Ora, se todos temos telhados de vidro, não seria melhor que fôssemos mais compassivos uns para com os outros? O diálogo sempre funciona melhor do que o embate. Mãos estendidas costumam ser mais eficazes do que dedos apontados.
Deveríamos nos sentir incomodados na mesma proporção ao vermos nossa religião sendo usada para promover um projeto de poder e ao vermos a religião alheia usada para demonizar adversários políticos. Nem Deus, nem o diabo ou qualquer outra divindade ou entidades devem figurar em disputas políticas. Se insistirmos nisso, assistiremos à deflagração de uma guerra nada santa com vítimas de ambos os lados da trincheira.
Que perseguidores eventualmente se tornem perseguidos, temos inúmeros exemplos, a começar por Saulo de Tarso, que veio a se tornar no maior disseminador da mensagem cristã de sua época.
Quando Cristo apareceu numa visão a um cristão chamado Ananias, comissionando-o a levar o evangelho àquele que se tornaria conhecido na história como Paulo, o apóstolo dos gentios, ele respondeu: “Senhor, a muitos ouvi acerca deste homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém; e aqui tem poder dos principais sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome.” Pelo que o Senhor lhe respondeu: “Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel. E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome” (Atos 9:13-16).
Anos mais tarde, aquele que testemunhou e consentiu com a morte do primeiro mártir cristão, foi decapitado por ordem de Nero, imperador de Roma. Foi ele mesmo quem disse em uma de suas despedidas: “Em nada tenho a minha vida como preciosa para mim, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus” ( Atos 20:24).
Assim como Paulo, muitos perseguidores acabam se tornando perseguidos por sua fé em Cristo. Mas posso assegurar que transformar perseguidos em perseguidores jamais constou da agenda de Deus. Trata-se, portanto, de uma anomalia.
Não precisamos concordar com os dogmas da religião alheia para respeitarmos os seus adeptos. Apesar das gritantes diferenças, todas têm em comum o fato de buscarem um sentido para a existência.
O próprio Paulo, o apóstolo dos gentios, disse que Deus permitiu que cada povo o buscasse como quem está tateando. Respeitá-los não significa abrir mão do que cremos, nem relativizar o papel único de Cristo como Salvador dos homens.
Ora, se o mundo tateia em busca de Deus, deveríamos nos portar de maneira tal que nossa vida oferecesse uma espécie de escrita em relevo como a linguagem conhecida como braile. Uma vida relevante não é aquela que impõe aos outros os seus valores, mas a que aponta a direção servindo como exemplo.
Cada cultura e tradição espiritual trazem traços da chamada graça comum. O Criador não nos deixou entregues à própria sorte, mas deu testemunho de si mesmo e do seu amor através da própria criação.
Se insistirmos na intolerância, ela poderá nos custar a tão cara liberdade de culto que prezamos. Se não queremos ser importunados em nosso momento de culto, não queiramos calar os tambores dos terreiros, nem os sinos das catedrais, nem interromper o silêncio dos monastérios budistas.
Nosso papel como discípulos de Jesus não é atacar o credo alheio, mas amar incondicionalmente aos adeptos de qualquer expressão religiosa. Antes de pregar com palavras, preguemos com gestos. Como dizia São Francisco de Assis, “pregue em todo o tempo, e se precisar, use palavras.”
Em vez de acusá-los de possessão demoníaca, como frequentemente se faz nos cultos televisionados de algumas igrejas, deveríamos exorcizar os demônios do preconceito que assombram nossas próprias almas. Antes de acusá-los de idolatria, deveríamos nos livrar de nossa devoção aos ídolos secretos, dentre os quais, o dinheiro e o poder. Antes de acusá-los de bruxaria, deveríamos abdicar da presunção de manipular a vontade de Deus a nosso favor através de dízimos, ofertas sacrificiais e intermináveis correntes.
Ora, se todos temos telhados de vidro, não seria melhor que fôssemos mais compassivos uns para com os outros? O diálogo sempre funciona melhor do que o embate. Mãos estendidas costumam ser mais eficazes do que dedos apontados.
Devo confessar que cada vez que vejo um cristão sofrer por sua fé, sinto orgulho de ser cristão. Mas cada vez que vejo um cristão causar sofrimento em alguém, sinto vergonha. Como bem disse Platão, “praticar a injustiça é pior do que sofrê-las.”
Pode-se anunciar o evangelho sem atacar a fé alheia?
Creio, piamente, que sim.
O problema é que estamos usando como abordagem evangelística a mesma tática usada pelo Israel dos tempos bíblicos em suas investidas militares. Com isso, ainda que inconscientemente, reduzimos o nosso Deus a uma divindade tribal que deve ter sua primazia garantida pela destruição de qualquer outra entidade rival. Diferentemente das nações daquela época, vivemos sob a égide de um estado laico, em que o credo professado por cada cidadão deve ser respeitado.
Em vez de nos espelharmos em Jesus, temos tomado o profeta Elias como referência, incorrendo no mesmo erro dos discípulos ao sugerirem que se orasse para que Deus enviasse fogo do céu e consumisse os que se interpunham ao avanço da boa nova. A paradigmática resposta dada por Jesus deveria ecoar continuamente em cada nova geração de cristãos: “Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las”. ( Lucas 9:55-56).
Se tivéssemos que buscar referências no Antigo Testamento, ninguém seria mais indicado do que Daniel e seus amigos Sadraque, Mesaque e Abede-nego. Apesar de não se dobraram ante aos deuses da Babilônia, também não atacaram a religiosidade alheia, indicando, assim, a possibilidade de se conviver amistosamente inserido numa sociedade de múltiplas expressões religiosas sem com isso violar nossa consciência.
Se vivesse em nossos dias, Daniel certamente seria acusado por muitos cristãos de ser um ecumenista. Ele não apenas coexistia pacificamente com indivíduos que cultuavam a outros deuses, como foi promovido, pasmem, a mestre dos magos (Daniel 5:11). Todavia, em momento algum, ele comeu dos manjares oferecidos a tais divindades, nem se prostrou ante a elas, mas manteve-se fiel à sua fé e à sua consciência.
Embora jamais tenha tentado converter o rei da Babilônia ou a sua corte, Daniel teve o prazer de ouvi-lo declarar: “Certamente o vosso Deus é Deus dos deuses” (Daniel 2:47).
A expressão “Deus dos deuses” parece indicar a possibilidade de uma espiritualidade plural e diversificada. Admitir que o Deus a quem Daniel servia estava acima de qualquer outra divindade cultuada naquela sociedade era, sem dúvida, um grande salto. O salmista parece ter expressado o mesmo ideal ao declarar: “Eu te louvarei, de todo o meu coração; na presença dos deuses a ti cantarei louvores”. (Salmos 138:1).
Ora, se eliminarmos qualquer culto ou espiritualidade que divirja da nossa, como poderemos oferecer nossos louvores ao nosso Deus na presença de outros deuses?
Para muitos cristãos, o ideal seria viver numa sociedade uniformizada, onde a fé numa única divindade fosse imposta por lei.
Uma abordagem religiosa que não se paute no respeito deveria ser prontamente descartada. Antes de atacar qualquer expressão de fé, deveríamos nos lembrar de que alguns dos que deram boas vindas ao recém-nascido Jesus não eram judeus devotos do Deus de Abraão, mas magos, expoentes de uma espiritualidade que poderia ser considerada, no mínimo, exótica.
Ademais, depois de sermos duramente perseguidos por séculos, deveríamos ser complacentes com os que sofrem perseguição por causa de sua opção religiosa. De acordo com Jesus, não seríamos reconhecidos como seus discípulos devido ao nosso radicalismo intransigente, mas por amarmos uns aos outros (João 13:35).
Todavia, a questão nevrálgica parece perdurar: como anunciar a verdade do evangelho sem confrontar o que consideramos engano, ou, na melhor das hipóteses, superstição?
Primeiro, precisamos mudar alguns paradigmas. Cristo não comissionou seus discípulos a converter o mundo à sua fé. À luz do evangelho, tal tarefa é atribuição exclusiva do Espírito Santo. Nosso papel como cristãos é tão-somente o de dar testemunho do seu amor, sendo uma espécie de amostra grátis do que o evangelho é capaz de produzir no ser humano. Um “evangelho” que produza gente intolerante não me parece muito promissor, concorda?
De fato, Jesus ordenou a seus seguidores que saíssem pelo mundo fazendo discípulos. Ele disse “discípulos”, não “prosélitos”. Há uma linha tênue entre discipulado e proselitismo. Quem discipula tem o objetivo de partilhar o que recebeu de seu mestre.
Quem faz proselitismo tem como alvo duplicar a si mesmo, fazendo com que o outro abrace suas ideias, seus valores, seus preconceitos, pressupostos, e até seus trejeitos. O discipulado respeita a alteridade. O proselitismo, não. O discipulado costuma ser discreto, sutil. O proselitismo é, por natureza, panfletário e ostensivo.
Para se ter um ideia do mal que o proselitismo pode produzir, repare no que Jesus diz acerca dos seguidores de uma das vertentes mais sectárias do judaísmo de Seu tempo:
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós.” Mateus 23:15
A proposta de Jesus estava na contramão de tudo isso. Não precisamos percorrer o mundo para nos duplicarmos. Basta que comuniquemos a mensagem do reino de Deus de maneira discreta através de nossa vida, sem imposição, sem querer exercer controle, sem a presunção de sermos donos da verdade.
* Trechos do meu livro “INTOLERÂNCIA ZERO”.
Autor: Hermes C. Fernandes