O momento é grave, mas a ameaça grave do vírus não pode atacar,
além das vias respiratórias, também nosso discernimento.
E isto deve nos posicionar no plano dos princípios,
dos processos e dos procedimentos…
enfim, de todos os aspectos implicados.
Vivemos uma grave pandemia no Brasil e no mundo, o que nos obriga ao recolhimento (denominado isolamento social) como uma forma de, solidariamente, preservarmos a vida das pessoas mais vulneráveis a esta doença (pessoas idosas e pessoas com algum tipo de doença crônica).
Esta recomendação médica tem se mostrado a mais eficaz para darmos, ao Sistema de Saúde, a possibilidade de atender as pessoas quando o pico da expansão e disseminação do vírus exigir atendimentos considerados mais sérios (ventilação mecânica e cuidados de tratamento intenso). No entanto, este isolamento social, não significa o “afastamento” dos nossos direitos, os direitos humanos.
Além de praticar o isolamento social, devemos cobrar ações efetivas do Estado para promover o controle sanitário da pandemia e minimamente garantir a sobrevivência dos cidadãos mais desfavorecidos, bem como investir recursos no Sistema Único de Saúde, inclusive garantido o aporte dos bilhões retirados da saúde no ano de 2019.
Distanciamento social, lavar as mãos frequentemente, capacidade de fazer testes massivos de diagnóstico e isolamento dos infectados: as recomendações para deter o avanço do coronavírus são relativamente fáceis. Mas não para 13 milhões de pessoas que vivem nas favelas do Brasil: com uma alta densidade demográfica, serviços básicos — como água e luz — deficientes e, muitas vezes, sem nenhum sistema de esgoto. Leia mais aqui.
Para salvaguardar os direitos, preservam-se os serviços essenciais para a manutenção da vida, da saúde e da circulação dos alimentos e insumos indispensáveis para manter a vida e a sociedade funcionando, em condições que garantam a sobrevivência de todos.
Os direitos continuam exigindo todas condições para preservar a dignidade humana, este conceito difícil de ser definido, mas facilmente percebido quando ausente na vida de cada um e de todos os seres humanos.
Economia e saúde pública
Neste contexto, colocam-se em disputa ideológica a manutenção da economia e a preservação da vida. O que é mais importante? A economia é também uma questão de saúde pública?
Todos sabemos que as condições materiais tem papel importante na qualidade de vida de todos nós. Geralmente, esta preocupação é levantada pelos cientistas sociais, que denunciam e reclamam por condições e dignidade humana para todos, sem distinção. Estranha que agora, esta verdade dos cientistas sociais vem sendo largamente utilizada por muitos outros especialistas para flexibilizar o “isolamento social” e retomar o aquecimento da economia.
O que mudou? Estamos vivenciando uma nova forma de interpretar a realidade ou estamos novamente diante de um oportunismo momentâneo para justificar a supremacia da economia sobre a vida humana?
Paulo César Carbonari, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), argumenta que
“não faz o menor sentido estabelecer relação entre saúde e economia que não seja conjuntiva. Não há espaço para disjuntivas ou condicionais. O que está acima de tudo é a vida, como todo (zoe e bios, nua e qualificada), para todos/as e em abundância, ainda que num contexto de algo risco. Ela preside toda ação e toda decisão. Toda postura distinta será necrófila e ensejará necroética, necropolitica, necroeconomia. A vida não tem valor, é condição de todo valor e determinante de todas as medidas de saúde, de economia, políticas, éticas, … A própria morte há que ser em dignidade. O momento é grave, mas a ameaça grave do vírus não pode atacar além das vias respiratórias também nosso discernimento. E isto deve nos posicionar no plano dos princípios, dos processos e dos procedimentos… enfim, de todos os aspectos implicados. Sempre há uma saída, ainda que difícil e custosa. Longe deste momento soluções orientadas pelo “cálculo do suportável” tão invocado pelos ultraneoliberais (ultimamente em baixa) ou a “redução de danos” como sugerem “humanistas” pouco humanistas”.
A filósofa e professora universitária Cecília Pires, também fala sobre o assunto, afirmando que
“as nossas relações sociais se estabelecem em vários vínculos, que construimos, sendo um deles o vínculo econômico, em determinado momento, pelas relações de mercado. Assim pensando as coisas relacionadas, pois tudo está ligado, a economia, como a saúde e a educação e tudo o mais devem estar no mesmo patamar de importância na vida humana. O problema é quando se estruturam gavetas para guardar setores da vida, como se guardam objetos. Muito mal! Perde-se com isso a visão de totalidade, em que tudo está vinculado a tudo, no processo da vida”.
Júlio Perez, auditor fiscal, lembra que
“cabe ao Estado fazer essa mediação entre a saúde e a economia usando do seu poder, em última instância, de ser o fiador dos meios de pagamento, qual seja, da moeda, priorizando naturalmente a saúde, dentro de parâmetros técnicos para que este afastamento da sociedade das atividades econômicas durem o menos possível. Afinal, sem vida, não há economia”.
O historiador José Ernani de Almeida lembra, neste contexto, que leu recentemente uma manifestação de um espanhol de nome Pedro Vallin:
“Acreditávamos que o medo da morte convertia ateus em crentes, mas, na verdade, converteu os neoliberais em keynesianos”. Sem dúvida, o mundo não será mais o mesmo depois do novo coronavirus. A economia não será mais a mesma, com certeza. Acredito que planos estatais, como o New Deal nos anos 30 do século passado, que criou o programa de intervenção estatal mais ambicioso de todos os tempos – com investimento público, proteção aos pobres, impostos progressivos, segurança social, negociação coletiva, serão necessários. É bom lembrar à direita histérica que o New Deal não foi nenhum programa comunista, ele representou uma profunda transformação democrática. Foi naquele momento nos EUA que de certa forma, nasceu o que hoje chamamos de Estado do Bem Estar Social.
Francisco Carles Xavier, advogado, contribui com este debate afirmando que
“o momento requer equilíbrio nas decisões, não só governamentais. Pelo jeito, tanto na saúde como na economia, o dever de casa não estava sendo bem feito. Então o negócio é: primeiro, cuidar das pessoas, não podemos correr o risco de precisar de toda a rede de saúde – médicos, enfermeiros, hospitais, insumos, etc – e não dispormos (morrer na fila); segundo e concomitante: começarmos, todos nós, empresas, instituições e cidadãos, a programar a retomada de todos setores da economia, afinal, ela depende de nós.“
Pelo que podemos concluir, a vida humana é a condição para salvaguardarmos a existência planetária e a economia depende mais das pessoas do que as pessoas da economia.
Desqualificar, não. Politizar, sim
Desde o início da pandemia no Brasil, o combate ao novo Coronavirus vem sendo desqualificado do ponto de vista da política. O presidente Bolsonaro, contrariando orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), vem travando uma luta política desqualificada, tentando jogar responsabilidades que seu governo não consegue assumir para outros entes, sejam eles os governadores dos estados, os prefeitos e parte da população que aceita as recomendações médicas e pratica o “isolamento social”.
Desqualificar a condução política do combate à pandemia e fazer jogo político para apontar culpados, não assumir as responsabilidades devidas a cada ente federado, é fazer o jogo de “uns contra os outros”. Fazer desobediência individual propositada de regras que o próprio governo assume como ordenamento para todos. A pandemia do COVID-19 mostra que pode afetar distintas classes sociais e não escolhe a quem vai infectar (embora, como apontamos acima, os mais pobres e os moradores da favela poderão ser os que sofrerão mais).
Politizar o combate ao COVID -19, por outro lado, é fazer a defesa do SUS (Sistema Único de Saúde), é cobrar as responsabilidades de todos os envolvidos nas diferentes instâncias de poder e decisão.
É apontar e exigir que as decisões tomadas sejam de interesse comum, preservem a saúde, a vida e a dignidade de todos, principalmente daqueles aos quais a nova doença pode ser mais letal. É apoiar e ser solidário ao trabalho dos profissionais da medicina e dos demais trabalhadores que não podem parar para que a vida em sociedade permaneça garantida.
É também exercer solidariedade ética, pensando na proteção de todos. É participar de iniciativas solidárias para minimizar os efeitos da crise econômica que leva à fome e falta de condições mínimas de sobrevivência. É cobrar que o Estado Brasileiro se responsabilize em propiciar renda mínima suficiente para que as pessoas possam ter suas necessidades básicas atendidas.
Empresária Luiza Trajano, presidente da Magalu, defende o SUS dizendo que é o que de melhor existe no mundo. Iniciativas privadas e governo devem injetar recursos, com foco no social. Leia mais aqui.
Neste momento, as decisões que serão tomadas no Brasil interessam a todos os brasileiros e brasileiras. Por isso, a política exerce papel fundamental, justamente porque opera com escolhas e com prioridades.
Há, ainda, outro elemento a ser considerado. Embora, neste momento da pandemia, os cientistas e médicos tenham de ser ouvidos com muita atenção, a ciência e a medicina não podem ficar apartadas dos critérios da política e da ética.
Como é possível conciliar liberdade da ciência, equidade social e dignidade dos seres humanos? Prevalecerão tais tendências neste século XXI? Veja mais aqui.
Por fim, apontamos a necessidade de uma Solidariedade ética mundial para superarmos de forma humanitária o enfrentamento à pandemia do COVID-19. Atitudes egoístas, pessoais de cada um e de governantes, são exemplos do quanto ainda não entendemos que se trata de que a própria sobrevivência da própria humanidade corre riscos. Como ensina o poeta e música Gonzaguinha, “E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá. E é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho, por mais que pense estar”.
Noção de humanidade é o que não pode nos faltar! Com política séria, com discernimento, sabedoria e com cuidados e com aprendizagens diárias, individuais e coletivas, haveremos de fazer mais esta travessia. Como chegaremos do lado de lá?
Como sugere Paulo Carbonari, o meio da travessia, o momento em que estamos vivendo agora, é o indicador de como chegaremos do outro lado da margem. Este indicador está sendo construído agora, nas ações e nas decisões que tomamos, individual e coletivamente!