Carta à menina do vestido vermelho

Querida menininha,

Como tem passado? Sinto-me melhor nestes últimos dias. Há um mês você veio me ver, mas parece que faz anos, pois hoje a saudade sua me bateu fortemente.

Gosto de conversar com você e do seu olhar de borboleta quando me observa atentamente a falar as minhas palavras de velha que já não tem mais paciência para as pessoas sem corações desse mundo cruel.

Menininha, ontem queimei a minha mãe com água fervente. Aprontava-me para fazer uma xícara de café quando tomei um susto ao ver, ao longe, um pássaro azul cantar no meu jardim florido. O pássaro fez-me lembrar do azul dos seus olhos, desse olhar assustado que só você tem, desse olhar que carrega o mar dentro de si sem ondas bravas. Os meus dias têm sido tranquilos, sem novidades.

A mesma solidão de sempre, a ausência de um não-sei-o-quê dentro de mim, a dúvida em relação à existência de pessoas de bom coração e aquela vontade de retomar a costura da colcha de retalhos largada no fundo do baú há mais de dez anos. Parece até que estou perdida dentro da minha morada, não falo da minha casa de tijolos, mas da minha morada-ser, existência fugaz em mim, que me toma de arrebatamentos e me enche o peito de angústias a pensar nas criaturas que viraram pedras e esqueceram a bondade, a caridade, o amor. Quero salvar o pássaro azul que brinca em meu jardim do medo de ser esquecido em lugares que habitam a existência.

O bolo de chocolate que me trouxe na sua última visita estava gostoso e comi quase todo quando você partiu.

Gosto de bolos com café. O café me faz parecer mais gente fora de mim, pois tenho sentido a presença de monstros ao meu redor.

Monstros da ignorância e da insensatez humana que descobriram a estrada da minha morada. Menininha, a casa está cheia de poeira e há num porta-retratos a nossa foto juntas. Estou abraçada a ele neste momento. Tenho o seu sorriso nos meus braços. Você que gosta de sorrir e dá bom dia à vida.

Você que não se assusta com os monstros das madrugadas, porque no seu quarto de dormir vivem anjos que a protegem. Como eu queria ter um anjo protetor! Sabe, menininha, chega uma hora na vida que é melhor pintar telas com os dedos e rabiscar a areia com pincéis de madeira. Faz dias que tenho procurado, em vão, pintar o seu sorriso. Você que é doce igual ao mel.

Preciso parar de escrever. A noite vem caindo e tenho que tirar a roupa do varal. Lavei roupa hoje cedo. As roupas gostam de sabão que cicatrizam a sujeira de dizer-se não à solidão de serem largadas ao léu, quando já não servem mais para vestirem o corpo, pois têm o cheiro de cansaço. Ninguém quer cansar-se. Todos querem fôlego para descobrirem novas ruas dentro e fora de si. Vou indo, menininha. Fique com Deus. Venha me visitar sempre que puder.

Um abraço,

Rosângela Trajano.

Observação: Gosto de escrever cartas para pessoas imaginárias. Criei esse personagem e tenho escrito cartas filosóficas para ela. “Menina do vestido vermelho” representa todas as crianças deste querido Brasil.

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