Os malabaristas do sinal vermelho

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A tendência é de que este número de “malabaristas” aumente. São malabaristas reais, frutos de uma sociedade de mercado.

Eles já fazem parte do nosso cotidiano. Estão diariamente nas principais esquinas de Passo Fundo aproveitando o tempo do sinal vermelho para oferecer o seu show. Fazem malabarismos, engolem fogo, equilibram bolinhas, jogam cones para o alto e os acolhem nos braços com rara habilidade, equilibram-se em pernas de paus, vestidos com roupas coloridas. Agora, apareceu até um solista de violino, em uma de nossas artérias mais movimentadas de nossa cidade Passo Fundo, RS.

Verdadeiros palhaços das ruas: Os malabaristas do sinal vermelho.

João Bosco e seu filho Francisco retrataram com rara inspiração estes personagens do nosso dia-a-dia em uma canção composta em 2003: “Penso nos malabaristas do sinal vermelho/Que nos vidros dos carros/Descobrem quem são/ Uns, justiceiros, reclamam o seu quinhão/Outros pagam com a vida sua porção/ Todos são excluídos na grande cidade”.  https://youtu.be/CXdmsnOADp8?t=39

Depois do rápido espetáculo, que precisa ser ajustado ao tempo do sinal vermelho, eles passam entre os carros para colher o “pagamento” pelo que ofereceram. São movimentos rápidos, cronometrados e arriscados. É a busca pela sobrevivência no modelo capitalista neoliberal. E, aí, como diz a letra da canção – nos vidros dos carros, descobrem quem são –isto é, os verdadeiros mendigos contemporâneos.



“Como não aplaudir e encher o rosto de encanto ao ver um espetáculo de marionetes? Como não se prender na confusa tentativa de compreender como pode, um boneco, fazer tantos movimentos e com uma dinâmica que parece dar vida ao mesmo?” (Elias Foschesatto)


E nós, acomodados em nossos carros, com ar-condicionado, ouvindo uma boa música, também descobrimos naquele pequeno tempo do sinal vermelho os graves problemas sociais que ainda nos rodeiam. Dias atrás, fiquei observando que, diante da abordagem do malabarista, que era um adolescente de no máximo uns 18 anos, a maioria fingiu não ver o que acontecia à sua frente.

Nada, ninguém se abalou, nenhuma moeda. A maioria ignorou o seu “trabalho”. As janelas dos carros permaneceram fechadas. Os motoristas nem olhavam, nem reconheciam a existência daquele artista. A questão que talvez poucos perceberam é que não se tratava de circo ou de teatro, era realidade.

Realidade social exposta, jogada na nossa frente. Lembrei que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente rezam que viver não é apenas respirar, mas a participação em todos os direitos da cidadania, bem como a proteção contra as agressões, danos físicos, emocionais, sociais, etc.

Sou sempre receptivo e lhe dei uma pequena recompensa pelo breve show. Quando o sinal abriu ele voltou para a calçada, contou os trocados até então arrecadados e começou a se preparar para o próximo número do seu repertório. Até imaginei que a Secretaria de Serviços Urbanos poderia remunerá-los por aliviar, por breve instantes, a tensão dos estressados motoristas diante dos problemas do nosso conturbado trânsito.

Na verdade andamos todos apressados. Afinal, tempo é dinheiro. Paulinho da Viola, em uma antológica canção de 1967, retratou esta realidade em Sinal Fechado: “Eu vou indo correndo/pegar meu lugar no futuro/ me perdoe a pressa/é a alma dos nossos negócios.” Muitas vezes ficamos contrariados por sermos obrigados a frear e esperar o interminável tempo de um sinal vermelho.

O correto, sem dúvida, é encaminhá-los para os órgãos assistenciais. É difícil, entretanto, não ajudá-los. Ao vê-los não tem como não se recordar de outra canção, sobre esta verdadeira saga de nossas esquinas. Chico Buarque e Francis Hime já cantavam em 1993: “No sinal fechado/Ele vende chiclete/Capricha na flanela/E se chama Pelé/Pinta na janela/Batalha algum trocado”.

A verdade é que hoje eles fazem parte do cenário urbano das nossas cidades. São o retrato das desigualdades sociais que ainda nos atormentam e que possuem raízes históricas como a forma de colonização, a profunda dependência externa do país, a acumulação de riqueza pelas camadas mais favorecidas da população.

A marginalização histórica de parcelas significativas da nossa gente, aliadas às práticas administrativas que privilegiam o apadrinhamento político e favorecem o desvio de verbas, podem explicar a situação de segmentos como destes “malabaristas do sinal vermelho”.

E a tendência é de que este número de “malabaristas” aumente. Em março, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, em meio aos 13 milhões destes últimos já existentes, o Brasil fechou mais de 43 mil empregos com carteira assinada.

Estes personagens são o resultado do que Karl Polanyi denunciou em 1944 em seu clássico “A Grande Transformação”, segundo o qual de uma economia de mercado se passou a uma sociedade de mercado. E em qualquer mercado, sempre algo é descartado.



Incríveis artistas de rua.

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