Privilégios & preconceitos

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Geralmente, privilégios são concessões, enquanto direitos são conquistas. Ninguém concede direitos a ninguém. O máximo que se pode fazer é reconhecê-los e buscar protegê-los. Diferentemente de quem goza de um privilégio, aquele que desfruta de um direito não pode negá-lo aos demais. Isso seria uma contradição.

O que distingue um privilégio de um direito legítimo? Imagine uma gangorra. Se de um lado dela estiver o direito, do outro estará o dever, e ambos se equilibram. Tanto um, quanto outro deve ser aplicado indistintamente a todos. Mas se de um lado da gangorra estiver o privilégio, do outro estará o preconceito. Onde impera o direito, todos ganham. Mas o privilégio contempla apenas alguns.

Onde houver privilégios e preconceitos, haverá clamor por direitos.

A equação pode parecer simples, mas envolve muitos fatores. Quem estaria disposto a abrir mão de seus privilégios? Aliás, muitos nem sequer os reconhecem. Por estarem tão acostumados a usufrui-los, parece-lhes algo absolutamente natural.

Nem todo privilégio pode ser renunciado, porém, deve ser constantemente denunciado até que se torne motivo de constrangimento e não mais de vanglória por parte de quem o desfruta.

Paulo, por exemplo, poderia se considerar um privilegiado por causa de sua confortável posição social. Em vez disso, ele mesmo denuncia seus privilégios, considerando-os como excremento, o resultado final de um processo de promoção e manutenção da segregação. Na apresentação de seu invejável currículo, ele diz integrar a linhagem de Israel a quem pertence as promessas divinas, a tribo de Benjamim de onde procedeu seu primeiro monarca, a mais popular facção política e religiosa de seu tempo, os fariseus, além de ser defensor intransigente das tradições, da lei e da ordem, o que levou-a a perseguir vorazmente os cristãos. “Mas o que para mim era lucro”, arrematou, “considerei perda por amor de Cristo; sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como excremento, para que possa ganhar a Cristo” (Filipenses 3:4-8).

Qualquer coisa que nos faça sentir superiores aos outros precisa ser ressignificada. A graça nos nivelou, de modo que ninguém é melhor do que ninguém. Nenhum privilégio é reconhecido pelos céus; todos são frutos da injustiça.

O que é considerado privilégio em nossa sociedade contemporânea? Ser branco? Homem? Heterossexual? Cristão (católico ou evangélico)? O que nos concede vantagens imediatas sobre os outros? Se não podemos mudar nossa posição privilegiada, estaríamos dispostos a abrir mão das vantagens que dela decorrem?

Não posso, por exemplo, alterar minha orientação sexual. Sou heterossexual, e isso é inerente à minha condição existencial. No entanto, entendo que isso me confere vantagens sociais em relação aos homossexuais. Nunca ouvi falar de alguém sendo demitido por ser heterossexual, mas conheço muitos homossexuais que enfrentam grandes dificuldades no mercado de trabalho devido à sua orientação sexual.

Se quero “ganhar a Cristo”, como disse Paulo, devo expor meus privilégios, denunciando-os e considerando-os como perdas. Por que deveríamos considerá-los perdas, se na verdade representam vantagens e lucros? Porque, ao usufruirmos dessas vantagens, estamos perpetuando a injustiça que prejudica os outros. Não posso mudar a cor da minha pele, mas posso recusar me sentir confortável ao ser preferido em uma entrevista de emprego por ser branco. Não devo endossar preconceitos só porque não sou vítima deles. Tampouco devo apoiar privilégios apenas porque me beneficiam.

Outro exemplo pode ser encontrado nas páginas do Antigo Testamento. Trata-se do episódio em que Davi, após cometer adultério, chamou Urias, o esposo traído que estava no campo de batalha, para outorgar-lhe um privilégio inusitado. Evidentemente, o objetivo de Davi não era conceder um privilégio a um dos seus mais leais soldados, mas sim, criar um ardil para tentar se livrar das consequências de seus atos.

Quando Urias chegou ao palácio, Davi lhe deu uma merecida folga para que pudesse passar a noite na companhia de sua esposa. Com isso, a embaraçosa gravidez de Bate-seba seria atribuída ao próprio marido, e Davi, seria poupado de uma exposição desnecessária que poderia até destituí-lo do trono. Mas, surpreendentemente, Davi se vê diante de um homem de envergadura moral e ética superior à sua. Como ele poderia desfrutar das benesses e prazeres do leito conjugal sabendo que seus companheiros seguiam arriscando suas vidas no campo de batalha? Sua ética ilibada fez com que abrisse mão do privilégio e voltasse para o front.

Nem mesmo embriagando Urias, Davi conseguiu dissuadi-lo de voltar para seus companheiros. Aquela havia sido a primeira vez que Davi ficara em casa enquanto seus homens lutavam pela expansão do reino. Urias, porém, recusou a oferta. Sentindo-se encurralado, Davi recorreu ao mais covarde expediente. Ele enviou, pelas mãos de Urias, uma carta a Joabe, seu general, instruindo-o a colocar Urias na linha de frente da batalha e, quando os inimigos avançassem, ordenar aos soldados que recuassem, deixando Urias sozinho. Morrendo Urias, Davi se livraria de um grande problema.

A confiança de Davi na integridade de Urias era tão grande que ele nunca considerou a possibilidade de Urias abrir a carta e descobrir sua sentença de morte (2 Samuel 11:7-17). O plano funcionou, mas custou caro a Davi. Deus não o deixaria impune.

Somente quem possui uma sólida envergadura moral e ética é capaz de abrir mão de algo vantajoso, pois entende que o privilégio sempre priva alguém de seus direitos.

Se me vejo como detentor do direito de usufruir de certos privilégios, passo a enxergar o outro como inferior a mim. Isso é preconceito.

Geralmente, privilégios são concessões, enquanto direitos são conquistas. Ninguém concede direitos a ninguém. O máximo que se pode fazer é reconhecê-los e buscar protegê-los. Diferentemente de quem goza de um privilégio, aquele que desfruta de um direito não pode negá-lo aos demais. Isso seria uma contradição.

Moisés, por exemplo, abriu mão de sua posição como príncipe do Egito para sofrer ao lado de seu povo. O próprio Jesus abriu mão de seus atributos divinos, esvaziando-se e assumindo a posição de servo daqueles que deveriam servi-lo. Que Ele seja nosso maior exemplo, de modo que jamais nos apoiemos em nossa posição social, religiosa, eclesiástica, étnica, intelectual ou ideológica. Que nos posicionemos pelos direitos de todos, sem discriminar quem quer que seja.

Autor: Hermes C. Fernandes. Também escreveu e publicou no site “Por que cidadãos de bem costumam ser tão cruéis”:  www.neipies.com/por-que-cidadaos-de-bem-costumam-ser-tao-crueis/

Edição: A. R.

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