Será que o volume brutal de ódio de cunho político, nitidamente instaurado no Brasil, tenderá a funcionar como uma catarse ou como uma cultura? Ou como catarse cultural?
Ódio é um desses conceitos vulgares que dispensam maiores definições. Ao ouví-lo todos sabem com certa precisão do que se trata. Parece mesmo algo intuitivo ou instintivo, que muitos não controlam. Antes, o incentivam. Etimologicamente, catarse (do grego kátharsi) significa purificar, purgar, limpar. Cultura, a rigor, diz respeito àquilo que se cultiva. E, no final das contas, tem-se o que se cria, replica e promove, para o bem ou para o mal.
De par com essas ideias, é possível refletir um pouco sobre práticas em curso. Práticas que, a olhos vistos, crescem dia após dia e se configuram em cultura do ódio, da violência, da barbárie, da incivilidade, da força bruta, da decadência ética, da desumanização.
As palavras parecem não mais dar conta da realidade diabolicamente reinventada todos os dias por todos os lados desse imenso país, em que paradoxalmente muitos chamam de “pátria amada”, ao mesmo tempo em que fomentam a intolerância e o ódio. Realidade que nos encobre, nos amedronta e causa repugnância.
Porém, para quem se propõe refletir com bom senso, a bestialidade não é horizonte. É, ao contrário, ruína a ser superada. A humanização, ou gentificação (ato de tornar-se gente) como dizia Paulo Freire, exige diálogo, respeito à realidade e à dignidade do outro. Requer o exercício quase nunca fácil, mas sempre imprescindível, de colocar-se no lugar do outro/a, de “sentir com”, de ser solidário, de promover o bem viver entre todos.
A cultura que vem se sobressaindo é a do ódio, quando se precisa tanto de paz, resultante da justiça social.
A violência não é uma emergência e nem uma ocorrência recente. Ela está presente em toda a história da humanidade. Agora, contudo, está sendo promovida de forma absurda, tendo as mais diferentes motivações e nuances. Diante dela pode-se ter distintas reações, desde o incitamento, passando pela naturalização, banalização e indiferença até a indignação, a criação de mecanismos para contê-la e o fortalecimento de meios para promover a pacificação ativa.
Ademais, é possível também criar hipóteses, reflexões e teses. Será que o volume brutal de ódio de cunho político, nitidamente instaurado no Brasil, tenderá a funcionar como uma catarse ou como uma cultura? Ou como catarse cultural? Se como catarse, uma vez expelido o capital represado de ódio bestial, a tendência seria retomar certa normalidade civilizatória. Se fluir como cultura, quanto mais ódio e violência expressos, tanto mais se tenderá a ter o mesmo produto.
Estamos caminhando em qual direção nessa Terra Brasilis, nos seus 200 anos de uma dita independência?
A experiência histórica e societária mostra que a intolerância tende a gerar mais intolerância; ódio e violência, igualmente. De outra parte, como dizia José Datrino (o Profeta Gentileza): “Gentileza gera gentileza”. Porém, sob o império das armas, das macabras palavras e das ações violentas que nos governam, essa (a gentileza) tem sido ofuscada, menosprezada e tratada como “coitadismo”. A educação, a sensatez, a sensibilidade e a dignidade humana, do mesmo modo.
Nesse contexto, haverá ainda utopias a serem perseguidas? Sim, certamente. Muitas, todas! Entre elas, as que parecem tão naturais e que noutros tempos estavam muito mais ao alcance do povo, sobretudo dos mais pobres. Necessário agora fortalecer a luta pelo que perdemos e/ou nunca conquistamos: a justiça social, o respeito, a cultura da paz, a soberania, a democracia; o investimento em saúde, educação, trabalho decente; alimentação suficiente e de qualidade para todos; demais direitos e serviços públicos.
O amanhã haverá de ser aquilo que plantarmos hoje e que cultivarmos sempre. Oxalá sejam reflorestados os desertos do chão e da alma.
Queiramos todos/as que o estágio de estupidez que assola o mundo e, em particular o Brasil, dê lugar a um padrão mais elevado de sensatez! Queiramos igualmente que o bem viver de todos/as se instale como grande utopia (inédito viável – nas palavras do educador Paulo Freire) e que avancemos de fato em termos civilizatórios e humanitários!
Para filósofo Byung-Chul Han é possível adquirir o poder por meio da violência, mas é um poder frágil. “É um erro pensar que o poder remete à violência. A violência tem uma intencionalidade completamente distinta do poder”. Tanto a macrofísica da violência quanto o poder “do soberano” são fenômenos da negatividade. (Altair Fávero) Leia mais: https://www.neipies.com/reflexoes-sobre-a-topologia-da-violencia/
Autor: Dirceu Benincá
Edição: Alexsandro Rosset