Por que Deus permite as enchentes?

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“É o meu Rio Grande do sul, céu, sol, sul, terra e cor. Onde tudo que se planta cresce, o que mais floresce é o amor” (Os Serranos)

As divindades estão em todo lugar (onipresentes), possuem todo poder (onipotentes). Será que elas se ausentaram propositalmente do Estado, outrora jardim no qual tudo que se plantava crescia? Teria Deus, ou os deuses, motivos para enviarem destruição, tristeza e morte sobre o bioma sulino? Quem vamos culpabilizar por tamanho infortúnio? Que pessoas e ou instituições responsabilizaremos pelas pesadas águas que descem do céu, enchem rios, invadem casas, provocam desmoronamentos e soterram o projeto de tantas, diferentes gentes? 

A reflexão que esse escrito propõe tem como objetivo sugerir a superação do “pensamento mágico”, da explicação falaciosa e a urgente necessidade de recriarmos a cultura do cuidado integral com a vida que emana da terra, das águas, do ecossistema.

Em uma primeira análise, nas perguntas que iniciam essa reflexão, se insere a superficialidade de respostas fornecidas por pessoas e grupos religiosos desprovidos do conhecimento Teológico, entendido como ciência que trata sobre a relação do humano com o divino.

É importante se perguntar sobre as causas deste destempero climático que vem assolando o Rio Grande do Sul, no entanto a pergunta não deve ser direcionada para uma instância superior que para alguns é Deus e para outros entidades transcendentes.

As perguntas certas são: qual é a nossa responsabilidade? Como participamos das decisões, que cada vez mais flexibilizam as políticas ambientais? De que forma nossa cultura contribui com a destruição do ecossistema do qual somos uma pequena porção?

O filósofo alemão Hans Jonas aborda a questão da ética, usando o conceito de responsabilidade, tomando este como princípio, sem o qual a continuidade da vida no Planeta é inviabilizada.  De acordo com o filósofo, antes de qualquer ação deveríamos pensar em garantir o futuro da vida em todas as suas formas. Antes de abraçar um sistema político-econômico, deveríamos pensar nos impactos ambientais e sociais do mesmo.  Para elaborar esse princípio ético Jonas se inspira no Imperativo Categórico de Kant e, através dos seus escritos segue nos exortando a agir de modo a que os efeitos da (nossa) ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra” (JONAS, 2006, p. 47)[1].

A cultura do consumo, fundada na lógica do lucro e na “obsolescência programada” não favorece em nada para que uma existência genuína no planeta continue possível. Importante atualizarmos este imperativo incluindo nele todas as formas de vida, visto que a destruição da “mãe natureza” coloca o planeta em risco.

Políticos agem com irresponsabilidade ao flexibilizar as leis ambientais, especialmente as que discorrem sobre o desmatamento, uso de agrotóxicos, garimpos, descarte de resíduos orgânicos e inorgânicos. Nós agimos com irresponsabilidadequando elegemos ideologias que se opõem à vida, quando em nome do lucro buscamos legalizar a derrubada das matas, o aterramento de rios e de vertentes de água, e o já mencionado uso de substâncias danosas para a saúde.

Egoisticamente, buscamos a felicidade comprando coisas que não necessitamos para saciar o desejo de sentido que nos habita. Empilhamos ilusões na forma de mercadorias que são “ jogadas fora”, como se o “fora” designasse um espaço mágico no qual as coisas desaparecessem. Infelizmente, esse comportamento fundado na irresponsabilidade resulta no aumento do buraco da camada de ozônio e no superaquecimento do planeta.

E agora? A natureza não tem “consciência de classe”, atinge a todos, alaga o Shopping Center com a mesma fúria que destrói a casa de três cômodos, ou a “meia água”. É claro que os menos favorecidos são os mais prejudicados, visto que é muito difícil para subempregados, assalariados, reconstruírem suas vidas, no entanto, é impossível para pessoas de qualquer situação sócio econômica ressuscitar os mortos. Neste sentido, somos o Estado mais enlutado do Brasil e invadidos por traumas sem precedentes, que muitos chamam de “cenário de guerra”.  O sofrimento nos iguala e “queiram as divindades” que nos humanize, nos transforme em responsáveis cuidadores da vida, em seres empáticos.

“Atuar de forma que os efeitos de nossas ações sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana genuína sobre a terra” é um imperativo que precisa perpassar a educação, especialmente a que acontecesse no espaço escolar, visto que o fazer pedagógico não deve treinar para a repetição de um modelo de vida, cujos resultados o clima tem escancarado. Cabe à educação ensinar ética da responsabilidade, consciência ecológica, relacionamentos comprometidos com uma existência genuína das gerações vindouras. E neste sentido, educação ambiental, sustentabilidade não podem ser apenas os temas transversais que perpassam o currículo escolar.

 É preciso repensar com urgência o modelo econômico e a finalidade do consumo, é urgente buscar o sentido que não estaciona na mercadoria e na descartabilidade da vida. Será que podemos, começando pela imaginação, vislumbrar outros horizontes de sentido?          

A onda de solidariedade que vivenciamos no Rio Grande do Sul nos ensina que, irmanados por tantas dores, perdas e lutos podemos construir outra forma de relacionamento uns com os outros e com a natureza da qual somos parte. Unido pelo espírito fraterno que faz de todos irmãos e irmãs podemos nos responsabilizar pela formação de consciências éticas, por construir e fomentar formas de consumo sustentáveis e biodegradáveis.

E ainda, aos teístas cabe a responsabilidade de viver a fé através de atitudes pautadas no cuidado como, genuína expressão de amor à vida. Premissa esta que se fundamenta no livro cujo título já é uma mensagem, Gênesis, ou seja, origem, nascimento. Neste livro, entendemos que do CAOS Deus fez o Universo com o ser humano, cuja tarefa consistia em cuidar do jardim, usufruindo com responsabilidade do que fora feito, diferente do domínio destruidor que está inviabilizando a vida. O que temos feito para garantir a continuidade da vida no Planeta Terra?

Desde a revolução industrial, o Planeta Terra vem sofrendo cada vez mais, devido a escolhas infelizes feitas pela própria humanidade. Invocar Deus ou os deuses solicitando respostas e socorro não nos isenta da responsabilidade. Culpabilizar o ateísmo e a diversidade religiosa, especialmente a umbanda, fere gravemente o direito à liberdade religiosa, soa como atitude insana e fundamentalista. Correr na direção de respostas mágicas e recorrer a intolerância religiosa não resolverá em nada a crise que já está posta e avolumada pelas ações nossas de cada dia.

O Conteúdo que expomos acima se opõe a todo discurso fundamentalista como o mencionado na entrevista disponível no link: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/prefeito-sugere-que-enchentes-no-rs-tem-relacao-com-a-presenca-de-menos-igrejas-e-mais-centros/amp/

Autor: Marciano Pereira. Também escreveu e publicou no site “Cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza como expressão da vida”:  https://www.neipies.com/cuidar-de-si-do-outro-da-coletividade-e-da-natureza-enquanto-expressao-de-valor-da-vida-propostas-de-atividades-pedagogicas/


[1] JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUCRio, 2006.

Edição: A. R.

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