Como nos falta consciência do poder das palavras!
Entramos no terceiro milênio sob o poder,
mesmo que debilitado, da palavra.
Lá em casa ninguém adormecia sem a bênção dos pais. Também pedíamos a bênção para tios, avós e padrinhos. Todos acreditávamos no poder da palavra do outro, principalmente de alguém mais velho ou ligado a nós por laços afetivos ou sanguíneos para bendizer ou amaldiçoar. Esta tradição, hoje um pouco esquecida, deságua no caudal humano do poder da fala chamando à existência as coisas que diz.
O povo judeu do Antigo Testamento tinha tal reverência pela palavra, que o nome de Deus praticamente não era verbalizado e, como se escrevia sem vogais, não se sabe exatamente como se o pronunciava. O dizer humano era limitado para expressar aquele nome, enquanto a Palavra de YHWH realizava exatamente o seu conteúdo. Lembra, “…então Deus disse: – Faça-se a luz, e a luz foi feita.”?
Para os gregos, o “logos” (palavra) era o princípio ordenador do “caos”.
O Evangelho de João começa anunciando que a Palavra – aquela proclamada como verdade pelos profetas – se fez homem e armou sua tenda entre nós. A palavra “tenda”, usada pelo evangelista, evoca o caráter dinâmico, itinerante e nômade da verdade, sempre esguia ao cárcere avassalador das formas.
Esta reverência é sublinhada além do mundo judaico-cristão. Entre os maias havia um deus especial para as palavras.
Entramos no terceiro milênio sob o poder, mesmo que debilitado, da palavra. O endeusamento da imagem ainda não conseguiu sobrepor-se a ela, felizmente.
Nunca houve no mundo tantos dizeres, tantos discursos, tantas coisas ditas como salvação ou como ameaça. Maltratada ou respeitada, profanada ou sacralizada, amada ou estuprada, a Palavra, misteriosa e miserável, na forma de larva e pá que lavra ou abre a vala à semente, sobrevive enlouquecida na ascendente Babel da atualidade.
Mentiras e verdades na imprensa, livros descartáveis, publicidade e disfarces, falas e letras de músicas no rádio, na televisão, no cinema, ao telefone, na internet… Palavras gritadas nos protestos à luz do sol ou sussurradas nas penumbras do amor, pichadas em letras monstruosas nos muros da cidade ou ínfimas e desajeitadas nas garatujas das crianças, ei-las entre nós.
Como disse Gabriel Garcia Marques, a quem parafraseio, o grande derrotado é o silêncio, nunca a Palavra.
O maior problema é que “as coisas têm agora tantos nomes em tantas línguas que já não é fácil saber como se chamam em nenhuma. Sem madrinha, os idiomas se dispersam, se misturam, se confundem, disparados ao destino inevitável de uma linguagem global”, continua o escritor.
“Diz-se que a boca fala daquilo que o coração está cheio. Humanizamos pela palavra e, por meio dela, defendemos o direito do ser humano na sua integralidade, a fim de que o espaço da dignidade não seja extorquido de nenhum cidadão. Em uma de suas composições, Renato Russo registrou, de forma contundente: “palavras cortam mais do que as facas. Elas não perfuram a pele, rasgam a alma”. (Acedriana Vicente Vogel)
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Como nos falta consciência do poder das palavras! Se o respeitássemos, jamais amaldiçoaríamos, mas secaríamos a boca de tanto abençoar; falaríamos mais do amor e menos da vingança; pronunciaríamos mais vocábulos dos sonhos e menos das saudades; escreveríamos mais poemas e menos declarações de guerra; teríamos mais listas de alimentos e menos de armamentos.
Ah, se os políticos soubessem o poder das palavras, se os jornalistas acreditassem na força do que escrevem, se os escritores imaginassem como cortam sua carne ao escrevê-las!
Engasgado com tantas profanações da Palavra, de silogismos sofistas, depois de um dia inteiro testemunhando seu desacato em tão inimagináveis e indeclaráveis modos, como eu gostaria de ouvir uma palavra de bênção do pai para o filho, do avô para o neto, do tio para o sobrinho, do padrinho para o afilhado! Quem sabe isto apaziguaria a ira do Deus das Palavras.
Nestes tempos, parafraseando João, o evangelista, eu escreveria: “O caos no princípio havido, antes de Deus colocar ordem nas coisas, se fez homem e construiu uma casa de concreto entre nós.” Vestida em pele de cordeiro, a palavra-lobo conseguiu seduzir os senhores do dito e do não dito. Acreditando neles, esquecemos o poder ordenador da Palavra quando pronunciada com reverência.
Alguém por aí vive falando “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, mas defende os sites de fake news como liberdade de expressão. Tempos falaciosos.
Perdoe-nos, Palavra!
“Acredito muito nas palavras como forma de humanização”. (Nei Alberto Pies)