Há quem pense fazer o bem, enquanto faz o mal. Há quem destile ódio em nome de um amor não correspondido. Há quem seja movido por vingança, alegando agir por justiça. Há quem viva uma mentira alegando ser em defesa da verdade.
Ter esperança nada mais é do que seguir confiante de que o melhor, eventualmente, se sucederá. Todavia, há desfechos pelos quais jamais ousaríamos ansiar. Nem tudo nessa vida é preto no branco. Há vitórias que são verdadeiros fracassos.
Davi experimentou isso. A crise gerada por seu filho Absalão não poderia terminar bem. Qualquer das alternativas seria igualmente devastadora para o coração do velho pai. Se Absalão obtivesse êxito em sua conspiração, Davi perderia o trono. Porém, se fosse derrotado, Davi perderia o filho.
Insistentemente esperançoso, Davi ordenou a seus generais que por amor a ele tratassem brandamente ao jovem Absalão. Para garantir que sua ordem fosse cumprida, o rei tratou de falar pessoalmente com todos os capitães na presença do povo. Ele queria desbaratar a rebelião, mas manter ileso o seu causador. Afinal, tratava-se de seu filho e não de um estranho qualquer.
Durante a sangrenta batalha no bosque de Efraim que estancou a rebelião, eliminando ao menos vinte mil soldados, Absalão foi encontrado por acaso pelos servos de seu pai. Montado numa mula, seus cabelos longos se prenderam nos ramos de um carvalho. A mula seguiu sua marcha, mas ele ficou suspenso no ar. Um dos homens correu e contou a Joabe, general de Davi, o que flagrara. Indiferente ao que Davi tanto lhe recomendou, Joabe perguntou ao soldado: “Por que não o derrubaste logo por terra? Eu te haveria dado dez siclos de prata e um cinto” (2 Samuel 18:11). Duvido que Joabe esperasse ouvir dos lábios daquele anônimo a resposta que recebeu: “Ainda que eu pudesse pesar nas minhas mãos mil siclos de prata, não estenderia a mão contra o filho do rei, pois bem ouvimos que o rei deu ordem a ti, e a Abisai, e a Itai, dizendo: Guardai-vos, cada um, de toca no jovem Absalão. E se eu tivesse procedido falsamente contra a sua vida, coisa nenhuma se esconderia ao rei, e tu mesmo te oporias a mim” (vv.12-13).
Esta resposta merece que nos debrucemos um pouco mais sobre ela. Engana-se quem pensa que todos têm um preço. Entre as massas facilmente manipuláveis, sempre encontraremos quem tenha valor e jamais permita que sua alma seja etiquetada. Infelizmente temos que admitir que não são muitos. Há que se garimpa-los.
Geralmente, estão entre os anônimos, entre os que não venderam suas almas em busca de fama e reconhecimento. Joabe, considerado fiel escudeiro de Davi, finalmente se deparou com alguém mais fiel do que ele. E aqui se vê a diferença entre lealdade e fidelidade. Joabe se revela leal a Davi ao se prontificar a matar quem se lhe opunha. Ao passo que se mostra infiel ao mesmo rei ao deixar de atender à sua solicitação de poupar o rapaz. Num mesmo gesto, lealdade e infidelidade. Numa cortada brusca e deselegante, Joabe respondeu àquele homem: “Não vou perder tempo assim contigo. E, tomando três dardos, trespassou com eles o coração de Absalão” (v.14). Alguém como Joabe não se prestaria a perder tempo com quem não se deixasse manipular. Aquele moço era carta fora do baralho, um idiota inútil.
Havia a necessidade de tão grande covardia? Não teria sido melhor simplesmente prendê-lo e entrega-lo vivo ao rei? Porém, Joabe achou que matando a Absalão, estaria zelando pelos mais nobres interesses do reino. Por isso, não se importou com a ferida que abriria no coração de Davi. Não se importou com a dor dilacerante que provocaria em seu amigo. Seus interesses falavam mais alto que seus sentimentos.
Quem diria que o mesmo Joabe que lá trás intercedeu a Davi para que recebesse de volta a seu filho Absalão, agora remetia contra a sua vida. Talvez fosse justamente por isso, por um sentimento de culpa, pois se sentia responsável por haver reintroduzido Absalão em Jerusalém, convencendo seu pai a perdoá-lo. Joabe havia sido seu avalista, daí achar-se no direito de interromper seu motim mesmo que fosse através de um ato covarde como aquele. Possivelmente pensasse que, sendo ele quem abrira aquela ferida no reino de Davi, competia a ele estancá-la, mesmo que fosse por uma atitude tão covarde, matando-o a sangue frio, sem direito de defesa. Seja qual tenha sido o mecanismo usado para driblar sua consciência, o fato é que Joabe foi infiel ao seu rei na medida em que se negou a atender a um pedido seu.
Há quem pense fazer o bem, enquanto faz o mal. Há quem destile ódio em nome de um amor não correspondido. Há quem seja movido por vingança, alegando agir por justiça. Há quem viva uma mentira alegando ser em defesa da verdade. De fato, só precisamos de uma boa justificativa para sermos cruéis. E assim, sacrificamos nossa fidelidade no altar da lealdade. A lealdade visa preservar o interesse do outro, desde que este não se esbarre com o nosso. A fidelidade leva mais em conta o desejo, a vontade expressada, do que meramente o suposto interesse.
Jesus advertiu aos Seus discípulos: “Vem a hora em que qualquer que vos matar julgará prestar um serviço a Deus” (João 16:2). Poderia haver mal entendido maior que esse?
Paulo mesmo admite que perseguia a igreja por causa do zelo que tinha pela lei de Deus (Filipenses 3:6). Portanto, Paulo era-lhe leal, porém, sem ser-lhe fiel. Não basta estar do lado certo da história, defendendo o belo, o justo e o bom. Nem é suficiente ser zeloso do bem.
De que adianta fazer o bem sem ser bom? De que vale uma generosidade cruel? De que vale fazer justiça com as próprias mãos, sem ser realmente justo, ser honesto, sem ser íntegro, ser verdadeiro, sem ser sincero?
Autor: Hermes C. Fernandes. Também escreveu e publicou “Que tipo de revolucionário foi Jesus”?: www.neipies.com/que-tipo-de-revolucionario-foi-jesus/