Não nos construímos sozinhos e fora da realidade que nos cerca, pelo contrário podemos interferir na sociedade visando fomentar a justiça, a construção de processos democráticos que intencionam a transformação.
“Gatinho de Cheshire (…) Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui? – Isso depende muito de para onde quer ir – respondeu o Gato – Para mim, acho que tanto faz.- disse a menina- Nesse caso, qualquer caminho serve – afirmou o Gato. (CARROLL, L., Alice no País das Maravilhas, 1865).
Independente do fazer, a ausência de direção, de uma metodologia bem definida conduz a lugar nenhum, ou a lugares que não agregam valores, habilidades e competências para um existir que se deseja humano, dialógico, crítico, criativo, transformador. É nesse sentido que expomos aqui uma concepção de educação que se desdobra numa opção metodológica fundamentada em pensadores da educação, especialmente em Paulo Freire e Elli Benincá.
Em tempos que se caracterizam pela ascensão do autoritarismo, pela violência e ignorância institucionalizada, optamos pelo diálogo mesmo que isso signifique “remar contra a maré”, olhar o horizonte e regar a utopia enquanto nos esforçamos para formar consciências críticas.
Junto a concepção de diálogo está presente uma antropologia que compreende o ser humano aberto a múltiplas possibilidades para construção do seu ser, em permanente devir.
Numa perspectiva existencialista, Paulo Freire concorda com Heidegger que concebe o ser humano como “ser aí”, um ser no mundo que se constrói ao existir. No entanto, Freire enfatiza nessa construção a tarefa da educação, que consiste em proporcionar ao humano uma consciência acerca da própria realidade, tendo em vista a humanização:
Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm (FREIRE, 2005, p. 83-84).
A consciência dessa inconclusão é o motor propulsor das ações humanas que podem corroborar ou não com essa antropologia. Não nos construímos sozinhos e fora da realidade que nos cerca, pelo contrário podemos interferir na sociedade visando fomentar a justiça, a construção de processos democráticos que intencionam a transformação.
É objetivo do fazer educativo a formação integral dos humanos, a transformação da realidade, a garantia de vida digna, a afirmação dos direitos humanos e dos direitos do planeta que esses ainda podem habitar.
Este objetivo dificilmente será alcançado se optarmos por relações verticais centradas no poder de uns sobre os outros, se ignorarmos os aspectos sociais, políticos e econômicos que interferem diretamente na forma como gerimos as nossas vidas. Neste sentido Gadotti e Freire nos alertam que:
A educação deve permitir uma leitura crítica do mundo. O mundo que nos rodeia é um mundo inacabado e isso implica a denúncia da realidade opressiva, da realidade injusta, inacabada, e, consequentemente, a crítica transformadora, portanto, o anúncio de outra realidade. O anúncio é a necessidade de criar uma nova realidade. Essa nova realidade é a utopia do educador (GADOTTI, 1996, p. 81).
Se, para uns, o homem é um ser da adaptação ao mundo (tomando-se o mundo não apenas em sentido natural, mas estrutural, histórico-cultural), sua ação educativa, seus métodos, seus objetivos, adequar-se-ão a essa concepção. Se, para outros, o homem é um ser de transformação do mundo, seu quefazer educativo segue um outro caminho. Se o encararmos como uma “coisa”, nossa ação educativa se processa em termos mecanicistas, do que resulta uma cada vez maior domesticação do homem. Se o encararmos como pessoa, nosso quefazer será cada vez mais libertador (FREIRE, 1967, p. 124).
Essa utopia do educador precisa ser retroalimentada no cotidiano da escola, nos projetos que são realizados, no teor dos planejamentos, no modo como são conduzidas reuniões, encontros formativos, confraternizações. A utopia que serve para nos colocar em movimento, a caminho, precisa ser explicitada no modo como a escola faz a sua gestão, quer seja pedagógica, quer seja financeira ou administrativa.
A opção por uma educação transformadora, que possibilita humanização de todos os sujeitos envolvidos, requer a opção pelo diálogo que “na presente abordagem, significa a manifestação recíproca das pessoas por meio da palavra, quem pronuncia a palavra pronuncia-se a si mesmo; mostra sua intimidade; revela o seu interior” (BENINCÁ 210,110).
Ao revelar-se a pessoa coloca-se num processo de transformação de si e do meio, isto porque o ser não se constrói quando fechado em si mesmo, quando privado da palavra que o expõe.
Considerando a concepção exposta acima, entendemos que o diálogo é um processo aberto, que não se encerra em momentos estanques da ação; horas avança-se e horas será preciso avaliar, reavaliar e retornar para a prática tendo em vista a coerência e aperfeiçoamento da mesma.
O diálogo como método e fundamento da ação, requer atitudes de escuta, humildade, abertura para o que vem do outro e pode mexer com convicções arraigadas no sujeito que é resultado de uma cultura, formação, história. O espaço de uma escuta segura precisa ser criado para superarmos os monólogos erroneamente tratados como ação dialógica, visto que:
Os homens têm dificuldades de dialogar, primeiramente, porque pensam que conhecem o íntimo do outro, quando, na verdade, apenas se apercebem da manifestação superficial dele, ou seja, só conhecem parcialmente o outro. A parcialidade do conhecimento não lhes permite penetrar a intimidade do outro e, por isso, não conseguem ouvi-lo como interlocutor. (BENINCÁ 2010, p. 110).
Dentre os empecilhos para o diálogo, destaca-se a noção de autoridade. Inviabiliza o diálogo o professor que se considera pronto após a conclusão da licenciatura e ou a etapa inicial da sua formação, esse tende a agir de forma vertical comportando-se como dono do saber. Essa forma de compreender está em desacordo com a antropologia exposta no início desse texto, visto que na conclusão não há espaço para a novidade, para a reavaliação e retomada da caminhada.
Como seres inconclusos sempre podemos aprender e se colocar a caminho tendo em vista a construção de processos coerentes com o que acreditamos. Considerar-se inconcluso é condição para se colocar em diálogo com o outro, por mais que este outro mecha com minhas convicções e desafie a autoridade da ação que lhe é dirigida.
Por mais estudado que seja o professor / educador, a atitude de escuta e a humildade frente o estudante é condição indispensável para construção de processos democráticos e de aprendizagens significativas. Por vezes, os estudantes não cultivam postura favorável para aplicação deste método, independente das razões para essa ausência, cabe ao professor:
a iniciativa de desencadeá-lo (iniciativa esta não opressora, uma vez que ao opressor não interessa tal atitude) concebendo, para tanto, a sala de aula como um palco de debates e consumindo o tempo que passa nesse palco na alimentação e orientação desses debates” (BENINCÁ 2010, p 113).
Cabe ressaltar que são condições para o diálogo, inclusive em sala de aula: humildade para se considerar inconcluso, habilidade da escuta atenta que considera o outro um sujeito “aprendente”, já dotado de conhecimentos provenientes do contexto sociocultural que vivencia, bem como formação continuada para superar as contradições inerentes a própria prática.
É indispensável realimentar a utopia e agir no sentido de superar o autoritarismo ideológico que se impõe, de tal modo que nossas teorias sejam nossas práticas e que nossas práticas revelem nossa opção pelo diálogo e pela democracia.
REFERÊNCIAS:
FREIRE, Paulo Reglus Neves. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
GADOTTI, Moacir. Pensamento Pedagógico Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1995.
BENINCÁ, Elli. A prática do diálogo em sala de aula: princípios e métodos de uma ação dialógica. In Educação práxis e ressignificação pedagógica. Eldon Henrique Muhl (org.). Passo Fundo Editora UPF, 2010. P 109-124
Autor: Marciano Pereira