A educação sozinha não consegue superar tudo e, por isso, o entrelaçamento entre as políticas sociais precisa ser sustentado, com a necessária defesa de serviços públicos com qualidade para o trabalhador e de garantia dos processos de luta deles.
Nossa sociedade, imersa na tecnologia e na informação, se constitui na/pela racionalidade neoliberal. As modificações vertiginosas e incisivas na vida humana fazem com que o trabalhador seja regido pela lógica da produção e do consumo, o que repercute no afastamento dele em relação aos princípios necessários ao bem viver. O capitalismo hegemônico tem esfacelado os princípios morais e éticos, estabelecendo como premissa nuclear das relações a competição em torno da lógica de mercado.
O exemplo de fragilidade dos princípios que regem a convivência humana que trouxemos é recente, do contexto pandêmico recém superado, e trata do sentimento de ressentimento que brota no ser quando está em sofrimento.
Conforme com o conceito de Kehl (2020), ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo próprio sofrimento, uma vez que o outro tem o poder de decidir algo sobre a vida do sujeito e, por essa razão, pode culpá-lo se houver algum insucesso. O sentimento retratado por Kehl (2020) parece ter eclodido durante a pandemia, com trabalhadores (potencialmente ressentidos) atacando outros trabalhadores, por meio de discursos depreciativos, principalmente nas redes sociais – espaço de expressão privilegiado no período da pandemia.
A Covid-19, deflagrada no final de 2019 e com continuidade nos anos seguintes, expôs a fragilidade da organização do trabalho no capitalismo, denotando a suscetibilidade dos sujeitos neste período particular e evidenciando a vulnerabilidade do próprio modo de produção. Por mais que seja organizado de forma a sustentar uma racionalidade em que os interesses privados estão acima de perspectivas humanas e sociais inclusivas e em que empresários são tidos como mártires por proverem empregos, contraditoriamente foram os homens e as mulheres – trabalhadores e trabalhadoras – nas relações de classe, que provaram sustentar a ordem social vigente.
A consciência acerca desse processo, contudo, não se mostrou assimilada por parte substantiva dos trabalhadores, principalmente daqueles em funções mais precárias que, ao invés de lutarem pela manutenção dos direitos básicos deles enquanto preservavam as próprias vidas, foram mobilizados a descumprir regras de distanciamento social a fim de manterem os empregos deles e as (insuficientes) condições de sobrevivência.
Empresários e agentes governamentais, inclusive, protagonizaram campanhas menosprezando os efeitos da pandemia e exigindo protocolos menos rígidos. Nos ambientes virtuais, movimentos em prol do retorno às atividades presenciais, principalmente por parte do funcionalismo público, ganharam notoriedade.
Os professores, de forma específica, passaram a ser referenciados como privilegiados e receberam adjetivos pejorativos enquanto categoria. Apesar de continuarem a desempenhar as funções de professores, mas de modo remoto, sofreram investidas diversas (inclusive com o impetramento de ações jurídicas) para garantir o retorno presencial das aulas e, assim, do exercício docente no ambiente específico da escola.
Foram muitos os ataques sofridos pelos professores, principalmente de escolas públicas – ressaltando que os professores de escolas privadas, necessitam manter o silenciamento para garantir o emprego.
As ofensivas dirigidas por parte de outros trabalhadores, revela um processo de precarização do trabalho que, neste período particular do capitalismo, potencializa a constituição subjetiva do ressentimento. A probabilidade torna-se latente no trabalhador precarizado hodiernamente, fazendo com que, em sua condição de indiferença, não consiga perceber a própria opressão e, assim, ressinta-se.
A incursão capitalista e neoliberal não é recente e a pandemia tornou-a ainda mais recrudescida, com o trabalhador tornando-se cada vez menos humano e transformando-se em objeto. Na condição de objeto ou coisa, o trabalhador se torna um ser de negócios, ao mesmo tempo em que “negocia o seu ser”, em um empreendedorismo de si, como problematizado por Dardot e Laval (2016). Transformado em coisa de transação comercial, o ser humano convive com o impedimento das experiências cotidianas, das vivências que sustentam a subjetividade e a dignidade dele (ADORNO; HORKHEIMER, 2012).
Nesse cenário, o ser humano, inserido nas diferentes profissões, acaba enredado pelas situações precarizadas de trabalho, com o receio de perder o emprego e de deixar de subsidiar as próprias necessidades básicas, o que o torna refém da sociabilidade em curso. Impotente frente à condição objetificada/coisificada pela qual é submetido, o trabalhador angustia-se, inquieta-se e aquieta-se, cultivando o ressentimento contra si e contra os outros (especialmente em embate aos que insistem em se debater na tentativa de superar as intempéries).
O imperativo era para que os professores retornassem ao trabalho presencial (mesmo sem haver vacinação e diante de graves riscos de contaminação pelo vírus da Covid19). O que estimulava tais movimentos era o fato de que outras categorias haviam retornado anteriormente aos espaços laborais deles, como se os direitos de parte do coletivo de trabalhadores não devessem ser ampliados, mas sustados.
Ocorreram ataques entre iguais (todos trabalhadores), exigindo-se que um fragmento deles abandonasse seus direitos ao invés de haver a união entre as classes para conquistar ou preservar direitos para todos. Esse processo de precarização do trabalho gera sofrimento e favorece e intensifica a constituição do ressentimento!
O trabalho, transformado em atividade individual, hierárquica e competitiva, não deixa espaço para o potencial criativo, muito menos para a realização pessoal.
Sem tempo livre, não consegue reverter a situação que vive, restando somente o lamento e, consequentemente, o “ressentimento”. Este sentimento tende a se intensificar quando discurso se volta contra si e contra os outros – em favor do próprio apedrejamento e do apedrejamento de seus pares –, o ser humano omite e se ressente com o que inevitavelmente deseja e sente: ele quer uma vida com qualidade e garantia de direitos. Esforça-se para afastar de si a ideia de que está sendo subjugado e oprimido, mas acaba expressando o ressentimento em algum momento. Pode-se dizer que acaba por viver uma vida ressentida, em que aproveita as oportunidades não para mudar a própria condição, mas para infundir o que ressente contra o semelhante KEHL (2020).
É imprescindível questionar o papel da educação no reconhecimento e na constituição de ferramentas de luta contra a subordinação do sujeito a um formato de trabalho que o entende como mercadoria, como um instrumento a ser descartado e substituído por outro à revelia do empregador. A docilização do trabalhador para que ele, passivamente, produza e consuma, aceitando ser subjugado não pode figurar, mesmo que subliminarmente, no cotidiano pedagógico.
Com a Reforma do Ensino Médio, implementada a partir da Lei nº 13.415/2017 e atualmente com revogação exigida por entidades estudantis, docentes e sindicais, há um esvaziamento das disciplinas tradicionalmente referenciadas – e responsáveis pelo conhecimento historicamente produzido – nessa etapa da educação básica, uma vez que as disciplinas são substituídas por componentes e percursos formativos voltados para temáticas como o empreendedorismo e a construção de projetos de vida. Mesmo reconhecendo que a escola brasileira precisa de muitas mudanças, esse processo denota o desfavorecimento de um processo reflexivo e crítico.
Entendemos que sem tais características não teremos uma educação emancipadora, tampouco a formação de consciência, tão necessária aos trabalhadores oprimidos e ressentidos que precisam se dar conta da condição de subordinação em que se encontram. Sem isso, não há desestabilização desse sistema que corrompe o ser humano, insere a competitividade e a individualização como orientadoras dos modos de vida e que, em momentos extremos como o de uma pandemia, consegue desestruturar ainda mais as relações e favorecer as rivalidades entre os iguais, como no caso em questão.
Apesar dessa aposta ser a qualificação da formação sabemos, também, que a educação sozinha não consegue superar tudo e, por isso, o entrelaçamento entre as políticas sociais precisa ser sustentado, com a necessária defesa de serviços públicos com qualidade para o trabalhador e de garantia dos processos de luta deles. Sabemos, ainda, que os docentes podem se tornar ressentidos ao viverem as consequências de processos de precarização que atingem a categoria profissional e o trabalho deles.
Assim, um movimento formativo pautado em princípios humanos e sociais, sensível às vivências cotidianas da realidade de subjugação, de fragilidade e de insegurança da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2000) precisa acolher também essa parcela de trabalhadores. Com isso e a partir disso, a dinâmica social precisa ser reconstruída, com a valorização dos trabalhadores e dos direitos deles e com a recuperação do espaço de fala e de luta de cada um, constituindo-se (mesmo que árdua e lentamente) em novos modos de vida.
Autoras:
Ana Lúcia Vieira
Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora da rede municipal de ensino de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos Formação Humana (UPF), do Núcleo de Pesquisas em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF) e do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Sociedade (Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS).
Renata Cecilia Estormovski
Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Rio Grande do Sul, Brasil. Professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ensino Médio e Juventudes (GEPCEM Unisinos/CNPq).
ENDEREÇO DO TEXTO COMPLETO:
https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/issue/view/2365
Edição: A.R.