O teatro como prática formativa da sensibilidade

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No teatro tem-se um grupo que dialoga, organiza, experimenta e que se conecta interdisciplinarmente, potencializando a criatividade. Constantemente, o grupo e cada indivíduo exercita memória, atenção, compreensão textual, imaginação e expressividade. No acontecer do teatro há um educar-se coletivo dos que estão em cena mediatizados pelo público que também se educa.

O que é o teatro se não a arte de representar papéis? Com certeza, esta não é uma boa definição. Porém sabe-se que teatro não significa prédios/edifícios, narrativas, atores, formas e estilos. Em sua obra A porta aberta: reflexões sobre a interpretação, Peter Brook (2011) discute este problema conceitual destacando a dificuldade para definir a palavra “teatro”; por fim se satisfaz afirmando que a essência do teatro reside num mistério chamado “o momento presente” e este por sua vez é surpreendente.

Para este breve escrito fico com essa breve definição do teatro como sendo a “a arte de representar papéis”. Da peça teatral participam todos os presentes: atores, plateia e os demais envolvidos no espetáculo. No teatro a sensibilidade sai por todos os poros, pois ele é genuíno, tenso, emocionante, inteligente, envolvente. As narrativas teatrais são histórias “ao vivo e a cores”.

Teatro é vida, afirma Peter Brook (2011), mas não se pode apresentar no teatro a “vida tal como ela é” porque seria tedioso. Também não se pode deixar de mostrar a vida porque não haveria identificação com a plateia. Mas então como se faz teatro? Teatro se faz com atores, pessoas que emprestam aos personagens uma exuberante vida interior.

Nas palavras do autor, “vamos ao teatro para um encontro com a vida, mas se não houver diferença entre a vida lá fora e a vida em cena, o teatro não terá sentido. Não há razão para fazê-lo. Se aceitarmos, porém que a vida no teatro é mais visível, mas vivida do que lá fora, então veremos que é a mesma coisa e, ao mesmo tempo, um tanto diferente. Convém acrescentar algumas particularidades. A vida no teatro é mais compreensível e intensa por que é mais concentrada (Brook, 2011, p.8).

Na vida real, utilizamos muitas palavras desordenadas e repetitivas. No palco a vida está mais condensada no tempo e no espaço. Com alguns movimentos e poucas palavras, atores conseguem dizer e fazer sentir o que na vida real levaria horas e talvez meses para ser tido ou sentido. Atores não são marionetes, pois se fossem, poder-se-ia dispensá-los e deixar que bonecos traduzissem as narrativas teatrais e não importa se é a obra Hamlet ou qualquer outra narrativa comercial.

A sensibilidade dos atores é fundamental para um bom espetáculo teatral. No entanto, não é somente a sensibilidade, mas a capacidade de ao contracenarem criarem algo novo que não está no texto, não está no cenário e em nenhuma técnica experimentada para lá de “mil vezes”. Os atores experimentam a interdisciplinaridade de uma forma jamais vista em sala de aula ou em grupos de pesquisas. Porque não se trata de cooperação ou de empréstimos de um saber específico compartilhado, trata-se de criação. Precisamos ficar atentos para as múltiplas tarefas que executam. Os atores se colocam à disponibilidade para aprender e absorver outras práticas que não pertencem à especificidade de ator.

No palco eles cantam, dançam, poetizam, interpretam papeis, montam cenários, experimentam com seus personagens múltiplas profissões, vivem dilemas humanos, aprendem a brincar e tantas outras experiências encantadoras. Diz Brook (2011, p.52): “A grande pergunta que os seres humanos fazem eternamente é: ‘Como devemos viver?’ Mas as grandes questões permanecem completamente ilusórias e abstratas se não houver uma base concreta para sua aplicação na prática. O teatro é maravilhoso porque é justamente o ponto de encontro entre as grandes questões da humanidade – vida, a morte – e a dimensão artesanal, extremamente prática”.

Na vida escolar já existem experiências multidisciplinares que utilizam o teatro para reforçar conteúdo, dinamizar o conhecimento, entreter, tornar a vida mais divertida ou para aliviar o tédio causado pelos repetitivos e desconexos conteúdos escolares.

Algumas escolas possuem oficina de teatro ou artes cênicas dentro da disciplina de Artes. Outras têm o teatro com atividade extracurricular. Cabe também frisar que a longa data pedagogos e pesquisadores do ensino já mostraram pela via científica que o brincar, o jogar, o lúdico e que os jogos dramáticos são fundamentais para o desenvolvimento do ser humano.

Educa-se para sensibilidade em qualquer momento e situação. Para isso é preciso ficar atento ao mundo da vida. Certa vez, um adolescente enquanto falava sobre um assunto que nada tinha a ver com o que suas mãos faziam, estando ele próximo de uma pequena árvore cujos brotos nasciam, ficava arrancando-os sem nenhuma preocupação ou sentimento de destruição. Ele só parou de arrancar os brotos após ter sido repreendido por um adulto. Destaca-se aqui o fato do garoto não ter sido “afetado”. A chamada de atenção não o fez pensar no que estava fazendo. Para ele não havia nada de errado. Sua falta de sensibilidade com a planta era descarada e, obviamente a sua apresentação pública não havia nada de belo. É bem provável que sequer compreendia a totalidade do contexto. Talvez se este indivíduo tivesse tido experiências que envolvesse o plantar, o regar, o cuidar ele conseguisse dar-se conta do seu agir no mundo naquele momento.

Se queremos seres humanos mais sensíveis aos contextos, então precisamos educá-los e para isso é preciso vivências. O fato de alguém ter muito conhecimento não significa naturalmente que se tornou um ser sensível para todos os contextos.

Como já foi dito anteriormente, a sensibilidade tem a ver com percepção e esta é a elaboração mental das sensações. Um contexto pode oferecer inúmeros estímulos às sensações. No entanto, não prestamos a atenção em tudo que está ocorrendo ao nosso redor. Coisas nos passam despercebidas, o que na visão de algumas pessoas possa aparentar insensibilidade. Quanto maior for a percepção do ambiente maior nossa apreensão da realidade.

O ser humano precisa de uma experiência estética do cotidiano porque esta é capaz de fazer aflorar seu potencial sensível. Estética, segundo Nadja Hermann (2005, p.34) “é um termo derivado do grego aisthesis e significa sensação, sensibilidade, percepção pelos sentidos ou conhecimento sensível-sensorial”. O belo, o bom gosto, o bom humor define o ser humano tornando-o uma pessoa melhor na sua relação consigo mesma, com os outros e com as coisas.

A estética enquanto totalidade da vida sensível significa uma ampliação das percepções. Segundo Morin (2013, p. 342), “a relação estética não deve ser considerada um luxo. Ela nos remete ao melhor, ao mais sensível de nós mesmos. Ela nos envia uma mensagem de autenticidade a respeito de nossas relações com os outros, com a vida, com o mundo”.

As pulsões são eventos naturais, mas precisam ser educadas e neste quesito concordamos com Schiller (1991) “as pulsões naturais” emanam da vida e por vezes são opostas. O sensível é corpóreo, parte da existência física do homem. Essa sensibilidade pode levar o sujeito a seguir as inclinações das paixões. Porém, viver apaixonadamente o tempo todo pode ser destrutivo. Por isso Schiller (1991) vai insistir no equilíbrio destacando a importância do impulso racional. O belo, para o filósofo, é justamente o encontro entre a sensibilidade e a racionalidade. Quem sabe a tarefa de uma educação para sensibilidade possa ser religar o sensível ao racional.

Sendo o teatro uma arte, sem dúvida, a experiência dele permitirá ao ser humano uma autocompreensão de seu “ser e estar no mundo”, além da expressão cênica e da narrativa que fazem a dramaturgia e que, por si só, já revela valor estético e educativo. Atividades dramáticas liberam a criatividade revigorando a potencialidade imaginativa do ser humano e sua capacidade para a improvisação. Que ser humano não brincou de “faz de conta”? Na infância representar papéis é algo espontâneo e revelador da situação interna e afetiva da criança. “As capacidades de expressão – relacionamento, espontaneidade, imaginação, observação e percepção – são inatas no ser humano, mas necessitam ser estimuladas e desenvolvidas, por meio de atividades dramáticas, musicais e plásticas” (Reverbel, 2009, p. 23).

Não significa dizer que teatro é um “faz de conta”.

Sabemos que teatro é feito por atores “com vivacidade intelectual, emoção verdadeira e corpo equilibrado” (Brook, 2011, p.14). Uma criação artística teatral requer pensamento, sentimento e corpo em perfeita harmonia. No espetáculo teatral alguns elementos são indispensáveis: ator, diretor, texto (personagem) e espectador. Para unir estes elementos exige-se trabalho duro. Muito estudo, ensaio, talento, dinamismo e comunicação. 

O que nos interessa aqui é entender que desde muito cedo o ser humano cria personagens para revelar-se e para comunicar algo ao mundo. Que possui grande capacidade imaginativa e que por meio de narrativas consegue envolver-se e envolver o espectador de tal forma que este se torna peça fundamental para o valor do espetáculo. Para Peter Brook (2011), a plateia é cumplice dos atores. Se isso não acontecer o espetáculo não faz sentido.

Podemos ler um texto sem uma conexão sensível com a história; podemos escrever um artigo sem nenhum envolvimento afetivo; podemos participar de uma brincadeira de grupo superficialmente; podemos viver até mesmo um relacionamento amoroso sem uma entrega; no entanto, arriscamos afirmar que não podemos fazer teatro sem envolvimento total dos participantes. Tal envolvimento se traduz em emoções, afetos, sabedoria, conhecimento, responsabilidade, colaboração, entrega, sentimentos, atitude, aprendizagem, humanidade. Por isso, o acontecer do teatro é uma profunda prática da sensibilidade, assim como uma visceral e instigante experiência interdisciplinar, pois mobiliza nossos sentidos, nossos sentimentos, nossas emoções, nossas faculdades cognitivas, nossas compreensões e percepções do mundo.

No acontecer de um jogo dramático, não importa se o método de aprendizagem ou a possibilidades de mensuração são para fins avaliativos ou estatísticos; o que importa é o acontecer da experiência total, o relacionamento, a criação, os afetos, as parcerias, a compreensão da realidade e as experiências vivenciadas.

Em sua conhecida obra Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire (1987, p.68) já dizia que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo”. Encontro nesse anúncio freireano não só uma profunda visão coletiva de formação, mas também uma concepção interdisciplinar de educação. Da mesma forma, me arrisco a afirmar que o teatro é uma experiência coletiva e, poderíamos complementar o anúncio freireano dizendo que somos afetados constantemente no encontro de um com o outro.

No teatro tem-se um grupo que dialoga, organiza, experimenta e que se conecta interdisciplinarmente potencializando a criatividade. Constantemente, o grupo e cada indivíduo exercita memória, atenção, compreensão textual, imaginação e expressividade. No acontecer do teatro há um educar-se coletivo dos que estão em cena mediatizados pelo público que também se educa.

A arte de representar papéis exige do ator despojamento de si mesmo para se colocar no lugar do outro. Ao viver um personagem, o ator experimenta “outra vida” que lhe permite um aprendizado do sensível. Além desse ganho pessoal do ensimesmar-se, existe o envolvimento dos sujeitos entre si, com a narrativa, com a plateia e isso os afeta emocional e cognitivamente. Por todas estas razões, o teatro se apresenta como uma estratégia formativa da sensibilidade de primeira grandeza.

As reflexões apresentadas neste escrito fazem marte de um escrito maior que desenvolvi a seis mãos com minha filha Camila Fávero e minha esposa Alcemira Maria Fávero num capítulo intitulado “A vivência teatral como experiência interdisciplinar formativa” (Fávero; Fávero; Fávero, 2018). Foi Camila que nos apresentou os escritos de Peter Brook e nos ajudou a compreender a grandeza do teatro como experiência formativa da sensibilidade. Sua vida de artista, sua sensibilidade em capturar as dores e as alegrias da existência servem de inspiração constante para nossas vidas e para pensar essa comunhão entre teatro e educação. Para os que desejarem ler o capítulo na íntegra, segue o link para acessar todos os capítulos da coletânea Interdisciplinaridade e Formação Docente (Fávero; Tonieto; Consaltér, 2018).

https://www.researchgate.net/publication/323408674_Interdisciplinaridade_e_formacao_docente

Referências:

BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

FÁVERO, Alcemira Maria; FÁVERO, FÁVERO, Camila. A vivência teatral como experiência interdisciplinar formativa. In: Altair Alberto FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (orgs.). Interdisciplinaridade e Formação Docente.  Curitiba: Editora CRV, 2018, p.139-157.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.

HERMANN, Nadja. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

REVERBEL, Olga Garcia. Jogos teatrais na escola: atividades globais de expressão. São Paulo: Scipione, 2009

SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética da humanidade. São Paulo: EPU, 1991.

Autor: Altair Alberto Fávero. Professor e Pesquisador do PPGEdu/UPF – altairfavero@gmail.com Também escreveu e publicou no site “Educar para humanizar e resistir à racionalidade neoliberal”: www.neipies.com/educar-para-humanizar-e-resistir-a-racionalidade-neoliberal/

Edição: A. R.

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