Vamos sendo conduzidos pelo vento das descobertas e das confirmações, como gaiolas abertas, que nos permitem cair no vazio das incertezas, que só a leitura e a escritura proporcionam, e voar para longe, num voo desconcertante e belo, de imensa liberdade, mesmo na rigidez das cores de chumbo e do cheiro acre da prisão.
Considerando que o papel da educação no sistema prisional seja o de exclusivamente ajudar a pessoa privada de liberdade a desenvolver habilidades e capacidades para estar em melhores condições de conquistar as oportunidades socialmente criadas ao ser inserida novamente na sociedade, iniciamos, há algum tempo, numa unidade prisional de Canoas, no RS, uma prática que denominamos oficinas de criação textual. Tais práticas ensejam, através um recorte de habilidade e ousadia – a Escrita, a construção de instrumentos para que as condições anteriormente citadas sejam otimizadas.
Sob outra perspectiva, no entanto, para além desse objetivo (constitutivo inclusive de leis e portarias), nosso olhar repousa sobre a pessoa e não sobre um número ou uma categoria, como muitas vezes o/a privadao/a de liberdade é referido/a.
Se, de um lado, o homem ou a mulher privados e privadas de liberdade tendem a ser sumariamente obscurecidos e obscurecidas por instâncias sociais as quais geralmente só tem olhos para os fatos imediatamente compatibilizados com seus interesses e para experiências adjacentes, de outro, podemos dizer que, de nossa experiência dialógica com os privados de liberdade, em que “promover, defender, amar e servir a vida” (Pastoral Carcerária da Igreja Católica – Missão) se concretiza como objetivo primeiro, surge a inquietação proveniente de nosso comprometimento com tais pessoas. Tal comprometimento não se limita à “visita”, uma vez que nosso compromisso também se alinha com as questões que envolvem as causas e as consequências das realidades prisionais.
Dessa forma, buscaram-se estratégias para desenvolver as Oficinas que levassem os participantes a construírem-se ou (re)construírem-se por meio, primeiramente, do desejo de se tornarem visíveis para a sociedade. Buscamos com que propostas emancipadoras para práticas de leitura e escritura se constituíssem em criadoras de horizontes, que intencionassem o mundo, o interrogassem e levassem a construir percepções e concepções de novas realidades possíveis para eles próprios.
Neste sentido, nosso eixo calcou-se nos princípios da Educação Popular, os quais se materializam, dentre outras trilhas, como resistência ao imediatamente visível, pela busca do que está “por trás”, lá onde se podem politizar as relações sociais (Brandão, 1984), moldando respeito pelo individual e pelo coletivo, podendo, inclusive, a partir daí, protagonizarem-se, os privados de liberdade, numa transformação de si e (por que não?) do circundante.
Assim, se considerarmos que o confinamento propende à anulação e à invisibilidade da pessoa, uma proposta de desenvolvimento para práticas de leitura e escritura só nos pode levar a pensamentos como:
- é necessária a busca de resgate da identidade da pessoa confinada;
- a identidade da pessoa remete à sedimentação de sua dignidade que cremos muitas vezes perdida no confinamento;
- a dignidade humana é direito de todas as pessoas, garantida constitucionalmente;
- segundo especialistas, a escrita, com suas narrativas, (não necessariamente a escrita “certa”, pois não se trata de aulas!) auxilia no processo emancipatório do ser humano em que ele constroi redes de esperança para si, em primeiro lugar para, depois, ajudar a construir para outros;
- a necessidade de promover a inclusão da pessoa não-alfabetizado e dos idosos e idosas.
Assim, podemos dizer que, longe de ser uma proposta articulada e acabada, estamos sempre, a cada encontro, permitindo que visões de mundo e intuições sejam nossas “ferramentas de oficina”. E vamos sendo conduzidos pelo vento das descobertas e das confirmações, como gaiolas abertas, que nos permitem cair no vazio das incertezas, que só a leitura e a escritura proporcionam, e voar para longe, num voo desconcertante e belo, de imensa liberdade, mesmo na rigidez das cores de chumbo e do cheiro acre da prisão.
Sugestão de leitura: Obra Cartas de liberdades, autora Marli Silveira. Conheça mais aqui: https://www.neipies.com/cartas-de-liberdades-obra-que-reflete-existencia-e-encarceramento/
Autora: Ir. Marta Maria Godoy
Edição: A.R.
Incrível! A autora, como sempre, dedica a própria existência em prol do evangelho, colocando os muitos dons a caminho.