O sonho em meu caminho: sou Daniel

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Chegamos ao novo país!
A primeira expressão escutada
pela primeira vez na vida:
“Bem-vindos! Vocês estão salvos!”

“Sou Daniel, um anjo de nome. O anjo que auxilia a obter a misericórdia de Deus. Foi o que eu fiz quando minha mãezinha recebeu o diagnóstico de câncer, foi um dia de tempestade com sol brilhando. No lugar onde morávamos, não havia recurso. Larguei tudo e viajei em busca de solução. Minha mãe lutou bravamente, mas infelizmente ela partiu tão cedo. O céu se abriu para recebê-la. O céu rasgou o manto num vazio profundo. Meu coração se partiu aos pedaços. Acordei de um pesadelo, mas continuo nele.

O país, num ato paradoxal, sucumbiu. Rico, mas destruído. As dificuldades aumentaram. Não havia mais como ficar remando contra uma maré que não passava. O jeito era tentar acordar do pesadelo, pois ninguém espera que seu país vai falir. Devemos desbravar um sonho de uma vida melhor. Chile? Colômbia? Peru? Talvez pudesse ser a escolha correta já que a facilidade do idioma era um ponto positivo. Não! O meu sonho vai trilhar o caminho da Língua Portuguesa, um desafio maior.

Muitos dias percorremos, noites dormidas no mato, enfrentando os impropérios temporais e humanos para vislumbrar uma nova possibilidade. Dormimos eu e uma amiga Betsimel, na fronteira.  A voz já não saia mais, o cansaço era maior que a alma, maior que o sonho, a esperança era única no olhar. Trazíamos alguns pertences, porém foram deixados para trás, não havia mais força que permitisse carregar. Voltar não era mais possível, em virtude da distância e o momento passado pelo país. Um país onde a fome e o desespero imperavam.

Chegamos ao novo país! A primeira expressão escutada pela primeira vez na vida: “Bem-vindos! Vocês estão salvos!”. Isso deu um grande alívio, porém o desafio começava ali. Sobreviver! Como?

Dormi muitos dias num quarto com muitas pessoas na cidade de Boa Vista. Precisava fazer alguma coisa para tirar o sustento. Minha mente dizia: “Sei que sou formado Engenheiro Eletricista, porém o que me derem para fazer, eu faço. Era carnaval, aliás, a única coisa que sabia sobre o Brasil. Que festa linda!  Conheci uma amiga especial chamada Rosa Angélica. Eu e ela vendíamos doces que minha amiga Betcimel, venezuelana, fazia. Muitas vezes, saíamos nós três. Éramos inseparáveis: eu, Betcimel e Rosa. 

Num determinado dia, saímos para vender sonho. O sonho que sonhei. O sonho que eu vendo. O sonho de uma vida melhor. A festa glamorosa estava acontecendo. Parei com uma bandeja cheia de sonho, em frente uma grande televisão, pois me encantei com a beleza da festa que estava passando.  Logo, observo um homem que vinha em minha direção, parecia mais um gigante do que homem normal. Pronunciou uma expressão em forma de palavras que não entendi nada. Para mim estava tudo bem! “Sai daí seu venezuelano filha da puta! Aqui não é lugar de vender essas porcarias, saia daí”. Como não entendi nada, continuei onde estava. Foi quando um policial me chamou, fazendo sinal para que eu viesse até ele. Você sabe o que ele te disse? Não, eu não entendi. Ele disse que é pra você ir vender em outro lugar. Olhou-me com um ar de pena e disse: me dá todos esses sonhos que vou comprar de ti. E ainda disse para eu ficar com o troco. Meu coração não resistiu a emoção”.

***

Eu, Laercio, estou escrevendo através de um deslocamento que faço por meio das palavras que brotam de meu coração. Sou autor-mensageiro. Coração de irmão. Deslocamento de empatia. Não há como não verter lágrimas dos olhos, sangrar o coração e a alma. Posso dizer que uso uma técnica literária “life writing” originado do inglês, mas meus dedos digitam o que minha alma dita um esboço passado triste em português, para imaginar que isso possa ser ficção, mas é verossímil.

Muitas vezes, parece-me ouvir em espanhol, as palavras contadas por Daniel. Escrita de vida, vidas sofridas. Vidas marcadas por sonhos destruídos e reconstruídos. Life writing, escritas de vidas que buscam representar múltiplas vidas, muitos Danieis, muitas Rosas. Vidas que se cruzam. Como receber as pessoas em nossas vidas? Como perceber vidas que se cruzam? Por que há divisões territoriais? Por que a sociedade é assim? Quem tem essa propriedade pra dizer a outro ser humano que neste espaço ele não pode conviver? Para amenizar essas duras perguntas, escrevo sobre Daniel, que representa muitas histórias de vidas, que está no corpo, no coração, no sofrimento, no preconceito sofrido, na alma de muitas outros e que, muitas vezes, ninguém percebe os sons silenciosos que ecoam da alma sofrida. Eu tentei perceber.

Encarno novamente Daniel. Minha voz de escritor assume a empatia…

***

“Muitas dificuldades enfrentei em Boa Vista. Sempre passava por um mercado, vendendo sonho. Eu fiz amizade muito forte com Rosa Angélica e Bectimel, saímos vender juntos. O namorado de Bectimel sempre dizia para eu procurar trabalho no mercado onde ele trabalhava. Ofereci-me para trabalhar então, foi quando Cristian Fernandes, dono do mercado, me deu a oportunidade para trabalhar.

E, quando quebramos uma asa, quem poderá nos ajudar a voar? Sem dúvida, um anjo como Marília Azevedo. Que quando fiquei doente dos pulmões ela me levantou com duas asas e me levou ao hospital. Cuidou de mim como se cuida de um filho. Fiquei internado por quase 30 dias. Meu diagnóstico era complicado, pois tinha líquido em um dos pulmões. Marília era esposa de Cristian.

Eu sou anjo, porém preciso nominar que conheci os primeiros anjos brasileiros em Boa Vista. Eu fazia um curso de Português e a Professora me convidou, dizendo que num determinado dia haveria uma integração de culturas brasileiras e venezuelanas e era para ir participar porque nesse dia arrecadariam donativos para depois distribuir. Eu fui.

Num determinado momento lá na praça. Entrou na minha vida um clarão. Observei que as portas do universo se abriram. Escutei a música que me comoveu, era salsa. Meu corpo não se conteve. A bailar ele começou. Eu fui tomado pela música.  Nesse momento meus olhos focaram em duas gurias lindas. Acerquei-me e perguntei se uma delas não era a miss Venezuela. Era encantadora. Uma delas me disse que era Jô Oliveira, brasileira e a outra era Tati e que inclusive nem conhecia quem era a miss Venezuela. Ela era Jô, mas tinha o sobrenome de anjo. Um anjo que entrou na minha vida. Ajudou-me a tirar todos os meus documentos. Ela foi meu anjo. Anjos, muitas vezes, não têm asas, mas têm um coração enorme. Não obstante, ela foi e falou para Cristian para que me aceitasse para trabalhar. Eu disse que eu faria qualquer coisa. Disse que eu sabia limpar muito bem o chão. Aprendi muito. Fiquei um ano e pouco trabalhando no mercado. Neste local, inclusive, vivi uma aventura de um assalto.

Os anjos estavam por toda a parte. Parecia que minha vida se cercou de uma legião de anjos. Anjos que me pegaram pela mão e me ensinaram voar. Jhom e Maria foram alguns desses. Venezuelanos. Nunca tiveram carteira assinada. Viviam em Boa Vista. Sobreviviam. Vendiam picolé e brigadeiro, porém a vida estava difícil. E um dia me falaram. Nós precisamos ir embora, aqui não tem vida. Eu fiquei um pouco preocupado, pois para onde iriam? Jhom me respondeu dizendo que não sabia, mas ali não ficariam mais. “Olha, há um cadastro da ONU e igreja, para ajudar aos venezuelanos irem mais para dentro do Brasil. É para onde tem vaga. Pode ser para São Paulo, pode ser para Bahia, Mato Grosso, pode ser para qualquer estado. Tem mais uma coisa, Daniel. Nós vamos embora em 06 de novembro para o Rio Grande do Sul. Uma cidade Chamada Carazinho”.

A despedida foi dura. O coração chorava apertado. Os olhos emaranhados de lágrimas. Pois os meus amigos, meus anjos se foram”.

O tempo passou. Jhom e Maria foram os pioneiros a descobrir um mundo diferente do Sul do Brasil. Inclusive, tiveram uma bebê. A primeira Carazinhense. Eles sempre insistiam para que eu viesse para Carazinho. Nesse meio tempo, Cristian Fernandes vendeu o mercado e outros assumiram, que mais se configuraram uns exploradores de funcionários. Foi aí que me decidi mudar e arriscar. Quando eu pensava isso, começava a chorar, pois sabia que a distância dos meus parentes, do meu país ficava ainda maior.

O dia de dizer tchau a Boa vista chegou. Primeira parada do avião foi no Pará. Nesse lugar estavam muitos venezuelanos que não havia outra feição no olhar, senão a esperança de um porvir. Alegria era grande, porém muita nostalgia por deixarem muitos irmãos lutando naquela terra de meu Deus. O avião decola novamente. Nesse momento bateu o desespero. As nuvens que passavam pela asa do avião, eram parecidas com as lembranças das vivências. Os parentes que muito mais longe ficaram na Venezuela. Eu só chorava. Com 3 horas de voo chegamos a Brasília. Os comissários do avião foram muito amáveis com todos. Fizeram um banquete para receber-nos. Não precisamos comprar nem uma água. Confesso que passei meio tonto porque o avião era da aeronáutica e o piloto fazia manobras muito bruscas.

Brasília a Porto Alegre. Ao passo que aumentava a distância, meu coração exalava mais ainda uma saudade que doía, pois tinha plena certeza que para voltar era mais difícil. Naquele tempo minhas lágrimas já não escorriam mais, apenas meu coração doía, sabendo que meus parentes ficaram na Venezuela. Eu estava sozinho. Na chegada a Porto Alegre o Piloto disse: – Bem-vindo ao estado do melhor churrasco do mundo! Os repórteres cercaram. Muitas entrevistas. Um padre falou, não entendi nada. Separaram as mulheres e crianças num ônibus e homens em outro. Noutro dia partiria para a cidade que seria meu novo lar, Carazinho.

No dia seguinte, cheguei em Carazinho. Assim que cheguei, meu amigo Jhom ligou para o Jornal Diário da Manhã que fez uma entrevista comigo. A primeira impressão foi das melhores. Eu tinha na mente uma impressão não tão boa dos brasileiros, pois em Roraima as pessoas eram muito preconceituosas, algumas, nem todo mundo. Mas eu sentia. Aqui em Carazinho as pessoas são muito carinhosas.

Agradeço muito meus amigos Jhom e Maria que saíram de Roraima primeiro, fazendo o caminho e graças a eles eu estou aqui nesta cidade. Chegando na cidade, aproximaram-se mais dois anjos: Lorena e Sandra. Pois ouviram na rádio e logo deram jeito de cobertores, alimentos e casa para alugar. Elas sempre estão ao redor nos dando suporte. São como mães.

A abordagem é bem diferente e permite que a gente se sinta acolhido: “Tu é venezuelano? Que bom!” “A tua língua é muito linda!” Fomos até em uma festa gaúcha. “Ah, você é estrangeiro? Que bom!” Seja bem-vindo! E ainda continua sendo muito acolhedora.

E eu sou Daniel Vargas. Sou venezuelano. Sou engenheiro eletricista. Trabalho em Não-Me-Toque, na empresa Stara. Sou anjo que encontrei muitos anjos. Fiz o mesmo processo com outros conterrâneos meus. Sou anjo, mas muitas vezes nossas asas enfraquecem e precisamos que outros anjos nos ajudem a voar”.

“Yo soy  Laercio. Soy brasilero. Soy profesor.  No soy angel de nombre, pero ya fui angel para alguién. Ya tuve mi alas sin fuerzas para volar, fue por eso que he recebido muchos impulsos en mi vida de otros angeles. En este texto, he prestado mis alas, mi inteligencia, mi mente para organizar la historia del angel llamado Daniel. Me gustaría que esta historia fuera solo una ficción inventada por mi capacidad linguistica y literaria.  Que lástima! No es! Vidas que se cruzan. ¿Cómo recibimos las personas en nuestras vidas? ¿Cómo percibir cuando vidas se cruzan? La mia se cruzó con a la de Daniel. Muchas personas pasan por nuestras vidas y no dejan nada. Otras pasan por nuestras vidas y dejan lecciones de vida, que sirven para quedarnos más fuertes”.



Fotos: Arquivo pessoal/divulgação

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