Operação Cruzeiro do Sul   

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O Senhor ordenou a Noé que construísse uma arca na qual sua família e “tudo o que vive, de toda carne fossem salvos do Dilúvio, Suas águas destruíram os iníquos e todas as criaturas que viviam na terra, exceto as que estavam na Arca. (Gênesis 6:19)

Sensibilizados pela campanha de ajuda aos flagelados pelas enchentes no Estado do Rio Grande do Sul, quatro membros da Academia Passo-Fundense de Letras e mais alguns amigos dirigiram-se até a cidade de Cruzeiro do Sul/RS para fins de levar donativos aos desabrigados e prestar-lhes solidariedade. A cidade e seu interior foram as mais penalizadas pela força das águas do rio Taquari.  Foi num sábado de junho/2024 de intenso sol radiante, exatamente uma semana depois da grande inundação que atingiu, principalmente as cidades de Roca Sales, Muçum, Encantado, Arroio do Meio, Lajeado, Estrela, Cruzeiro do Sul e Venâncio Aires.  

Começamos a sentir os efeitos dos temporais no caminho de descida da serra de Pouso Novo devido aos deslizamentos das encostas sobre a pista da BR 386, também nomeada como rodovia Leonel de Moura Brizola. Enfrentamos algumas paradas por meia pista, solavancos, pequenas cachoeiras, pedras, lama e água na pista até a chegada na ponte curva do rio Fão. Dali em diante, o cenário era uma verdadeira terra arrasada: desmoronamentos das margens dos afluentes do rio Taquari, árvores arrancadas pelas raízes, restos de casa dos agricultores, casas de veraneio, lavouras varridas, crostas das terras levadas, pedras e lajes no meio do caminho, roupas e colchões, sofás nos galhos das árvores das margens dos rios, cujas águas apressadas pediram apenas passagem, inclusive ao longo das duas margens.

Chegando na cidade de Cruzeiro do Sul, deparamo-nos com mais de 50% da cidade arrasada, especialmente nas margens curvas e nas partes mais planas e baixas. As águas passaram fortes e rápidas, tomando conta das residências, lojas, escolas, ruas e praças, deixando no caminho muita lama, restos de tudo, inclusive animais mortos e algumas vítimas humanas até então não encontradas. O lixo e o pó escuro marcavam presença em toda parte. Tudo era tão real, dando a impressão de que um Tsunami tinha passado em direção ao lago Guaíba e ao mar.

E depois veio a bonança. Agora, passada uma semana, ali estava o rio Taquari em seu leito normal. Damo-nos conta de que os rios têm três estados: rio em tempo de seca, rio em tempo normal e rio em tempo de enchente.  Em tempo de seca parece desidratado, fraco e de pouca vida. O rio em tempo normal é saudável, piscoso, navegável e tranquilo. Por fim, o rio em tempo de enchente é agressivo, violento, intolerável com tudo o que estiver a sua frente e as suas margens próximas. Desde crianças aprendemos que há de se recuar das fúrias destruidoras das águas e do fogo. Com elas não se brinca, ensina um provérbio.    

Nossa caravana, constituída por 7 pessoas em 3 camionetes lotadas de donativos, especialmente livros, material didático, roupas e cobertores foi gentilmente recebida, no Centro de Acolhimento, pelo Tenente Pedro, aposentado da Brigada Militar, o qual nos guiou para outros locais onde estavam os desabrigados, bem como para os principais pontos onde as águas causaram danos irreversíveis no município de Cruzeiro do Sul. Os donativos de ordem escolar, como livros infantojuvenis e material didático, ficaram por conta da diretora e professores de uma escola municipal seriamente danificada, pois de tudo só restaram as paredes e o telhado.  Sabíamos que os cenários seriam fora do imaginário comum. Porém, a realidade trágica encontrada parecia um pós-guerra sem o uso de armas. Além estavam, diante dos nossos olhos, os sinais da fúria da natureza. Uma escola, longe e no alto, no meio do caminho de um afluente, parecia um prédio mal-assombrado. Sem portas e janelas. Nada de cadeiras, mesas e escrivaninhas e biblioteca.      

As pessoas atingidas pela fúria do rio Taquari, pareciam, ao mesmo tempo tristes e esperançosas, dizendo que logo tudo isso iria passar que tudo ficaria bem novamente, pois tudo é impermanente. Recuperariam as casas, as coisas perdidas e a alegria por estarem num lugar onde criaram raízes, seus filhos e donde tiraram seus sustentos. E nos perguntaram:

– Sair dali e ir aonde? A culpa é de quem, nos perguntavam.  Respostas não tínhamos a dar. Só ouvimos.  

Almoçamos com um grupo de professores junto à Secretaria Municipal de Educação.  Há um restaurante panorâmico onde se visualiza a cidade de Cruzeiro do Sul, o rio Taquari e as cidades de Lajeado e Estrela.  Vista que deve ser linda à noite e em dias de boa visibilidade. Sentamo-nos em uma das mesas do restaurante vazio. Alguns haviam trazido um lanchinho de casa. Outros aceitaram marmitas prontas a serem distribuídas, mas que haviam sobrado. Nelas havia arroz, feijão, maça e carne de panela. Tudo estava bem temperado e gostoso. A quentinha dava para duas pessoas.  Serviram-me também uma garrafa com água mineral. Tudo era produto de doação e do trabalho de muitos voluntários. E assim matamos a fome do meio-dia. A solidariedade nos marcou profundamente.  

À tarde, guiados gentilmente pelo Tenente Pedro, a caravana rumou às margens do rio Taquari. O cenário deu-nos a impressão de estarmos sozinhos no silêncio de um cemitério de casas, árvores, lixo de todas as espécies, além do cheiro nauseabundo. Estávamos na rua beira rio onde outrora havia comércio, casas de moradia e de veraneio. Que silêncio perturbador! Alguns ex-moradores indicaram onde estiveram suas ex-residências. Nada, além de um piso de banheiro, um muro, ou um teimoso toco. Tudo tão pouco e nada! Lembrei-me da frase inicial do romance Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa:

– Nonada!

Na cidade de Cruzeiro do Sul, constituída por descendentes com fortes marcas da colonização alemã, perguntei ao um idoso que circulava pela área:

– O que será feito do que restou? A resposta foi:

– Sei lá! Talvez um parque florestal, um memorial, um aterramento…

Saindo dali, fomos ao Centro de Acolhimento, onde já tínhamos passado. Contaríamos histórias às crianças. Havia uma meia dúzia. Todos com idade em torno de 5 anos. Não havia coordenação. Mesmo assim, conseguimos juntá-las num pequeno círculo ao chão.

Enquanto nos esforçávamos para obtermos a atenção das crianças, duas ficaram bem atentas ao que lhes era narrado. Outras subiram nas costas, outras no colo da contadeira, outro puxava a barba e o cabelo do narrador. Eu, que estava de pé a mostrar livros para crianças, ganhei uma boa mordida na barriga da perna. O menino só não me tirou um naco de carne, pois era muito dura: exatos 70 anos. Mancando, tive que resgatar um Livro de Animação que uma criança havia selecionado, pois julgou que o teria ganho de presente. Estava com seus avós.

Finalizada a sessão de contação de histórias, vi uma colega buscando se livrar de um menino que não saia do seu colo. Essa foi nossa primeira sessão de contação de histórias no Centro de Acolhimento. É mais uma boa história para se escrever e contar nessa vida de professor. Tão simples!  Elas estão em todos os lugares.   

Depois nos dirigimos a outros dois Centros de Acolhimento.  Ambos em clubes cedidos pelas comunidades do interior.  Por ser sábado e se desestressarem, muitos tinham saído para visitar amigos e familiares. Enfim, saíram daqueles ambientes improvisados, sem privacidade e com muita gente desconhecida. No entanto, lá permaneceram alguns casais de idosos, adoentados, sem parentescos. Um outro morador de rua. Tudo muito tétrico!

Nos últimos Centros de Acolhimento das pessoas desabrigadas pelas enchentes também buscamos contar histórias às crianças. Em um deles, em paralelo, havia um torneio de futebol e um grupo de voluntários distribuindo pipocas feitas na hora. Ao final restaram duas ou três crianças para ouvir nossas histórias, pois pipocas feitas na hora, se consome no agora. E para lá se foram as crianças.

Era chegada a hora do retorno da caravana a Passo Fundo, pois o caminho era longo e perigoso na Serra de Pouso Novo.  Estava quase finalizada a Operação Cruzeiro do Sul por conta de uma pequena equipe de confrades e confreiras da Academia Passo-Fundense de Letras. Em nome dos demais, ela exerceu a legítima solidariedade em favor das pessoas atingidas pelas enchentes da serra e da metade sul do RS/2024.

Avaliando a Operação Cruzeiro do Sul, no retorno, discutimos as reais causas das reiteradas enchentes no RS. Há certeza de que as secas, as enchentes, as micro explosões climáticas, os incêndios, os tornados, os tufões, dentre outras tragédias da natureza, são consequências humanas do aquecimento global verificado em vários países – efeito estufa – consequências, da queima dos combustíveis fósseis.  Seria uma simples conversa entre o motorista e o caroneiro no caminho de volta a Passo Fundo. Parece-nos que o Aquecimento Global também é um caminho que tem volta.  Bastam atitudes urgentes de caráter pessoal e universal para combatê-lo.

FOTOS: Divulgação/ arquivo pessoal

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também escreveu e publicou no site “Rios do céu e da terra”: www.neipies.com/rios-do-ceu-e-da-terra/                                                                   

Edição: A. R.

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