Quais os limites da nossa empatia? Sentir o desamparo do outro ou viver a sua dor?

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“Traziam contra ele algumas questões referentes à sua própria religião e, particularmente, a certo morto, chamado Jesus, a quem Paulo afirmava estar vivo” (Declaração de Festo ao Rei Agripa em Atos 25:19)

Todos os tempos são tristes, mas o nosso parece ser o mais triste de todos porque nele vivemos. ¹

 A noite estava muito quente, como todas as noites de um verão que se atrasou. E parece que para compensar seu tempo, subiu a pressão.

Terminando a minha caminhada arrastada, resolvi passar em um mercado para compra do pão de todos os dias.  Não é propriamente pelo pão a razão de vermos tanta fila; é porque ele está quentinho.  O que é uma ilusão, pois assim que os seus consumidores o compram, entram em seus carros e, ao chegar em casa, ele já estará frio.

Tenho por hábito ir ao mercado pelo final das tardes e comprar uns 5. Mas a graça está em tirar o pão quentinho da sacola e o comer pelo caminho.  Aí sim! Por dois motivos: um deles, o de caminhar e comer. Uma delícia! A outra razão é pelos curiosos pelas calçadas. Caminhar pela rua com um pedaço de pão nas mãos é quebrar protocolos e torcer olhares.  E como é bom quebrá-los! Os outros receiam ver alguém se deliciando.

Já subindo a rampa do mercado, uma surpresa!

Duas mulheres e uma criança sentadas à beira da calçada. Quase que as desvio. Mas voltei. E para o seu espanto, falei a elas:

_Estou entrando no mercado para comprar pães.  Posso comprá-los pra vocês?

Uma delas, um pouco receosa, olhou pra mim carregada de medo e disparou: 

_Você pode comprar também uma Coca-cola?

Que franqueza, que sinceridade! Adorei.

Ambas as mulheres, de estatura pequena, sentadas ao chão, com uma criança de colo, no momento fora do seu colo, como as jovens índias que vemos pelas calçadas, com seus bebês, forçados que são a ‘engatinhar’, prematuramente.

Povos de alguma aldeia próxima, decerto. Mas aí a outra mulher acrescentou:

_Você pode comprar também um pouco de mortadela?

Hahaha! Achei corajosa a sua pergunta, pois estamos sempre acostumados a dar sempre o mínimo.

É porque somos tentados a achar que quando alguém nos pede algo, temos de dar o diminuto para aliviar a sua dor, mas não o seu prazer, como quem não tem direito de sorver, no seu desespero, um alívio com quaisquer prazeres que diminuam seu desamparo. Para quem pede, fica proibido. Ao pedinte, que se contente com o básico!

Entrei no mercado e comprei: pão, mortadela, queijo, água e uma coca, muito gelada.

Quando fui entregar as sacolas é que percebi que não eram apenas duas, três, mas uma família completa. A noite me tisnou o olhar.

Bem, eles não pediram nada. Eu os provoquei.  Mas como não provocar as duas senhorinhas, que me olhavam como que pedindo socorro?  Bastava ver em seus olhos o desconsolo!  Sua imensa tristeza ao sentir fome e abandono, agora que saíram de sua aldeia e não param de se admirar pela riqueza aparente que as cerca. Tanta riqueza e tanta pobreza, na mesma quadra, na mesma noite, em um mesmo verão.

Os nossos tempos são tristes demais! Nem foi possível comer o pãozinho de costume que exibia pelas ruas.  E quer saber?  Tomara que aquela índia sincera tenha tomado a coca toda, em goles feios, para a sua sede abandoná-la. Ainda dentro da hipocrisia em que contraía, pedi a elas que não dessem coca para o menininho. E concordaram. Que diferença isso faria, meu Deus.

O que eu poderia fazer mais? O que faltou nessa cena?

Pensei um pouco mais no caso e imaginei se Jesus estivesse andando por aí, em uma noite de verão qualquer; o que ele faria? É uma pergunta obrigatória!

Falamos de boca cheia que somos todos cristãos, mas a maioria dos que passavam pela frente das senhoras não davam a mínima.  Bem, ninguém é obrigado a dar nada, assim como ninguém é obrigado a ser cristão.

Mas as Igrejas estão cheias das mesmas pessoas que não paravam na frente das duas indiazinhas, mães ainda jovens, e tomadas por uma sede própria das madrugadas de verão mal dormidas. Mas Deus é invocado nas mesmas Igrejas, todas as semanas, como ele fosse um deus à sua maneira e segundo o interesse de cada um.

Muitas vezes perco a paciência comigo mesmo por não ajudar mais, não sentir toda a dor alheia pelas calçadas nesses tempos de tantos deuses, igualmente solitários. E penso, em muitas ocasiões, que andamos pelas ruas como seguidores de um Cristo morto.  Isso tudo, depois do Apóstolo Paulo nos alertar que dar é melhor que receber e que é mister socorrer aos necessitados. ²

Sabe de uma coisa:  acho que Jesus, no lugar do meu pobre andar por um verão de tantas solidões, isso mesmo, o Jesus que lemos e ouvimos, retornasse a elas. E penso que Ele se sentaria ao seu lado, na calçada, talvez com o indiozinho em seu colo e pediria até que contassem sobre a sua vida na aldeia e as razões de terem abandonado tão grande dádiva, para sentir vontade de comer e beber coisas estranhas, neste exílio permanente em sua própria terra. E nós, de certa forma, exilados de nossa própria empatia.

Quem sabe ele não permanecesse ao seu lado, até o amanhecer, eles todos, índios, indiozinhos e até o próprio Jesus, acostumados que estão com a nossa indiferença. Sim, nós, seus seguidores de ocasião.

Todos os tempos são tristes, como falou o poeta, mas nunca tivemos tantos recursos para que nossas noites fossem amenizadas com um mínimo de piedade.

Mas é dar com a mão esquerda sem que a mão direita o veja, ³ de modo que não haja tentação de que uma delas poste nas redes sociais… um simples pão dividido.

Referências:

1) Mauro Santayana/

2) Atos 20:35/

3) Mateus 6:3

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site a crônica “O dia em que Deus se arrependeu de nós. Será que somos o erro de Deus”?: www.neipies.com/o-dia-em-que-deus-se-arrependeu-de-nos-sera-que-somos-o-erro-de-deus/

Edição: A. R.

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