Por que “matam os professores, aos poucos”?

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Douglas Pereto, professor da rede estadual do RS, tem uma linguagem direta e coloquial. Em suas manifestações e publicações, sempre surpreendentes, traz à realidade à tona com seu jeito peculiar.



Pereto é autor do artigo “Matam os professores, aos poucos”, publicado no site no mês de março de 2019.

Com suas provocações, trouxe à luz dos leitores a dramaticidade e a situação delicada em que vive o magistério público estadual.

Nesta entrevista, queremos conhecer o autor, aprofundar seus conhecimentos sobre educação e promover um aprofundamento reflexivo das questões abordadas em seu artigo já referido, que suscitou muitos debates, questionamentos, acessos e compartilhamentos.

NEI ALBERTO PIES: Como surgiu a inspiração e a motivação para escrever o título: “Matam os professores, aos poucos”?

PERETO: Busquei inspiração nos poemas de Mario Quintana, “Rua dos Cataventos” e Affonso Romano de Sant”Anna, “A primeira vez que entendi”. No texto, segui com Ésquilo e seu “Prometeu”, para evidenciar a dilapidação da carreira do magistério.

NEI ALBERTO PIES: A que atribuir o sucesso e a aceitação do seu artigo por tanta gente?

PERETO: Acho que por abordar tema entalado na garganta de tantos profissionais da área. E também por tratá-lo de forma direta, mesclando linguagem formal e coloquial, usando emojis e até linguagem vulgar (no texto original tem um palavrão). O texto não deseja ser uma visão individual, mas uma voz daqueles que não aguentam mais serem colocados em caixas do pensamento.

NEI ALBERTO PIES: O que mais realiza na profissão, como professor de Literatura?

PERETO: É ver o estudante relacionando o texto trabalhado em sala com suas vivências, emoções, com a sociedade, com músicas, séries etc. Literatura que fica vomitando características e gramaticalidades não me serve.

NEI ALBERTO PIES: No seu entendimento, que elementos são importantes para entender a conjuntura difícil dos professores estaduais do RS?

PERETO: Nossa situação é como um desastre, para o qual concorrem diversas falhas: governos incompetentes e covardes, descontinuidade de linhas pedagógicas, disputas internas e trampolins políticos. Enquanto uns governos contribuíram para o arrocho financeiro e estrutural, outros abriram as torneiras como se não houvesse amanhã.

Nosso plano de carreira está defasado e, em nome de sua atualização, não nos oferecem contrapartidas válidas.

Hoje, olhamos desconfiados para qualquer um que diga ser nosso defensor, até porque o acirramento político nacional tem nos rotulado pejorativamente.

NEI ALBERTO PIES: Atuaste, como professor, na escola particular. És também professor de Cursinho de preparação ao Vestibular. Qual é a principal diferença entre a escola particular e a escola pública?

Temos diferenças nas estruturas físicas e pedagógicas oferecidas, na sequência didática, na bagagem cultural trazida pelos estudantes, na disponibilidade dos pais em comparecerem às atividades e obrigações escolares, na questão salarial, dissídios e vantagens.

Também é importante destacar não haver, na rede privada, estabilidade no cargo, o que colocaria muita gente do serviço público no olho da rua por corpo mole ou pura incompetência.

Mas não posso deixar de salientar que os sindicatos já realizaram campanha pela saúde do professor, visto a pressão que sofrem por resultados ou por terem que se virar com as parcas condições ofertadas. E a cobrança, as perdas salariais, o desrespeito, em todos esses espaços, só tendem a piorar nosso cotidiano. É comum ouvirmos “Faça mais com menos”.

NEI ALBERTO PIES: Destacas a polarização política, atualmente vigente no país, como um dos fatores que colaboraram para nossa desvalorização profissional. Como e porque a polarização é nociva aos professores atualmente?

PERETO: Ser professor é apresentar diversos pontos de vista, possibilidades de análise, mas qualquer tema tem sido reduzido a um embate Esquerda X Direita, Nós X Eles. A sociedade, motivada pelo comportamento nas redes sociais, empurra a todos para a Bacia da Almas: céu ou inferno, sem escalas. Ver algo de bom naquele grupo diverso do seu é encarado como traição. A polarização nos oferece um prato feito, um combo, um pacote fechado, impossibilitando diálogos e avanços.

NEI ALBERTO PIES: Se o pacote de reestruturação da carreira do magistério for aprovado pela Assembleia Legislativa do RS, como ficará a situação dos professores?

PERETO: Se aprovado na íntegra, vai sepultar a carreira e possíveis avanços, oficializando perdas. O Governo não garante contrapartidas, não enfrenta os grandes devedores, não tem coragem de apertar os cintos de quem ganha mais. Medidas como a PEC do congelamento de gastos, Reforma da Previdência, Lei de Responsabilidade Fiscal e repasse do duodécimo ao Judiciário e Legislativo, nos marginalizam, mantendo as castas bem separadas. Não temos lobby nos corredores da política, não somos influentes.

NEI ALBERTO PIES: Na sua visão, porque os professores da rede estadual e municipal defendem tanto a escola pública, de qualidade social e inserida em suas comunidades?

PERETO: Porque escola pública é a mais democrática, a que acolhe a todos. A escola pública cumpre o papel de acolhimento não apenas educacional, como psicológico, de saúde, chegando a envolver-se com as mazelas da fome, da pobreza. O professor da rede pública é um multiprofissional.

NEI ALBERTO PIES: Por que os pais dos nossos estudantes participam tão pouco das atividades escolares e comprometem-se cada vez menos com os desafios da educação de seus filhos?

PERETO: São gerações e mais gerações de estudantes passando por nós, em ambientes cada vez mais negligenciados, fruto de governos que nada ou pouco contribuíram para a diminuição da desigualdade social, do desemprego, da violência. Tudo isso desemboca na escola. Os filhos daqueles estudantes chegam agora até nós, recebendo a herança de que estudar é chato, desnecessário, servindo, muitas vezes, como ocupação enquanto os pais trabalham ou garantia de um atestado de frequência para conseguir um emprego, quando se trata de estudante do Ensino Médio.

Os pais da escola pública, modo geral, são empregados e não tem a mesma disponibilidade do pai patrão, profissional liberal, para ir ao colégio. São pessoas que saem cedo e voltam tarde.

 Mas para entender isso é preciso sair da aldeia, da visão de quem lê esse texto nas pequenas cidades. Quem mora numa região metropolitana já sente melhor os efeitos dessa estafa em seu cotidiano. Há um terceiro turno doméstico a cumprir, no qual muitas vezes se negligencia o acompanhamento da s tarefas escolares dos filhos. Muitas vezes, quando o filho chega as séries finais do Ensino Fundamental, os pais já dizem com alívio: “Agora ele se vira sozinho, já é responsável”. Quando chega ao Ensino Médio então, os pais são quase alienígenas ao ambiente escolar.

NEI ALBERTO PIES: Qual é, na sua visão, a importância do patrono da educação Paulo Freire e de outros grandes pensadores como Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira para a concepção do ensino brasileiro?

PERETO: Cada um, em seus estudos, conseguiu trazer o excluído para o centro do processo educacional. Montar um projeto, a partir da realidade onde se atua, compreendendo-a, expandindo seus horizontes e aplicando em sociedade, torna-se a chave para um mundo onde a intelectualidade sirva à tolerância, ao respeito, ao crescimento social de forma humana.

NEI ALBERTO PIES: Por que alguns grupos querem controlar os professores, alegando que os mesmos são “doutrinadores”? Qual é a importância da liberdade de cátedra?

PERETO: A liberdade de expressão, a liberdade de cátedra, o estímulo ao debate, pressupõe responsabilidade sobre suas falas e atitudes. Há leis suficientes para coibir abusos. Mas projetos como o Escola Sem Partido são um exemplo claro de grupos políticos retrógrados, tentando silenciar a sociedade, para que ela, anestesiada e desconhecedora da história, não questione os que estão no poder.

NEI ALBERTO PIES: Uma frase sobre educação.

PERETO: Semear educação é colher segurança, emprego, renda e, por consequência, uma sociedade menos desigual e mais tolerante.

NEI ALBERTO PIES: Uma motivação aos adolescentes e jovens, que são a alegria e a possibilidade de realização dos professores.

PERETO: Não perca tempo com arrogância, respeite quem te apresenta o futuro, seja parceiro do professor. Todos saem ganhando.

NEI ALBERTO PIES: Uma breve poesia, que nos inspire a viver e deixar viver.


“A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais
(…)
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais”

Alucinação – Bechior

1 COMENTÁRIO

  1. Adorei esse desabafo, e bem isso mesmo que acontece. Agora, preciso planejar e enviar 16 planos semanais( sendo 8 para estudantes e 8 para coordenação) isso se não gostarem, tenho que refazer. Essa semana tive que refazer mais 4 porque a coordenação não gostou

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