“Se você sente dor, você está vivo. Se você sente a dor das outras pessoas, você é um ser humano.” (Leon Tolstói)
Amigo, cronista e jornalista Celestino Meneghini escreveu reflexões sobre a Utopia da Paz: “estamos em plena escalada da guerra em sua configuração mundial. As mulheres, crianças, velhos, doentes e homens guerreiros, que morrem ou são lançados na dor da violência, reduzem-se a uma explicação genérica, de que a guerra sempre existiu. Esse é o sentimento que se pulveriza na consciência humana. Abandonamos a utopia da paz”. (Leia mais: https://www.neipies.com/a-utopia-da-paz/)
Ao publicarmos estas reflexões, restou-nos algum incômodo sobre a veracidade das afirmações acima descritas, pois sempre acreditamos que o horror da guerra deveria mobilizar o que de mais nobre pode habitar um coração humano: a compaixão e a solidariedade com o sofrimento alheio. As guerras deveriam ser motivos suficientes para o mundo insurgir-se pedindo e exigindo a paz, através da tolerância e do diálogo, capazes de persuadir os briguentos.
No contexto da guerra na Ucrânia, em andamento, ouvimos colegas professores e professoras afirmarem que já temos suficientes problemas para nos preocupar com a realidade brasileira, com a situação das famílias de nossos estudantes, com as complexidades das nossas famílias e de nossas escolas; de que a guerra é uma realidade distante da vida da gente. Diante destas narrativas, vimos sentido e razão em suas percepções, amigo Meneghini. Entendemos, intuitivamente, que esta percepção deve ser recorrente em significativa parte da população brasileira, que vive longe de guerras.
É verdade que há muitos que lutam, incansavelmente, para evitar as guerras e proteger as suas vítimas. Mesmo com interesses escusos, muitos que estão próximos dos poderosos da guerra manifestam preocupação humanitária. No entanto, suas forças e manifestações não conseguem, efetivamente, trazer resultados mais objetivos para evitar os conflitos e as guerras. Neste sentido, resta-nos problematizar sobre o que estaria por trás de tanta passividade diante da estupidez das guerras.
Por que as guerras não nos comovem?
Não somos especialistas do assunto, mas queremos apresentar modestas hipóteses para enriquecer a compreensão desta temática, que pretende, antes de mais nada, suscitar novas e mais profundas reflexões. Há elementos que podem nos ajudar na compreensão sobre tanta passividade diante da estupidez das guerras.
1. Saída pelas armas: quando vivemos uma sociedade que apela para o uso de armas como forma de controle social, é porque as tragédias das mortes injustificadas já não perturbam mais o imaginário das pessoas;
2. Cultura da violência: a cultura da violência, altamente disseminada em alguns jogos virtuais, faz uma desconexão absurda com a realidade cruel a que estão submetidos os povos e grupos em guerra. As crianças e adolescentes, por exemplo, revelam com relativa naturalidade esta reverência às mortes e eliminações dos outros, sem escrúpulos. A tolerância da sociedade com o uso violência é sinal de que a mesma pode ser utilizada para resolver conflitos, sem escrúpulos;
3. Cultura individualista: hoje, as saídas para os problemas da humanidade, modo geral, invocam o individualismo. As mídias e as redes sociais invocam os mais sublimes desejos individualistas que se sobrepõem aos aspectos coletivos e comunitários. As saídas raramente apontam a solidariedade e a compaixão (atitude de colocar-se no lugar do outro) como molas propulsoras de uma convivência respeitosa e fraterna.
4. Cultura brasileira: pacífica ou passiva? Vivemos uma cultura nada pacífica e, sim, de muita violência no nosso cotidiano. Basta observarmos os números diários da violência do trânsito, contra as mulheres, homicídios e suicídios, a violência fruto das mais variadas formas de preconceito e discriminação. Nossa cultura é passiva diante da crueldade da violência e da violação dos direitos de cada um e cada uma e de todos nós. Raramente reagimos exigindo mudanças de posturas que agridem a nossa dignidade e a nossa liberdade.
5. Indiferença com o sofrimento alheio: por razões diversas, muitos de nós tomam distanciamento do sofrimento dos outros, a não ser que estejam envolvidas pessoas de sua família ou comunidade. O que é de outro país, de outra cultura, parece não pertencer à mesma humanidade que todos carregamos.
6. Guerras recorrentes fazem parte da “paisagem contemporânea”: importante dizer que a existência perene das guerras parece “suavizar” o sofrimento que todas elas provocam. Em diferentes países, e por diferentes motivações, ocorrem guerras, perseguições e mortes todos os dias. Parece, então, estarmos acostumados com as diferentes e injustificadas atrocidades cometidas pelos senhores da guerra.
7. “Se queres paz, prepara-te para a guerra” (provérbio romano). Parece que, para muitas pessoas, justifica-se a guerra porque ela pode trazer a paz. Será? Esta parece ser também a máxima que levou os EUA e países europeus, através da OTAN, a armar o exército e a população da Ucrânia mesmo sabendo da superioridade do exército russo.
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Para compreender um pouco melhor a relação dos brasileiros diante da violência urbana e das guerras, tomamos estas ideias de Helena Simonard-Loureiro, ao descrever em texto “Cenas de uma guerra que não comove ninguém”:
“…vivermos neste fatalismo estúpido. Qualquer um sabe que amanhã alguém vai morrer no trânsito, depois de amanhã também e assim por diante, sempre. Não há protestos, não há solidariedade e não há soluções à vista para reverter o quadro. O que há é cada vez mais a multiplicação de meios para que estas mortes não apenas continuem como aumentem. A perda não é sentida pela sociedade com o mesmo horror de um atentado terrorista, que se transforma num temor coletivo. A perda, neste caso, é quase individual. A dor fica circunscrita à família, aos filhos, aos pais, aos amigos. Se há indignação é contra o motorista que avançou o sinal. A responsabilidade tem que ser apurada, mas o problema como um todo é de natureza coletiva, porque não foi apenas uma morte. Ela se soma às milhares de outras. Todos os anos. Uma carnificina hedionda”. (Leia mais: https://tribunapr.uol.com.br/blogs/comer-e-viver/cenas-de-uma-guerra-que-nao-comove-ninguem/)
Cultura de paz e papel das escolas
A esperança é a força mobilizadora que nos faz olhar para o nosso lado (e para a história), com o propósito de perceber quem luta e quem já lutou por uma cultura de paz. Cremos que a cultura da tolerância e da paz nasce justamente nos esforços diários e perseverantes que afirmem o diálogo como pressuposto maior dos entendimentos humanos.
Martin Luther King, líder negro, religioso e pacifista, afirma que“nós não podemos nos concentrar somente na negatividade da guerra, mas também na positividade da paz”.
A paz não está e nem se realiza em contextos sem conflitos. Os conflitos fazem parte da natureza humana, mas cabe à sociedade e, às escolas, de modo particular, estabelecerem dinâmicas de convivência onde se experimentem a resolução de conflitos e diferenças pelas vias da escuta, do diálogo, do respeito mútuo e da aceitação das diferenças.
Escolas no pós pandemia
A pandemia que colocou muitas coisas em cheque, inclusive o papel das escolas e da educação, poderia ter deixado lições que apontem mais para o horizonte da coletividade, superando a visão fragmentada do individualismo. Como escreve o professor Everaldo Reis, em texto “Escolas mais solidárias pós pandemia”,
“as escolas só serão locais de profusão de solidariedade se fizerem de seus espaços, locais onde se alimenta sonhos. Há muito as escolas deixaram de ser o local onde se vive sonhos. É comum encontrar estudantes no ensino fundamental e nos primeiros anos do ensino médio que não se identificam com nenhuma causa, engajamento cultural, propósito de vida, profissão, ou mesmo nutre o desejo de ir a faculdade. No máximo se sonha ou se nutre a ideia de uma ida a faculdade quando se está concluindo o ensino médio. As escolas como locais de sonhos é mais que isso. É ir eticamente promovendo experiências e conectando os alunos aos seus interesses e desejos. (Leia mais: https://www.neipies.com/escolas-mais-solidarias-pos-pandemia/ )
Reafirmamos nossas convicções por um mundo de paz, de respeito e de tolerância, ao invés da brutalidade da violência. Temos que continuar lutando pela paz, sombreada pela onda de consumismo que suplanta a existência da alma.
Acreditamos que a escola deve ser um lugar que permita aos estudantes olhar para o mundo, a partir das suas realidades. Neste sentido, as guerras interessam para o estudo, para discussão e discernimento com os estudantes e para afirmação de valores que promovam a dignidade e a liberdade humanas. As mulheres, crianças, velhos, doentes e homens guerreiros, que morrem ou são lançados na dor da violência, não podem ficar reduzidos a uma explicação genérica de que a guerra sempre existiu. A guerra é evitável, sim!
Como disse Albert Einstein: “A paz é a única forma de nos sentirmos realmente humanos”. Se quisermos viver a humanidade que está presente em cada um de nós e em todo mundo é preciso fortalecermos uma cultura de paz, alicerçada em valores mais solidários e mais fraternos.
O filme egípcio “L’altra par” durou só 3 minutos e ganhou o prêmio de melhor curta metragem no festival de cinema de Veneza. O diretor tem 20 anos. O filme descreve como as pessoas se isolam na tecnologia e perdem a convivência. Assista: https://youtu.be/bpQMsc0EpjE?t=20
Sugestão de leitura e aprofundamento temático:
- “Se você sente dor, você está vivo. Se você sente a dor das outras pessoas, você é um ser humano.” (Leon Tolstói). Assista vídeo sobre obra Guerra e Paz, Leon Tolstói. https://youtu.be/uZ1fHezR8p8?t=476
- Projeto ensina Cultura de Paz e comunicação não-violenta –professora do quinto ano construiu projeto sobre o poder da não-violência, reconhecido no Brasil e no exterior. Conheça:https://novaescola.org.br/conteudo/14245/projeto-ensina-cultura-de-paz-e-comunicacao-nao-violenta-para-turma-do-5-ano
Autor: Nei Alberto Pies
Edição: Alex Rosset
ARETÊ/VIRTUDE/EXCELÊNCIA
Adeli Sell
“Aretê” era um conceito grego usado nas guerras, era ser forte e astuto para vencer, mas tendo respeito ao vencido. Era um estado de excelência.
Garibaldi foi um lutador aqui na Guerra dos Farrapos, lutou no Uruguai, como foi o lutador da unificação da Itália. Aqui, num confronto em São José do Norte, não deixou que degolassem um jovem, pois ainda poderia lutar por sua pátria. Bento não deixou que queimassem a mesma vila neste confronto, para não matar civis. Estes foram dois exemplos de aretê. Outro caso de aretê foi-nos dado pelo General Netto, depois de Porongos, largando seu “inimigo” interno Canabarro, vai com seus adeptos, inclusive negros sobreviventes ao Uruguai. Netto teve a excelência de não compactuar com Canabarro.
Nem Putin, nem Zelensky, nem Netanyahu, nem o Hamas tem aretê. Nem o presidente Biden.
São velhos guerreiros que querem sangue, mortes, ranger de dentes.
Querem poder e glória, mesmo tendo a morte de seus irmãos a lhes perturbar suas almas pela eternidade afora.
Veja que há quase 200 anos atrás havia, numa guerra de degolas, momentos de aretê, o que não tem nas guerras atuais.
Virtude é resgatar nossos compatriotas, sem pedir reconhecimento. Até porque os fascistas que também estavam entre os 916 resgatados dão reconhecimento a quem nada fez. É a aretê fake. Vivemos um mundo da Banalidade do Mal. Vivemos a modernidade líquida das coisas “fake”.
Que sirvam as façanhas de excelência modelo a toda terra!.
Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito.