Os corpos marcados

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Para quem nunca entrou numa prisão é impossível saber o que é a impossibilidade da locomoção livre. Dostoiévski teimava em aparecer: é preciso sair das gaiolas, ter coragem para o voo… mas como, meu Deus?, tudo está tão longe!

Esta é uma das crônicas que surgiram a partir de minha atuação na Pastoral Carcerária da Igreja Católica. Durante os últimos 4 anos nosso pequeno grupo (com o hiato causado pela pandemia de covid), alicerçado pelos princípios do Evangelho de Jesus Cristo, volta seu olhar para os privados de liberdade e os visita uma vez na semana.

Nosso objetivo a priori é a escuta. O que eles têm a dizer? O que suas vidas têm a dizer?  Como podemos estar presentes, a partir dessas falas?

A expressão “sistema prisional” faz parte do rol de assuntos de que muitas pessoas (boas cristãs, inclusive!) passam ao largo ou abertamente se posicionam por deplorar!

Parto do princípio de que o silenciamento pode significar aquiescência, por isso estou aqui, a escrever. O silenciamento pode nos colocar num menear de cabeça afirmativo, quando nossa vontade é gritar “não”. Além de, se de um lado, falar sobre prisão, assunto que a sociedade como um todo torna invisível e mudo, numa indiferença coletiva que é capaz de amordaçar qualquer fala, pode se tornar mesmo uma árdua tarefa, de outro, sabemos que levantarem-se questões acerca de uma chaga social, como os sistemas prisionais, ainda que sob o manto de um texto literário, pode colaborar para que a invisibilidade e o silenciamento se tornem mais do que manchetes sensacionalistas de programas de tv. Dito isso, segue o olhar:

Não era uma tarde das mais agradáveis. Fazia muito frio e caía uma chuvinha fina, comum por aqui em qualquer junho. É quando a paisagem e os prédios adquirem tons de cinza.  Não era a primeira vez que lá estávamos. Demoramos para entrar, que tudo é demorado na prisão. Em tudo há pontos finais, as vírgulas foram esquecidas lá fora.

Passados pelo escâner, pela segunda segurança, e eis-nos, enfim, sob o mesmo teto que nossos irmãos privados de liberdade – teto cinza, de fala cinza. Caminhamos pelo corredor num curto caminho cinza e, depois de passarmos por duas grades, esperamos a última porta se abrir, sugada por um segurança, lá em cima.

Por fim, já dentro de uma mistura de salão com pátio – parte com teto, parte sem teto, porém com grades em cima, e dos lados, como grandes gaiolas, encontramos aqueles que já nos esperavam. Quase sessenta pessoas! A maioria dos olhares se voltaram para nós, nesta chegada, e os cumprimentos, os apertos de mão, os parcos sorrisos, nos receberam.

Tratava-se de uma visita, tratava-se de um encontro.

Caminho mais para o fundo, na parte coberta e sento no banco de metal gelado, que se estende ao longo de grandes mesas de igual material. A princípio tudo parece igualmente gelado; mas, de repente, atraio a atenção de um jovem, que se senta em frente, e entabulamos uma conversa. Observo seu rosto.

– A senhora pode falar com minha mãe e dizer que eu tô aqui. Ela não tá sabendo.

Os olhos me fitavam com uma mistura de possibilidade e a angústia de um não.

Pensei por um instante na gaiola. Para quem nunca entrou numa prisão é impossível saber o que é a impossibilidade da locomoção livre. Dostoiévski teimava em aparecer: é preciso sair das gaiolas, ter coragem para o voo… mas como, meu Deus?, tudo está tão longe!

– Claro, posso sim. Sabe o telefone?

Pensei ver um sorriso tímido.

– Sei.

Ao contrário do que se imagina, a conversa é monossilábica e, de tão lenta, parece levar horas até que uma nova frase seja dita. E ele me diz o número, que anoto na agenda. Estou escrevendo, mas sinto seu olhar atento, certamente torcendo pra eu não errar o número, porque essa é a última chance pontifícia para uma comunicação quase pública, sem privacidade nenhuma… depois, só dali a uma semana, quando volto.  Ele repete o número. Releio. Está certo. Que bom que temos memória!

– A senhora vai ligar, então? – insiste.

– Vou.

Neste momento, olho definitivamente para ele: suas parcas roupas, camiseta, que um dia fora branca no corpo de outro, uma bermuda (meu Deus do céu, devia estar fazendo uns 15 graus!), uma coberta – de algodão prensado – sobre os ombros que, de noite, o cobre no sono talvez sem sonhos. E então, me lembro que estou agasalhada, meu corpo marcado pelo calor, enquanto o jovem à minha frente sela com o seu corpo a marca da tortura pela qual passa, e não consigo parar de pensar em Michel Foucault, quando nos mostra que todo poder busca colocar sua marca no corpo ou, inversamente, o corpo é o receptáculo privilegiado da vontade de poder.

Mais alguns minutos e nós, os “livres”, transpomos as grades, no sentido da saída. Vão comigo um número de telefone e o aprisionamento de uma vergonha humana espetacular pelo corpos marcados.

Autora: Ir. Marta Maria Godoy

Edição: A. R.

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Sensibilidade sagrada entre o olhar do prisioneiro e da pessoa livre. Atitude de acolhida é um dos traços maiores da inteligência. Belo texto, Irmã!

  2. Parabéns Irmã Marta por ser essa pessoa dotada de dons e sensibilidade humana. Faz nós chorar revelando o velado, trazendo a vista o invisível. Realmente “Sistema Prisional”??? “Os corpos marcados” … Escutar o que eles tem a nós dizer? O que suas vidas nós falam?
    Como estar presente,ser presença?
    Com certeza é uma missão de misericórdia.”…Eu estive preso, doente, nú, faminto…e você me visitou teve compaixão de vim”

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