Por uma cultura médica mais doce e mais generosa

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J.J. Camargo, médico e escritor se diz especialista em gente, mas está mais para médico de almas. Com uma sensibilidade humana impressionante, retrata em seus textos histórias vividas por seus pacientes com um olhar que  desnuda a alma humana.

Chegamos à penúltima entrevista do ano da série Profissões Educadoras do ano de 2016 e tenho satisfação  de apresentar-lhes  o médico cirurgião,  professor e escritor: J.J.Camargo.

Ele se diz especialista em gente, porém, me atrevo a dizer que ele é um médico de almas. De uma sensibilidade humana impressionante, retrata em seus textos histórias vividas por seus pacientes com um olhar que  desnuda a alma humana,  de tal forma, que passamos a rever nossos conceitos sobre doença, vida e morte. Mais que salvar vidas, toca corações e acalenta almas. Qual a técnica? Generosidade, a virtude de quem compartilha por bondade.

Márcia Machado: Quem é J.J. Camargo?

J.J. Camargo: Jose J. Camargo é  um cirurgião de tórax, professor de cirurgia da UFCSPA, diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa, Diretor de Cirurgia Torácica da Santa Casa, pioneiro em transplante de pulmão na America Latina e responsável por dois terços dos transplantes de pulmão feitos até hoje no Brasil. Foi a primeiro a realizar transplante de pulmão com doadores vivos fora dos EUA. É membro titular da Academia Nacional de Medicina e cronista semanal de ZH.

Márcia Machado: O Sr. se diz  especialista em gente? Por quê ?

J.J. Camargo: Trabalhar com pessoas é uma requintada prática de humanismo. Se estas pessoas forem pacientes, mais ainda. Porque os médicos convivem, diariamente, com criaturas autenticadas pelo sofrimento, pois na doença, ninguém tem  tempo ou ânimo para impressionar ninguém. O paciente é, por definição uma pessoa a verdadeira, transbordando autenticidade no seu medo de morrer. Por isso é possível, nesta circunstancia, conhecer profundamente uma pessoa depois de poucos dias de convívio, e este é um trunfo para o medico se tornar o que chamo de “especialista em gente”.  Se depois de 10 anos de formado, o médico ainda não alcançou esta condição invejável, só tem uma explicação: ele não tem sensibilidade para explorar esta matéria prima maravilhosa que é o ser humano desnudado de todas as vaidades e miudezas.

“[…] na doença, ninguém tem  tempo ou ânimo para impressionar ninguém.”

Márcia Machado: A medicina avançou muito, os profissionais estão cada vez mais técnicos, porém muitas vezes o paciente só quer ser ouvido. Tá faltando humanização na medicina?

J.J. Camargo: Se os médicos sabem muito mais dos que seus antecessores, mas os pacientes idosos falam com nostalgia dos médicos de antigamente, sem dúvida em algum ponto do percurso, esta geração moderna perdeu o compasso.  Alguns equivocadamente põem a culpa no excesso de tecnologia. Isto é uma bobagem. Nós devemos querer mais e mais tecnologia, não menos, porque estas conquistas contribuem muito para qualificar imensamente a medicina moderna. O que não podemos permitir é que a tecnologia substitua o humanismo da relação medico paciente, que sempre será  uma relação entre dois seres  humanos: um que tem um problema e outro que foi treinado para ajudá-lo na solução. O afeto que surge espontaneamente deste encontro, sempre  proporcional à intensidade do sofrimento do paciente, é uma das coisas mais maravilhosas dessa profissão.

 “O que não podemos permitir é que a tecnologia substitua o humanismo da relação médico paciente…”

Márcia Machado: Como a  relação médico paciente pode influenciar na recuperação do doente?

JJ Camargo: A experiência  médica ensina que o medo da doença é uma forma multiplicada de se adoecer.  A segurança que o médico possa transmitir, é uma parte fundamental do tratamento. Transmitir esta segurança com mensagens confiantes e otimistas,  constitui  a nobreza da tarefa médica que deve  misturar  ciência e arte.

O exercício médico qualificado envolve a disponibilidade de ouvir, o jeito de dizer o que o paciente precisa ouvir, a oferta incondicional de parceria e a preservação da esperança.  Sem estes requisitos, o atendimento médico se confunde com uma relação interpessoal comum, o que de nenhuma maneira satisfará quem está  fragilizado pela doença e terrificado pela ameaça da morte.

Márcia Machado: O Sr. fala  em morte digna, de que forma se daria esse processo no seu entendimento?

J.J. Camargo: A ideia da morte digna passa pela noção fundamental em medicina que se chama cuidados paliativos. A propósito, a palavra palium (de paliativo)  vem do latim e quer dizer manto, cobertor, tal como o que se ofertava aos guerreiros das cruzadas para protegê-los do inverno e do medo.

Na batalha final, a primeira intempérie a ser enfrentada é o sofrimento físico, e aqui uma observação fundamental: nesta condição, toda queixa deve ser encarada como urgência. Nada mais incompreensível, por exemplo, que um paciente moribundo  gemente de dor, num hospital.

Depois, temos que aplacar o sofrimento emocional com seus desdobramentos, familiar e espiritual, e entender que nunca estamos prontos para partir e, portanto, este é também um tempo de reconquistas apressadas, de restaurações afetivas urgentes, de confissões intransferíveis e, sempre e muito, de perdão. Propiciar a alguém que está morrendo a oportunidade de perdoar e ser perdoado, é uma apoteose de humanismo e generosidade.  O médico que consegue se oferecer como parceiro neste transe, apesar da vontade natural de sair correndo, está içando a arte médica a uma dimensão superior.

Se contribuirmos para que o nosso paciente transponha este umbral, tão triste quanto inevitável,  mas  sem dor, sem falta de ar, sem remorso e sem culpa,  concluiremos que a Prof. Ana Claudia Arantes tinha razão quando ensinou que a morte pode ser um dia que valha a pena viver.

“Se contribuirmos para que o nosso paciente transponha este umbral, tão triste quanto inevitável,  mas  sem dor, sem falta de ar, sem remorso e sem culpa,  concluiremos que a Prof. Ana Claudia Arantes tinha razão quando ensinou que a morte pode ser um dia que valha a pena viver”

Márcia Machado: Enquanto professor, como o Sr. trabalha essa  humanização médico/paciente com seus alunos?

J.J. Camargo: Há muitos anos, no final de cada uma das 18 aulas que ministro a cada grupo de estudantes que passa pela cirurgia torácica na Faculdade, eu incluo um slide que relata uma situação objetiva da relação medico paciente e a partir daí discuto com JJ Camargo: a estratégia da simulação. Por exemplo, eu sou o paciente e vocês, alunos “vão me explicar o que tenho” ou “porque eu devo fazer uma biópsia” ou uma tarefa terrível, vocês “vão me contar que meu pai morreu!” Eles ficam literalmente em pânico porque ninguém ensina a arte de ser médico. O treinamento na maioria das escolas médicas é deficiente: limitado a fazer diagnóstico e prescrever tratamento, torna a medicina muito  pobre na relação com o paciente angustiado e sofrido.

“O treinamento na maioria das escolas médicas é deficiente: limitado a fazer diagnóstico e prescrever tratamento, torna a medicina muito  pobre na relação com o paciente angustiado e sofrido.”

Márcia Machado: O que o levou a escrever? Soube que no início de sua carreira o Sr. se correspondia por cartas com seu irmão em Vacaria, nas quais relatava fatos ocorridos com seus pacientes, isso procede?

J.J. Camargo: A verdade é que a gente, naquela época trocava muitas cartas, não tanto pelo prazer de escrever, mas porque era a única maneira de comunicação disponível. Mas eu sempre gostei de escrever. E escrevi irregularmente  para jornais, sempre movido por alguma ideia nova ou, mais frequentemente, por alguma indignação.

Quando fui convidado para ocupar o espaço que Moacyr Scliar manteve em Zero Hora  durante muitos anos, fiquei assustado porque nunca tinha escrito com  agenda,  e o compromisso num primeiro momento me angustiou, mas depois descobri que exatamente ter o compromisso de uma crônica semanal, me deixava muito mais atento, porque a rigor qualquer motivação original pode justificar uma crônica.

Meu entusiasmo cresceu quando vi nesta tarefa a oportunidade de tentar dar a minha modesta contribuição para humanizar a prática médica, e a julgar pelo número de convites que tenho recebido para falar em entidades médicas, faculdades e academias, ficou claro que as pessoas perceberam que este é um assunto que estava a descoberto.

Márcia Machado: O que a literatura e medicina têm em comum?

J.J. Camargo: O que aproxima a literatura da medicina é o compartilhamento de um território comum em que ambas lidam com a condição humana, a dor, o desespero, a esperança e a morte, como o fim da espera.  O escritor e o médico dependem da palavra, instrumento de criação estética  de um, e arma poderosa do outro. A mesma palavra que o escritor esculpe na busca da frase mais pura é a que expressa o sentimento sofrido do enfermo, e que dá a chance a que o médico juntando os pedaços de suas queixas construa a anamnese que, do grego, significa o antiamnésia, o que não se esquece, a recordação. E essas palavras constituirão o primeiro registro escrito de uma relação que começa com uma investigação sumária das possibilidades diagnósticas e passa a fazer parte do prontuário do paciente, um arquivo pessoal, indevassável e permanente.  Com a palavra o médico, desde sempre, ofereceu solidariedade, esperança e consolo quando mais não havia a ser oferecido. E os prontuários, como os livros, guardam palavras que se eternizam.

“O escritor e o médico dependem da palavra, instrumento de criação estética  de um, e arma poderosa do outro.”

A literatura sempre encantou aos médicos porque eles, que trafegam na emoção, perceberam que sublimar um sentimento através da palavra é um dom dos curadores de espírito, aqueles artistas que com sutileza dão graça à vida, enternecem os que sofrem, emocionam os rígidos e dão esperança aos desvalidos.

Márcia Machado: Seus livros oferecem crônicas sobre  os dramas, as dores, mas também alegrias e esperanças em relação aos seus pacientes. Qual o objetivo de relatar  tais histórias?

J.J. Camargo: Mostrar o quanto somos desatentos com o sofrimento dos outros e o quanto a atitude alienada funciona como um poderoso instrumento de aversão. Não há nada que afaste mais duas pessoas do que a desconsideração no sofrimento. Podemos esquecer um favor, mas uma desconsideração, jamais.

As histórias cuidadosamente narradas, de modo a preservar a identidade dos pacientes, e a confidencialidade do atendimento, que é um direito intransferível de todos, são exemplos vivos que ajudam a construir uma cultura médica mais doce e mais generosa. Num tempo em que a mídia inunda, diariamente, as nossas casas com enxurradas de desamor, o relato de histórias doces e generosas, é um contraponto merecido. Se não, caímos no risco de acreditar que a sociedade está em degeneração, e isto é impossível, porque sempre que a curva comportamental começa a se inclinar para o mal, nasce uma geração nova que nos resgata porque nós todos nascemos bons. E  verdade  que quando começamos a piorar, não paramos mais, mas nascemos bons. E este recomeços é que nos preservam como seres sociáveis  intrinsecamente bons.

“Num tempo em que a mídia inunda, diariamente, as nossas casas com enxurradas de desamor, o relato de histórias doces e generosas, é um contraponto merecido.”

Márcia Machado: O Sr. esteve na Feira do Livro em Passo Fundo, onde contou um pouco sobre seu novo livro. Como é ter esse contato direto com o leitor?

J.J. Camargo: Ouvir o que as pessoas pensam e como se expressam em relação ao que escrevemos é uma  delícia, especialmente pela riqueza dos tipos que atraídos pelo fascínio da leitura viajam pelo imaginário, e constroem versões inacreditáveis a partir da ideia que passamos. É sempre muito divertido e didático, além de mostrar a grande responsabilidade que temos como formadores de opinião.

Márcia Machado: O Sr.  lançou mais um livro. Pode nos falar sobre a obra?

J.J. Camargo: Este é meu quarto livro de crônicas e o  terceiro livro de crônicas  desde que comecei a escrever regularmente no Caderno Vida de ZH, em dezembro de 2011.  Uma parte das crônicas foram publicadas no Jornal, outras são inéditas. Este livro não tem a pretensão da autoajuda, nem a fantasia  de ensinar ninguém a viver melhor. Ele tem sim a esperança de despertar nos leitores a percepção do quanto é egoísta o nosso modelo de convívio com as necessidades dos outros. Esta consciência nos tornará  pessoas socialmente mais solidárias  e eticamente mais generosas. Porque, como ensinou Kant, a moralidade não é a doutrina de como fazer  para ser feliz. É antes a doutrina do que você deve fazer para merecer a felicidade.

“Ele tem sim a esperança de despertar nos leitores a percepção do quanto é egoísta o nosso modelo de convívio com as necessidades dos outros.”

Márcia Machado: Para encerrarmos, o que cabe no seu abraço?

J.J. Camargo: O QUE CABE EM UM ABRAÇO é  um livro de crônicas centrado  no exercício da medicina, mas não é um manual de sofrimento,  não pode ser. É antes uma mistura densa  dos nossos sentimentos mais  reveladores do que de fato somos.  Como ninguém tem chance de se preparar  para sofrer,  é também um festival de improvisações,  em que se misturam dignidade, covardia, coragem, hipocrisia, sinceridade,  desprendimento, resiliência,  pureza, doçura,  fingimento e  afeto, nesta grande salada de gestos e atitudes  que chamamos natureza humana.

O abraço é reconhecido com a mais simples e completa oferta de carinho e generosidade. Quando abrimos os braços para afagar alguém estamos trazendo-o para mais perto do nosso coração.

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