Vimos no livro, linha a linha, página a página, como é o gaúcho, o seu ser, o seu fazer, como se forja o homem trabalhador da estância, como a imagem que se tem desta mesma pessoa: homem, solitário, vivendo isolado numa fazendo, morando, alimentando-se no galpão. Homem vivendo entre outros homens, distante das mulheres que lhes metem mais medo do que qualquer outro sentimento.
Não sou eu que tenho uma tese sobre quem é ou não é gaúcho. Vou falar de algo mais amplo, mais sério, que é do livro de Ondina Fachel Leal, “Os Gaúchos – cultura e identidade masculinas no pampa”. É o livro que veio para ficar, para que não se perca mais tempo com discussões exotéricas, porque a realidade do gaúcho e seu locus está nas páginas deste livro.
Trata-se de livro da antropóloga porto-alegrense, lançado em 2021 pela Tomo Editorial. O texto deste livro tem como base sua tese de doutoramento feito nos EUA, em 1989. Ou seja, nosso acesso ao escrito em português se dá mais de 30 anos depois.
Aqui não temos uma resenha, nem um texto crítico, mas uma provocação para a leitura obrigatória deste texto profundo, sério, fruto de uma pesquisa exaustiva nos campos abertos do pampa, em especial na região de Alegrete e Artigas no Uruguai.
Vou tentar mostrar com alguns tópicos as razões pela leitura, a começar pelo Prefácio – “O mais eloquente dos silêncios” – do professor titular de antropologia do Museu Nacional/UFRGS.
Temos boas razões da leitura, insisto, também na Apresentação – Trinta anos, trezentos anos – feita pelo professor titular de Literatura no Instituto de Letras, Luís Augusto Fischer. Para mim, o Professor Fischer fez um grande bem para todos nós em convencer a autora a produzir o livro em português. Não cabe aqui falar deste tempo em que era “apenas” uma tese acadêmica em inglês. Ganhamos todos nós.
Na Introdução, de 2020, Ondina nos explica o seu “Reencontrando os gaúchos”.
Vou seguir os capítulos, para pegar o fio da meada dos escritos para as pessoas terem uma ideia da pérola que agora os leitores em português têm em mãos.
Ondina começa com “O gaúcho e o Pampa – terra de fronteira sem fronteiras”, o que lembrou Artigas e Andresito, entre outros, que sempre sonhavam com uma “pátria sem fronteiras”. No livro, em várias passagens, fica claro que para o gaúcho a “fronteira”, pouco ou nada lhe diz respeito.
Na página 39, aparece o título “Homens montados: o Sul como área cultural” para logo em seguida tratar da semântica do termo gaúcho: “guerreiro, bandido, herói, trabalhador”.
No Capítulo seguinte: “Trabalho de campo – quando o campo é campo” – temos o “recorte” da pesquisa, das planuras da Pampa, das estâncias, dos vilarejos, do trabalho dos peões etc. para ela nos falar de “Uma intrusa em um universo masculino: notas sobre o método”.
“O galpão e suas histórias” é, em minha opinião, o início da apreciação da seiva não só do favo de mel, mas de toda a caixa dele. Ela, ao escrever: “O galpão, a casa dos homens” é o toque de mestre para entender a sua busca do “ser gaúcho” – causos ali contados, payadas, chistes, ditados, “lore” (tradição) do riso etc.
Para se entender melhor, o capítulo seguinte “Mulher, a alteridade ausente” (em contraposição a “casa dos homens”, no caso o galpão. Ali, Ondina trata da ausência feminina. A autora fala á exaustão da vida das mulheres, fora da estância, em “las casas”.
Em seguida, vamos à leitura de “Os homens e seus galos” – um título genial porque tem significados múltiplos, ali a autora fala de “Rinha de Galos”. E esta relação “homem-galo”, o rinhadeiro, o jogo, tudo com um ar de “proibido”, mostra como há clara indicação do modo de ser galo, postura, coragem, bravura, luta até a morte como um gaúcho e se vê.
O mais chocante é quando chegamos ao capítulo “Suicídio – a morte como um discurso final” – não porque falar da morte por determinação pessoal, mas porque é um meio de ser, de mostrar que o gaúcho tem domínio sobre si e seu meio pela coragem, tanto que pode e vai tirar sua vida.
Expus aqui um relato breve dos capítulos e seu conteúdo.
Não poderia deixar de falar e citar aqui o poeta gauchesco, talvez o mais significativo, Vargas Netto:
“E o que o gaúcho fez!?
Quanto caboclo bicharedo
Chegava rindo, como num brinquedo
e entreverava na peleia
Como quem entra num bochincho”
(…)
“Está na massa do sangue desse povo,
Porque o gaúcho é como o cinamomo,
duma ponta de raiz brota de novo
e um outro cinamomo ficará de pé.”
(…)
“Um gaúcho se mata e não se vence”.
A poesia de anos e anos, bem antes dos estudos de Ondina, Vargas Netto publicou em sua Tropilha Crioula em 1925.
A autora também se valeu da nossa literatura, das músicas, dos causos para poder afirmar o que, de fato, é O GAÚCHO. Não estamos aqui tratando como vulgarmente falamos que gaúcho é qualquer pessoa daqui, do Rio Grande do Sul. Na verdade, estamos diante de rio-grandenses. Já que gaúchos são homens da Pampa, trabalhadores da campanha, que vivem solitários nas lides da produção de gado, equinos, ovelhas, vivendo no galpão da estância, com o “seu” cavalo, sendo ele a figura mitológica do “centauro”.
Vimos linha a linha, página a página, como é o gaúcho, o seu ser, o seu fazer, como se forja o homem trabalhador da estância, como a imagem que se tem desta mesma pessoa: homem, solitário, vivendo isolado numa fazendo, morando, alimentando-se no galpão. Homem vivendo entre outros homens, distante das mulheres que lhes metem mais medo do que qualquer outro sentimento.
Os escritos de Ondina Fachel Leal nos levam a pensar na necessidade de discutirmos mais nossa cultura, nossas origens, como chegamos a este gaúcho, passando por Sepé e Andresito.
Nada melhor do que ler o livro, pois este texto é uma mera instigação.
Autor: Adeli Sell
Edição: A.R.
Ainda não li esse livro mas deve de ser extraordinário pois só de ler todas estas citações já desperta uma grande curiosidade .
Vi uma resenha e muito bem feita. Fiquei impressionada e louca para ler a obra, por que sinto necessidade de conhecer o povo de que faço parte e me constitui como pessoa. Agradeço pela oportunidade de conhecer a referência à obra.