Dificilmente as pessoas entendem que a escrita pode funcionar como uma terapia. Não é a mesma coisa, mas soa terapêutico. Sem contar o prazer que se tem em se praticar essa arte.
Estou completamente sozinha enquanto escrevo estas linhas. O mês propicia idealizarmos um monte de coisas. Tenho vários planos. Acredito que aconteça isso com a maioria das pessoas. Reavaliar valores, considerar desafios, assim como se programar para o que queremos e o que não queremos para este novo ano.
No quarto onde estou sinto um silêncio enorme. Do outro lado da janela ainda há um sol oblíquo batendo em um coqueiro. A copa da árvore, ao lado, uma cerejeira, está repleta de luz e de sombras.
Tenho intimidades com a natureza e gosto de registrar o que sinto, quando tocada por ela. Sinto leveza e inspiração que me conduzem a criar.
Pouco tempo atrás, um passarinho estava empoleirado em uma ramificação do tronco da ameixeira. Ele tinha algo comprido dependurado no bico, uma espécie de minhoca, e se esforçava para engolir jogando a cabeça para traz e para frente. Depois foi embora.
Sopra um vento leve trazendo gorjeios e cantos de vários pássaros. Acho o cantar do rabo-de-palha tão triste, parece uma súplica. Li que são os pássaros mais misteriosos do Brasil.
A enorme solidão que sinto é parecida com o silêncio absoluto que faço no momento da escuta nos atendimentos do consultório.
Fico afásica, só prevalece a fala do outro e quando chego em casa nem a TV gosto de ligar. Se está ligada, vou para outra peça da casa e pego um bom livro. Acho a TV pouco instrutiva, traz a coisa pronta e os apresentadores são enfáticos e falam muito alto.
Por isso, talvez, o anseio em articular palavras que possam ganhar vidas com o passar do tempo, no momento em que alguma pessoa deixar cair o olhar sobre elas. Conforme li certa vez, não lembro onde, “é na leitura que um texto ganha vida”.
Na hora em que escrevo, elas cantam dentro de mim e me perco de meu próprio ser. Entro em devaneios. É algo imprevisível, que não consigo controlar. Diferente de quando leio e me perco na fala do autor. Às vezes tenho bem claro o que quero transmitir, mas a ideia vai se afastando e se compondo em movimentos. Escolho uma palavra em vez de outra, como se surgisse outro eu em meio à linguagem.
Tudo aquilo que sinto procuro transmitir como se estivesse vivendo e vendo, como foi o caso do pássaro tentando engolir uma larva ou minhoca. Ele parecia tão absorto. Não demonstrava estar desprovido de presença na realidade de sua existência. Ele até poderia obscurecer-se por pensamentos, como eu na hora da escrita, mas depois voltaria à realidade. São pensamentos coesivos do eu que a leitura e a escrita dissolvem.
Desnudo o meu eu quando escrevo para me encontrar. Emoções que guardo dentro de mim às vezes tomam vieses exagerados e preciso expressá-las, pois ficam parecendo feras selvagens enjauladas. Poxa vida! Que triste sina esta de escrever!
Ouvi de uma pessoa conhecida, não amiga, se assim o fosse não diria:
— Não esqueça de que poderá estar se expondo demais com tua escrita.
— É verdade — eu disse.
— Parece que você anda angustiada.
— Dá para notar?
A pessoa riu na minha cara.
— Está tudo bem — falei – o problema é que gosto de escrever.
Ficou me olhando séria e então pensei que não adiantava explicar muito. Dificilmente as pessoas entendem que a escrita pode funcionar como uma terapia. Não é a mesma coisa, mas soa terapêutico. Sem contar o prazer que se tem em se praticar essa arte.
Saí pensativa: “se não for assim, o que seria enfim escrever?”.
Autora: Elenir Souza. Soledade, RS, dia primeiro do ano de 2024.Também já publicou no site a crônica “Reencontro”: https://www.neipies.com/reencontro/
Edição: A. R.