Todos sabem que há uma carência de programadores no nosso país, mas não é por falta de gente inteligente não, e sim, por falta de valorização da cultura, necessidades comunicacionais e formas de enxergar o mundo daquelas camadas mais pobres.
Sou uma apaixonada pela tecnologia da informação. Adoro as rotinas, procedimentos e funções dos programas que desenvolvo e me tiram o sono devido ao esquecimento de uma vírgula aqui e acolá: coisas de uma programadora desajeitada.
Hoje decidi refletir um pouco sobre a tecnologia da informação e me doeu saber que tantas pessoas estão longe dela, principalmente as chamadas “minorias”, aqueles que são os menos vistos pelas grandes ciências, os que batem às portas das casas fechadas que nunca abrem com medo de encontrarem do outro lado um bandido ou ladrão.
Falo das mulheres pobres, negras, obesas, homossexuais, moradoras de periferias iguais a mim.
A minha luta para entrar no mundo da tecnologia da informação não tem sido nada fácil. É uma batalha atrás da outra para ser reconhecida como uma programadora de computadores. Essa é uma ciência formada pela sua ampla maioria de homens brancos, heteros e de classe média para cima.
Nunca vi em toda a minha vida um programador que se declarasse transsexual. A tecnologia da informação é uma ciência elitizada.
Certa vez, quis trazê-la para a minha comunidade onde moram crianças que correm descalças atrás de caranguejos, mas não encontrei apoio logístico para isso. Como ensinar às crianças a programarem se elas não dispõem de um computador? Se lhes falta comida e brinquedos?
Sim, crianças pobres estão distantes de terem contatos com os bits e bytes da nossa tecnologia. O meu maior desejo é que as linguagens de programação falem o mesmo idioma que o meu, pois isso encurtaria a distância da programação a respeito da população mais pobre.
Vivemos num país de desigualdades de todos os tipos e a que mais mexe comigo é a tecnológica.
Chegará um tempo em que tudo será feito por máquinas. Como as pessoas mais pobres poderão fazer uso dessas máquinas se não sabem como funcionam por dentro? Para muitos, não importa que o usuário comum saiba quais comandos são dados para que aquela máquina funcione, mas apenas que ela dê as respostas solicitadas.
As populações vulneráveis são sempre as que mais sofrem desigualdades neste nosso país de ricos e brancos. Temos tão poucos negros nos cursos de ciências da computação, tão poucos índios, tão poucos ciganos.
Luto pela inclusão da tecnologia da informação nas escolas públicas. Não falo aqui de montar uma sala com cinco ou dez computadores ligados a internet e chamá-la de sala de informática. Não! Isso não é fazer ciência!
Fazer ciência na sala de aula é primeiro nunca faltar a merenda escolar e segundo ensinar às crianças e jovens a programar numa linguagem materna.
Os brancos são tão eficientes no quesito criatividade e ainda não inventaram uma linguagem de programação que converse de igual para igual com uma criança. Por que será? O adultocentrismo se abraça com o classismo e o racismo.
Direitos iguais para todas as crianças, independente da cor da pele. Crianças negras também precisam estudar. Crianças negras também acordam com o nascer do som. Leia mais!
Tenho receio dessa exclusão dos homossexuais do mundo da tecnologia. Claro que há muitos dentro do armário porque se mostrarem a sua orientação sexual poderão sofrer preconceitos dos mais diversos, as empresas do futuro não estão preparadas para lidar com essa gente linda que ama em desassossegos. Conheço alguns amigos que são bons programadores e homossexuais, mas mantém um cuidado exagerado para não terem as suas vidas íntimas expostas aos seus colegas de trabalho.
Continuarei lutando para que a tecnologia da informação possa entrar em cada escola dos mais longínquos locais do Brasil não apenas para que as crianças façam cópias do que encontram navegando pela internet, mas para que elas possam usar do pensamento lógico e crítico criando pequenos códigos executáveis e mergulhando nos vales filosóficos da inteligência artificial.
Comecei a programar com dezoito anos de idade. Talvez cedo demais para uma jovem negra e pobre. Na minha pequena escola nunca vi um computador, só tive acesso a um quando conquistei o meu primeiro emprego.
Não quero que isso aconteça com as pessoas próximas a mim que sofrem com as desigualdades sociais, culturais, econômicas e agora tecnológicas. A minha luta precisa do seu apoio, do seu grito, da sua coragem para junto comigo levar a tecnologia da informação às populações vulnerabilizadas.
Pintam a tecnologia da informação como uma senhora de cara feia e de salto alto que a qualquer momento está pronta para dar uma bronca em alguém teimoso, mas ela não é assim.
Ao contrário de tudo isso, dá até para fazer códigos executáveis de poesia ou outras artes: a liberdade pode ser recitada tanto em códigos como em sonetos ao vento. Um poeta português que morreu recentemente, conhecido como Melo e Castro, já conseguiu provar isso. Ele é o criador da Infopoesia. Nós podemos vestir na tecnologia da informação roupas coloridas que possam alegrar os olhos das crianças, adultos e idosos. Quem disse que um idoso não pode aprender a programar?
O problema maior dos nossos programadores é que eles complicam tanto a tecnologia da informação que o aluno iniciante acaba desistindo de aprender. Barreiras invisíveis se somam, excluindo as mentes dos corpos que não importam.
Esses gurus da frustração colocam exercícios que exigem além do conhecimento da programação o conhecimento da matemática. Todos nós sabemos da precariedade do ensino da matemática nas escolas públicas.
As crianças tendem a ter mais facilidade com as letras nos primeiros anos de estudo, raras são aquelas que preferem os números. Qual criança de oito anos de idade vai saber fazer uma rotina para achar um número primo se a ela nunca foi ensinado o que é um número primo?
Todos sabem que há uma carência de programadores no nosso país, mas não é por falta de gente inteligente não, e sim, por falta de valorização da cultura, necessidades comunicacionais e formas de enxergar o mundo daquelas camadas mais pobres, daqueles esquecidos pela sociedade branca e rica que não se preocupa em oferecer um ensino de qualidade, diverso e múltiplo em códigos de comunicação democrática.
Querem que sejamos depósitos de conhecimentos porque têm medo de que aprendamos a pensar criticamente e logicamente. Esta é a verdade.
Quando um talentoso homossexual negro vai para televisão à procura dos seus direitos, ele assusta à sociedade branca e elitizada, porque jamais se poderia esperar que tal pessoa tivesse um conhecimento diferenciado das demais pessoas ao seu redor.
Continuarei lutando para que a tecnologia da informação chegue às populações mais vulneráveis. Que possamos todos aprender a programar as nossas máquinas para que elas trabalhem conforme as nossas necessidades, entornos culturais e subjetividades. Afinal, um aparelho pessoal deve ter uma alma irmã, compatível com a do seu detentor. Um bit à entrada da periferia vendendo picolé por 1,00. E quem sabe o menino descalço que corre atrás de um caranguejo à tarde inteira possa sentar-se diante de uma tela de computador e escrever um algoritmo que ajude a sua mamãe a preparar a receita do seu bolo preferido.
Eu e mais duas amigas estamos escrevendo um livro que trata mais profundamente do tema deste artigo. Gostaria de saber se você teria interesse de ler um livro assim? A sua opinião, leitor, é muito importante para que continuemos o nosso projeto.
Leia também sobre a minha ideia sobre Inteligência Emocional: (Crianças com inteligência emocional tendem a absorver o ensino-aprendizagem de forma mais rápida e eficiente. Elas não têm medo de errarem por que sabem que todos erramos, logo não ficam tão ansiosas diante das avaliações).
Autora: Rosângela Trajano
Edição: Alex Rosset
Excelente texto.Hoce sempre me surpreende.Como cabe tantas informações na sua cabeça .Vice inspira a todos e tenho certeza que suas ideias e reflexões farão diferença neste mundo!!!
Parabéns pelo texto. Pura realidade.
Excelente reflexão, não só para a área tecnológica, mas para todas as áreas do conhecimento, especialmente dos Direitos Humanos
Como sempre você brilhou! Parabéns!