e de cada um de nós. Mas quem sabe fica para uma próxima oportunidade.

Fotos do Evento Cine Debate, realizado no dia 03/08/2022, no Auditório da Biblioteca da UPF (Universidade de Passo Fundo). O Congresso dos Professores Municipais ocorrerá no dia 23/08/2022, com o tema: Cidade Educadora: o que temos a ver com isso?

Para quem desejar se aprofundar no assunto, tenho um vídeo no Youtube que aborda essas questões e se intitula: o que faz um urbanista? No canal diálogos da Ana. Se tiverem interesse em conferir, eu ficarei muito feliz em encontrar vocês também por lá.

Acesse aqui: https://youtu.be/FZ6_2WjzgNk?t=30

Por hoje, a mensagem que eu desejei transmitir, foi o quanto ter consciência da coletividade é importante para todos nós. E o quanto a cidade atua como agente ou impeditivo dessa coletividade. O quanto a gente pode usar a cidade, os espaços públicos para fazer refletir sobre essas ideias e até mesmo ideais.

O quanto vocês professores devem buscar por ensinar a coletividade em um mundo cada vez mais individualista em que o melhor amigo de seus alunos por vezes é uma tela. Para finalizar, eu trago uma citação de Daniel Goleman, no livro foco:

“As crianças de hoje estão crescendo numa nova realidade, na qual estão conectados mais a máquinas e menos a pessoas de uma maneira que jamais aconteceu antes na história da humanidade. Isso é perturbador por diversos motivos. Por exemplo: o circuito social e emocional do cérebro de uma criança aprende através dos contatos e das conversas com todos que ela encontra durante um dia. Essas interações moldam o circuito cerebral. Menos horas passadas com gente –  e mais horas olhando fixadamente para uma tela digitalizada – são o prenúncio de déficits.” (Goleman, p.13).

E são essas crianças que irão gerir as nossas cidades do futuro.

Fotos: Do Parque da Gare: https://www.facebook.com/passofundoemimagens/

Demais fotos: Divulgação/arquivo pessoal

Autora: Ana P. Scheffer

Arquiteta e urbanista, Mestre em Engenharia com ênfase nos estudos de Mobilidade urbana sustentável, estudante de Filosofia e escritora. Mantém um canal no Youtube sobre reflexões chamado de Diálogos de Ana: Diálogos da Ana – YouTube

Edição: Alexsandro Rosset

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