Os limites do barulho

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Helena é uma mulher doce, com alma de menina. Ou melhor dizendo, podemos defini-la como de sabor caramelo salgado ou agridoce. Isso porque, a sua compaixão se altera entre críticas fundamentadas que, por vezes, podem soar nem um pouco agradáveis aos paladares do senso comum. Com vocês, apresento uma nova personagem de minhas narrativas: Helena!

Fazia um bom tempo que Helena desejava refletir sobre o barulho, ou melhor, sobre os seus limites, aliás sobre a falta deles, e até mesmo significados. Na verdade, ela se “inspirava” toda vez que:

  1. Helena se emputecia com um vizinho infeliz acordando cedo e se sentindo no direito de colocar uma música para todo o prédio ouvir, e acordar também;
  • Quando aquele carro rebaixado com som alto passava, e fazia os vidros da sua casa tremer, enquanto ele achava que estava arrasando, Helena pensava que o tempo daria um jeito de deixá-lo surdo!
  • Quando a seita religiosa de “sei lá o que desta vez” considerava que sua fé era superior a qualquer bem-estar coletivo e gritava EM NOME DE JESUS!!! Fora quando eles não tentavam exorcizar alguém;
  • Quando os sinos da igreja tocavam tipo tele-cena, de hora em hora, para nos situar no tempo, sem ninguém solicitar essa “gentileza” barulhenta;
  • Quando as lojas próximas à casa de Helena resolviam enfiar a caixa de som para fora, e considerar que era seu direito colocar o volume no máximo porque era dia de promoção;

Foi justamente em um belo dia desses, enquanto era dia de promoção, que Helena, trancafiada em seu quarto, como de costume, ao som de uma música ensurdecedora,  começou milagrosamente a divagar sobre o barulho (acho até mesmo que foi uma estratégia de sobrevivência do seu cérebro, sabe, quando a pessoa sai do seu corpo? No caso de Helena ela se escondeu no corpo mesmo, ou na mente).

Bem, podemos pensar que um barulho ou uma frequência de sons indesejada e relativamente alta, existe na humanidade desde que os nossos ouvidos foram capacitados a captar o som. Podemos alegar que ele até mesmo deva ter a sua relação com o processo evolutivo. Por exemplo, um rugido de um leão pode ser ouvido a 8Km de distância e esse som pode ter vários sentidos, desde comunicação, demarcação de território e até mesmo acasalamento.

Na verdade, muitos humanos ainda utilizam um tom de voz elevado para impor medo, ameaçar e demarcar certa superioridade. Inclusive, a voz masculina possui mais propriedades de robustez que a feminina, e talvez, em função disso, uma certa propensão a utilizar mais esse recurso. O único, porém, é que, em uma sociedade adaptada ao complexo jogo das relações sociais, com o mínimo de respeito, já aprendemos que falar alto pode amedrontar, mas, não vai resolver os nossos problemas, não de forma inteligente ou efetiva. O mesmo vale para a violência, pensou Helena.

E é curioso traçar um paralelo também com a questão do acasalamento. Por exemplo, na cidade onde Helena mora, havia um evento, em que um bando de adolescente se reúne, estacionam os carros, aumentam o som, e bebem ao redor daquele barulho infernal. Mais infernal ainda, porque, você não sabe nem o que está ouvindo, porque aquilo vira uma competição de quem tem o som mais potente. Então, podemos dizer que as pessoas também não conversam por lá, porque conversar, requer que você não só ouça, como também entenda o que o outro está dizendo!

O ponto que Helena observou é que talvez, quanto mais potente for o seu som, mais gente ele atraia. Geralmente, quem possui os carros são os meninos, e quem é atraído pelos carros com sons potentes? As meninas. Então, sim, talvez, esse caos seja uma reflexão entre a relação de barulho e acasalamento influenciando a sociedade contemporânea.

Mas, até o momento, Helena refletia apenas sobre o som alto, no entanto, como ela alegou anteriormente, o barulho também se constitui como uma frequência de sons indesejados. Ou seja, podemos refletir que dependendo do ponto de vista, um barulho pode não ser um barulho. Por exemplo, a caixa de som da loja projetada para fora no dia de promoção, não era um barulho para os funcionários da loja, que pareciam estar curtindo aquele “som”.

Por outro lado, pra Helena, em casa, que tentava esperançosamente ter paz, era um barulho. Era um intruso indesejado na harmonia de sua atmosfera. Por vezes, Helena até mesmo tentava se convencer que aquele poderia ser um desafio para conseguir aprimorar o seu foco. Na verdade, isso funciona para muitas contrariedades que ela encontrava por aí, que também as ajudam a expandir os seus limites de paciência. No, entanto, ela também constatou que tudo tem limite, até mesmo, a sua paciência!

Falando em limites, Helena refletia que um dos principais problemas do barulho, é que a gente não consegue ver ele. Isso porque a nossa ideia de limites parece estar estritamente relacionada a visão. Ou seja, parece ser infinitamente mais fácil dizer os limites de algo, quando conseguimos visualizar ou ter uma noção espacial. Por exemplo, Helena imaginou aquele barulho transformado em uma bola gigante arrebentando a sua parede. Bem, nesse caso ficaria muito mais fácil alegar que alguém estava passando dos limites, não é mesmo?

Eu lembro que uma das coisas que ajudava Helena a se acalmar era o fato de pensar que aquele barulho infernal daquela maldita loja seria apenas um dia – o dia de promoção.

Apesar disso, Helena se assustava ao observar o seu corpo reagindo àquele barulho, ela se sentia incomodada, desnorteada e exausta ao mesmo tempo. Isso talvez, seja em função de sua hipersensibilidade, mas, talvez, seja só pelo fato de Helena ser humana e ter bom senso?

Por outro lado, não saber quando o barulho irá acabar pode mesmo ser enlouquecedor. Helena alega isso com muita propriedade, porque, essa mesma loja, há um tempo, projetava todo o santo dia a caixa de som para fora. Até que depois de várias tentativas de conversa, eles resolveram deixar ela dentro da loja. O irônico mesmo foi o fato de que, quando Helena conseguiu isso, uma outra loja abriu com o mesmo “sistema”. Quando Helena foi conversar, ela recebeu a seguinte resposta: são ordens superiores.

Aqui entramos com uma observação interessante que Helena intitula como hierarquia engessada. Ou seja, a ideia de que aquele funcionário era peça de um mecanismo maior, e simplesmente executava ordens. Com isso ficava até mais fácil de não se responsabilizar pelos seus atos, como acontece com muita gente alienada. A culpa era de seus superiores, e ele nada tinha a fazer. Será mesmo?

Helena refletia: e se o seu chefe mandar matar o gato que entra todo dia na sua loja sem pedir, você vai matar também? E também não vai se sentir culpado, pois, quem mandou matar foi o seu chefe? (Se você não gosta de gatos, pode substituir por cachorro ou até mesmo uma pessoa).

Naquele momento o cérebro de Helena foi longe, ao observar que aqueles modelos de funcionários são ótimos para sistemas fordistas, em que ele precisa executar um trabalho repetitivo sem precisar raciocinar o que está fazendo. Também são eficazmente substituídos por robôs. Se você chefe, quiser ter controle total da sua empresa, contrate-os. Por outro lado, não se sinta exausto ou até mesmo indignado quando você precisar falar para ele fazer tudo, ao invés de promover o pensamento crítico e a autonomia.

O mais trágico de observar é que Helena refletia o quanto esse sistema contaminava desde a educação brasileira, até mesmo o sistema político. E eu compreendo a tamanha preocupação na contemporaneidade, onde estamos eficazmente sendo substituídos por máquinas, e projetamos um futuro de muitos desempregados. De fato, se algo aqui não mudar, serão muitos desempregados. O ponto de discussão é: impedimos a ascensão das máquinas, ou alteramos o sistema para que essas pessoas sejam capacitadas a não agirem mais como uma? Mas, talvez, isso será tema para outra reflexão, voltemos ao barulho.

O porém é que, em amplo espectro, Helena observava que todos os exemplos citados giravam em torno de uma visão individualista. Seja pelo fato do vizinho colocar a música alta e achar que todo mundo quer ou deve ouvir, ou seja, que ele é o centro do universo e que talvez o mundo deveria pensar e ter os mesmos gostos musicais que ele, seja pelos interesses privados das lojas que se sobrepõem ao bem-estar coletivo.

A conversa acaba ganhando ainda mais profundidade, quando entramos no domínio religioso. Ou seja, Helena tinha parado para se dar conta no quanto parecia absurdo questionar uma passeata religiosa, em que eles buzinavam ininterruptamente por 8h seguidas, ou criticar o sino da catedral, que faz barulho de hora em hora, ou até mesmo o barulho que aquele determinado culto faz e que incomoda o quarteirão inteiro. Em nome de Deus, ou de algo “maior” tudo parece ser permitido ou até mesmo justificado!

Apavorada, Helena se deu conta de quanto essa visão poderia ser perigosa. Isso porque, uma visão egocêntrica de mundo, que considera que a nossa forma de ver, a nossa religião, os nossos hábitos e costumes, são os verdadeiros (e a história está aí para comprovar o quanto a verdade financia atrocidades), parece fazer desmerecer e se impor a qualquer opinião contrária.

O único porém, é que Helena considerava não haver maior desrespeito divino do que quebrar a harmonia, do que desrespeitar a pluralidade, considerando que a sua fé é superior a de outro. Se colocando acima de alguém. E é isso que fizemos toda vez que nos sentimos no direito de fazer barulho, sem considerar o bem-estar coletivo. 

Helena deu risada, com essa reflexão ela havia lembrado de sua avó, que gritava toda vez que falava ao telefone. Helena imaginava que sua avó acreditava que o som precisava chegar até o outro lado do mundo, era instintivo. Ela considerou que algo parecido acontecia com os eventos religiosos que faziam muito barulho. Parece que para Deus ouvir a gente precisa gritar, ou buzinar bem alto, até o som chegar lá em cima! É um contrassenso quando paramos para refletir que o maior exemplo de espiritualidade ou conexão que temos com o divino acontece no silêncio.

Então, a sugestão seria repensarmos conscientemente essas manifestações de fé. Por exemplo, não estaria muito mais de acordo com os preceitos religiosos, ao invés de buzinar para comemorar o dia de um santo, fazer uma campanha de arrecadação de alimentos e ajudar a quem precisa? Fazer um mutirão para restabelecer a beleza em alguma praça da cidade? E que tal um levantamento dos pontos críticos do trânsito e um movimento popular para reivindicar melhoras nisso e prevenir acidentes?

Helena acreditava que São Cristóvão ficaria orgulhoso da gente, além de não precisar utilizar o seu protetor auricular nas comemorações! Se vocês considerarem que não é uma boa ideia, tudo bem, acho que o importante aqui é refletir sobre e aprender a fundamentar a sua opinião.

Mas, como Helena já havia refletido, o barulho também tem o papel de informação. Um evento bem alto, pode fazer com que nos perguntamos o que está acontecendo, e fazer com que participemos. Uma sirene pode alertar para o perigo.

Já o barulho de uma passeata para comemorar um campeonato pode significar alívio, isso porque gritar, colocar para fora toda a tensão, acalma mesmo, e podemos fazer isso por uma extensão que chamamos de buzina. Também pode significar um certo tipo de provocação. Fazemos barulho para incomodar o lado adversário e lembrar que eles foram derrotados. E sim, não há nada pior que além de perder um campeonato, ainda sermos obrigados a ficar ouvindo o barulho dos outros. Falando nisso, aqui entram os foguetes.

Que também podem ter o objetivo informar, provocar ou comemorar. Quando Helena lembrava dos foguetes, ela sentia que ainda havia esperança para a humanidade (não a entendam mal). Isso porque ela observava que a quantidade de pessoas que andam se organizando contra aquele barulho que parece tiro ou explosão é significativa. Eis um reflexo que as pessoas estão questionando os seus hábitos corriqueiros com consciência e refletindo sobre formas de comemorações mais pacíficas.

Falando em tais organizações, chegamos a uma área em que Helena tinha paixão. A qual intitularei como gerenciamento político.

Helena costuma definir “Evolução moral” como uma certa tendência a buscarmos por melhores condições de vida, reduzindo o sofrimento. Exemplos que ela vê tal qual, talvez, no sentido Darwiniano, é a busca por igualdade ou melhor, equilíbrio de gênero, compreender como insano ou desumano escravizar alguém na atualidade, utilizar a violência para resolver os nossos problemas, dentre outras questões que eram “normais” em tempos remotos e que hoje não são tão bem vistas.

Mas, o que tudo isso tem a ver com barulho? Pensava Helena. Digamos que esse movimento basicamente identifica o que causa sofrimento e propõe soluções políticas a fim de reduzi-lo. Sofrimento pode ser compreendido também como quebra de harmonia, ou um espectro com vários graus de incômodos. Falando especificamente sobre moral, que pode ser compreendido como um conjunto de ações norteadoras, Helena lembrava que Kant nos lembrava o seguinte:

“Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal”. Vamos a um exemplo. Imagine que todo o dia eu projeto a caixa de som para fora, na loja que eu trabalho, fazendo muito barulho. Como julgar se essa ação é moral? Simples, imagine se todo mundo resolvesse fazer o mesmo. Iria ficar insuportável, você não concorda? De tal modo que teríamos que fazer alguma coisa.

     

É por essas que Helena considerava que precisamos fazer alguma coisa. Porque isso é respeitar o bem-estar do outro, é pensar no coletivo, é colocar limites, é se organizar. Você já ouviu falar da Suíça? Ela é considerada um dos melhores países para se viver. Sabe por quê? Porque, ao menos pelo que Helena havia lido a respeito, eles parecem ser um país extremamente organizado, com intensa participação popular, conduzidos por uma democracia direta (nem presidente eles têm). Eu não vou me ater a esses detalhes, porque pretendo fazer uma outra reflexão especificamente sobre organização política.

O que para nós é importante evidenciar, é o mecanismo de participação popular, os Suíços vão para as urnas em média quatro vezes por ano, para se posicionar sobre questões com implicância direta na vida da comunidade. Isso repercute em exercitar o pensamento coletivo, além de financiar aquela sensação gostosa de que o seu voto importa e realmente faz a diferença, fazendo-nos sentir ainda mais parte de uma comunidade.

Tá e o barulho, Helena? O silêncio é bastante valorizado na Suíça e sim, para mim isso é um exemplo do bom senso e dessa visão de comunidade. Nos finais de semana impera a lei do silêncio, ou seja, ligar aquele som para limpar o seu carro ou até mesmo cortar a grama, são motivos suficientes para a polícia bater a sua porta. Porque lá o limite do som, é o ouvido do outro. A mesma regra vale para todos os dias das 22h às 6h.

E acho que nem precisamos comentar se existe algo na Suíça do tipo sinos badalando, comemorações religiosas com buzinas, foguetes, lojas com caixas de som projetadas para fora, carros com som alto, ou até mesmo eventos como rodeios ou carnaval.

Falando nesses dois últimos, Helena refletiu que eles se enquadram em uma categoria que talvez não ela ainda não havia refletido! Os eventos, incluso as comemorações religiosas, festas junina, carnaval, rodeio e tudo mais parecido, também são demonstrações culturais da comunidade, e eles têm a sua importância, com certeza!  

O que Helena considerava é que às vezes nos faltava, sair um pouco do piloto automático, e nos questionar sobre a necessidade de fazer tanto barulho para comemorar algo. Será que precisamos gritar, colocar um som ensurdecedor para podermos nos divertir? Tudo bem, esses eventos são de vez em quando, e não costumam durar muito. Mas, não é sobre isso, é sobre tudo o que conversamos até aqui.

Para finalizar, eu e Helena convidamos você a fazer um minuto de silêncio. Mas, calma! Ninguém morreu, e você não precisa associar negativamente o silêncio. Ele pode ser a paz que você procura em um mundo frenético, ele também é a base de um estado meditativo, que traz vários benefícios a saúde mental.

Inclusive, no youtube eu tenho um vídeo sobre como a meditação mudou a minha vida, fica dica:

https://www.youtube.com/watch?v=OtuX5tcujOE

Autora: Ana P. Scheffer

Edição: A. R.

Arquiteta e Urbanista, Mestre em Engenharia e estudante de Filosofia.

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