Por que o povo não tem medo da Covid?

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Gostamos de contar histórias no site. Histórias verdadeiras, vividas com intensidade, responsabilidade e compaixão. Queremos contar a história de Raphael Souza Alves, nascido em Mato Grosso. Ele morou recentemente em Moçambique, na África. Conviveu com a gente também por alguns anos no Estado do RS, cidade Passo Fundo.

Através das redes sociais, acompanhamos a sua angústia e o seu sofrimento por estar contaminado pelo vírus Covid e hospitalizado, junto com sua mãe. Queremos também registrar a alegria por ter vencido a doença, como também suas preocupações com a situação dos povos indígenas e as precárias e insuficientes condições da rede de saúde do seu Estado.

Alves também demonstra preocupação com a falta de sensibilidade e compaixão de muitas pessoas que ainda não acreditam no poder letal do Covid 19.


Convivendo com a Covid

Meu nome é Raphael, escrevo da cidade de Pontal do Araguaia – MT. Sou um jovem negro, filho de uma mulher preta e de um homem caboclo, que no dia do meu aniversário, 17 de junho, fui internado com a minha mãe na UPA de Barra do Garças com Covid-19.

Os sintomas dos dias anteriores já indicavam a contaminação. O que começou com uma forte dor no corpo, na noite de segunda-feira, 08 de junho, se espalhou pelas articulações, por cima dos olhos e irritação na garganta no dia seguinte. As dores no corpo eram parecidas com as da malária, sei bem disso, pois estive em missão nos últimos três anos no norte de Moçambique, onde essa doença deixa homens, mulheres e crianças de cama, por no mínimo três dias. Essa hipótese foi descartada uma semana depois, quando chegaram os resultados dos exames.

Nessa altura, minha mãe e eu, já não sentíamos os cheiros e os sabores dos alimentos, nem apetite para comer aquilo que com esforço se preparava. E uma irritação, agonia, misturado com “coisa ruim”, como se diz por aqui, sem motivo nem razão premeditada, importunava ainda mais nossa rotina.

Meu pai, sem ter para onde ir, ficou conosco se arriscando ser contaminado. Felizmente, ele traz consigo a sabedoria dos ancestrais e da cultura local: beber uma dose de cachaça com alguma erva, raiz ou semente por dia, depois que chega do trabalho, antes da sua cerveja. Não sei se isso se efetiva na imunidade, mas ele não chegou a manifestar os sintomas.

Até que chega a quarta-feira, dia da minha natalidade. Quem me conhece, sabe bem que não gosto de aniversários e muito menos de quartas-feiras: um mau-humor me toma conta, impedindo tudo aquilo que poderia ser aproveitado. Como que tudo que é de ruim acontece para mim nas quartas-feiras, foi neste fatídico dia que fomos internados, com manchas e estrias nos pulmões, reduzindo sua capacidade de funcionamento.


Como foi o atendimento no hospital

Chegamos por volta da meia-noite, passamos pela triagem e depois pela consulta médica, antes de sermos literalmente internados. Tudo muito demorado, até porque não éramos os únicos ali.

Ao nosso lado quatro pessoas, duas delas indígenas, também esperavam atendimento, apresentando os mesmos sintomas. Depois de 4 horas entre consultas, novos exames, injeções, mais picadas, soros e comprimidos, fomos conduzidos aos leitos: um quarto gelado, sem lençóis, travesseiros e mantas, com mais quatro pacientes e um barulho infernal dos respiradores.

Não tínhamos levado nada além de roupas e produtos de higiene pessoal. E, ali, naquela situação, senti na pele a precarização do SUS, fruto de um governo que não está preocupado em combater a pandemia; que não se importa com a vida dos pobres e das minorias étnicas. A única coisa que nos consolava é a atenção, o cuidado e o profissionalismo das enfermeiras, que trabalhavam, diante de tanta dor e excesso de carga horária, com bom-humor e carinho.  

No dia seguinte já recebi alta, minha mãe passaria mais quatro dias internada. Ela foi transferida para outro quarto, maior e com mais leitos, eu segui como acompanhante. Não deixaria ela sozinha com a incerteza de se voltaria ou não para casa. Nesse novo quarto, entre os pacientes, doze indígenas, a maioria deles idosos, também recebiam o tratamento contra o novo corona-vírus.

No hospital, convivendo com outros infectados.

Tive oportunidade de conversar um pouco com uma liderança da etnia Xavante que acompanhava sua esposa, e ele me relatou que na aldeia dele muitos outros irmãos também estavam contaminados e não paravam de chegar ali à procura de atendimento; alguns outros, com medo de morrer no hospital, seguiam o tratamento na aldeia com chás e ervas e sem o isolamento necessário.

Fiquei pensando: como exigir que os povos indígenas, tradições milenares que vivem em comunidade, se isolem por causa de mais uma doença dos brancos?

Sabemos também que há denúncias de que grupos religiosos neopentecostais que ignoraram a quarentena com a falsa intenção de evangelizar nas aldeias, algumas delas tão isoladas, que usaram helicópteros para terem acesso.

Sabemos também que o mesmo se passou um tempo atrás com o plano etnocida de contaminação em massa dos povos indígenas com Varíola, que diminuiu drasticamente suas populações. Não sabemos se situações semelhantes fizeram essa doença chegar às aldeias daqui. Mas conhecemos o plano do governo Bolsonaro em “passar a boiada”, exterminar os povos indígenas para acessar a riqueza das terras, derrubar a floresta e traçar estradas em benefício do agronegócio.


Depois da internação

Hoje, com a graça do Criador, a energia quântica de pessoas amigas e os medicamentos que tomamos nos encontramos bem, curados do Covid-19 e seguindo em isolamento social.

O Brasil, infelizmente, segue na contra-mão das orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), com mais de 60.000 motos e mais de 1,5 milhões de infectados comprovados (sabemos que esse número é muitas vezes maior, pois não testamos pessoas assintomáticas).

Para mim, o pior de tudo é perceber a incapacidade de pessoas em não se sensibilizarem com a dor das famílias que perderam seus entes queridos, continuando saindo às ruas sem necessidade, ignorantes de Deus e de humanidade. Mas o que esperar dessa gente, estes 30% que seguem fielmente o genocida, amante da ditadura militar, que tem pulsão de morte nas veias, que temos como presidente?




Fotos: Arquivo pessoal/Rede social. Registros durante o período da pandemia e convívio com o Covid 19
Raphael Souza Alves, educador e ativista

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo. Narração de uma vivência pessoal permeada de profunda reflexão… Também estou apreensiva pelos pobres do país e especialmente os indígenas que continuam sendo alvo do maior etnocídio que já existiu. E mesmo sendo a maioria, não conseguimos pôr um fim a este necrotirano governo.

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