Onde há continuidade e pertencimento, há sentido da vida. Onde há descontinuidade e desenraizamento, que sentido poderá haver?
Entre o céu e a terra, o homem habita e, entre os animais e os anjos, vagueia pelo mundo. É verdade que está mais para a terra e para os animais do que para os anjos, mas projeta-se para o alto pela sua capacidade de elevação que brota do pensamento que medita.
Pensar e meditar, contudo, não significa afastamento do mundo rumo ao éter, ao vazio ou ao buraco negro. Tal como árvore frondosa que quanto mais se projeta para o alto mais necessita aprofundar suas raízes, assim é o homem cosmopolita que só se compreende situado em sua terra natal e dentro de uma tradição.
Terra e tradição, pátria e passado não podem ficar nas mãos dos conservadores, retrógrados de extrema direita que tudo pervertem. O que é bom e faz bem não pode ficar refém dos que só manipulam e, por vocação, deturpam e corrompem. Sim, nas mãos dos tradicionalistas e conservadores, a pátria e as tradições estão à perigo e necessitam ser resgatadas e salvas.
Martin Heidegger (1889-1976), um dos maiores filósofos do século XX, foi o que melhor pensou o lado positivo da pátria e da tradição. Ele é o filósofo do ser, afinal. E ser é tempo e tempo é ser. Ser é habitar esse mundo entre o tempo e o espaço. Tempo é tradição, espaço é chão, pátria.
O conceito que melhor pode pensar a vida humana no tempo e no espaço é o enraizamento. Essa é a posição de Heidegger e ele diz de uma forma solene que parece definitiva. Ele diz: “tudo o que é essencial, tudo o que é grandeza surgiu do homem ter uma pátria e estar enraizado numa tradição”. Sem pátria e sem tradição não há construção e habitação. E sem construção e habitação o que seria do humano?
Como pensar essas duas grandezas, a pátria e a tradição sem decair em xenofobias e culto ao passado? A extrema direita moralista capturou e deturpou a fala sobre o tempo e espaço, sobre a tradição e o chão, transformando o que seria uma postura sadia em algo doentio e tóxico: o nacionalismo e o conservadorismo.
É preciso reiniciar um movimento de reconquista dessas duas bandeiras e não haverá sucesso na fala dos progressistas e libertários se não incorporarem a reflexão sobre o tempo e espaço, sobre tradição e pátria. Libertar essas duas grandezas da prisão a que foi submetida pelos conservadores será o desafio para os que querem tornar a vida saudável para todos.
A modernidade iluminista se fez efetiva pela ciência e pela técnica. E foi pela ciência e pela técnica que o homem processou um desenraizamento como nunca visto na história.
As sucessivas revoluções tecnológicas, sobretudo no campo da comunicação e transporte, processaram uma equivalente revolução na vivência e compreensão do tempo e do espaço. Não há área da vivência humana que não se experimenta o desenraizamento.
O chão e a tradição, isto é, a vida num ethos identitário, nos usos e costumes compartilhados, em sintonia com uma tradição que nos enlaça e nos dá sentido de pertencimento e de missão de transmissão para as gerações futuros, parece estar se perdendo. Assim é na família, na escola e na igreja, só para ficar em três campos. A recepção do passado e a transmissão para os jovens, dos valores, ritos, costumes, da fé, é, talvez o maior desafio do nosso tempo.
Longe de mim o saudosismo do tipo “no meu tempo era melhor”, “antigamente as coisas eram diferentes” etc. Seria necessário escutar as pessoas que assim pensam para que narrassem o que realmente era melhor. Às vezes. o que aparentemente era melhor, era simplesmente falta de opções ou vigência funcional de uma sociedade estratificada, obediente e excludente.
Contudo, há de se pensar no que há de sadio no valor de pertencimento a um povo e a uma tradição com seus costumes, hábitos e valores que se desdobram em costumes e valores familiares e religiosos. Sem pertencimento e enraizamento o que sobra é a sensação de vazio, separação, isolamento e solidão.
O sentido da vida oferece-se em grandes e pequenas coisas, mas, talvez, o lugar mais seguro do seu encontro seja em sentir-se subjetivamente fazendo parte de um todo maior, um elo que une o passado com o futuro. Lá onde há continuidade e pertencimento, há sentido da vida. Lá onde há descontinuidade e desenraizamento, que sentido poderá haver?
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Autor: Gilmar Zampieri
Edição: Alex Rosset
Que texto excelente!