Qualidades necessárias ao educador revolucionário

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Mais do que nunca, hoje, em tempos da pandemia,
tendo que ensinar à distância, mesmo que a maioria
não tenha acesso à mínima tecnologia,
será necessário reavaliar o ato de ensinar,
ou seja, ensinar a quem, em que tempo,
e com qual metodologia?


Enquanto leitores, não temos o direito de esperar, muito menos de exigir, que os escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender o escrito, explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que quiseram dizer com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever, simples, escrever leve, é facilitar e não dificultar a compreensão do leitor, mas não dar a ele as coisas feitas e prontas (Freire, 1993, p.30).

A propósito da celebração do centenário de nascimento de Paulo Freire[1], este texto se propõe atualizar a reflexão, à luz de práticas pedagógicas, parte da obra Pedagogia da Autonomia/1996: Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos Educadores

Para o conjunto desta obra, me uno a todos os parceiros/autores que darão visibilidade teórica às práticas educativas de suas experiências, que se enraízam, nutridas em solo fértil e bem adubado pelos ensinamentos do legado de Paulo Freire[2].

Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa, é a última obra publicada em vida, por Paulo Freire. Lembremos que, sua transcendência em 02 de maio de 1997, nos deixou órfãos de um educador do povo, sem o qual nos parecia não saber viver. Mas como a vida ensina, caminhando, reencontramos o caminho. Em seguida, à época mestranda na UFRGS, li este livro com lentes de aumento, lutando para não me despedir do Mestre, cujo aprendizado se iniciou junto a educadores ribeirinhos, à beira do Rio Purus/Amazonas, na década de 1980, tropeçando na compreensão do Pedagogia do Oprimido/1967, embora estivesse convivendo com eles, filhos de pescadores ribeirinhos e indígenas. Lá encontramos essa obra, depositada em uma prateleira. Sim, obras de Paulo viajam, e são encontradas por aqueles que buscam guias metodológicos de formação humana que forjarão sonhos, possíveis de transformação.   

Passados anos, em outro contexto político e social, encontrei no Pedagogia da Autonomia, uma construção feita com maturidade, sabedoria e sensibilidade pedagógica sem igual, permeada de um diálogo lúcido e metodológico para comigo, educadora na luta pela terra, que se mostrava na década de 1990, favorável para ocupar o latifúndio improdutivo em vários estados, construir um projeto de educação para os filhos de acampados e assentados e produzir alimentos saudáveis para alimentar as pessoas. Uma década, cujos sonhos foram possíveis, e muitos realizados. 

Neste período, criamos Escolas Itinerantes nos acampamentos do MST, dezenas de escolas em assentamentos. No dizer dos Sem Terra, a escola foi conquistada na hora certa, lá onde povo está, próxima da vida. Práticas pedagógicas libertadoras foram devidamente sistematizadas e visibilizadas. Escrevemos livros, boletins de educação, cartas, e trocamos muitas ideias, exercitando a autonomia num ambiente de expansão do Movimento Sem Terra para outros estados do Brasil. Neste período, milhares de jovens e adultos se alfabetizaram, através do Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária – PRONERA. Estas práticas, de modo especial, são indícios de termos compreendido e levado a cabo, o que Freire insistiu durante a vida: Ser recriado e reinventado em cada momento histórico. Esta foi uma década se que se mostrou fértil para as lutas sociais e para a esperança. E se olharmos para ela, desde a atualidade, que nos quer levar à cegueira e ignorância, ainda mais fértil a vemos.

Assim como eu, pensei durante a leitura, todos que lerem este livro sentirão profunda saudades deste Mestre, que transcende, sem se despedir, porque também a morte corporal o pegou de surpresa. Contudo, não morre nunca de um ser humano tão especial, são as ideias, por que seu eco continua ressoando o legado. Dele herdamos lições de vida, cuja vida foi vivida para pensar e produzir conhecimento que liberta. Um conhecimento que continuará nos questionando se soubermos levar adiante seu legado: obras e exemplo.

Hoje, relendo este livro, a propósito deste texto, percebo claramente sua atualidade. Aliás, é próprio de sua pedagogia, acompanhar o tempo histórico, porque suas obras dialogam com os sujeitos educadores e educandos de ontem, hoje e amanhã. A nós educadores, cabe lê-lo e interpretá-lo, neste centenário de seu nascimento com os pés na realidade onde atuamos, cuja face é encharcada de tensões e contradições, de perda de direitos e sequestro de nossa dignidade humana.


Freire: A Pedagogia do Oprimido, da Esperança, da Autonomia e da Indignação 

Para entendermos o conteúdo e o sentido do Pedagogia da Autonomia, será necessário primeiro elucidar o processo e o tempo que a Pedagogia[3] ocupou em Paulo Freire, com um significado além do dicionário. Em 1967, no exílio, se ocupou com a Pedagogia do Oprimido, na escuta e diálogo permanente com os oprimidos do seu país e do mundo. Dialogou com sua própria prática, e com tantos pensadores, cujo exílio ou prisão foram as únicas condições de sobrevivência em tempos de ditadura. Sobretudo, ele trata de uma pedagogia dos silenciados do mundo, e que somente tomando sua própria história nas mãos, poderão se libertar. Esta é sua obra clássica, traduzida em mais de 30 idiomas e edições em dezenas de países do sul ao norte. Cabe destacar aqui o pensamento que encerra a escrita desta obra: “Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar” (Freire, 1975, p.218,).

Ainda, a recomendação de que o fazer pedagógico é ético, e educar é um ato político, perpassou as obras e exemplos. Recomendação reafirmada veementemente, na sua fase mais madura, de maior clareza e sabedoria de sua vida no Pedagogia da Autonomia.

Em 1992, em plenas atividades acadêmicas no Brasil, escreve Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Aliás, é neste livro que entendemos o processo de maturação que levou Freire a delinear o Pedagogia do Oprimido, porque são os oprimidos que encontrou pelo caminho, seus mais prediletos interlocutores. Com rigor, modéstia e humildade, ele vai recordando, reconstruindo sua memória das experiências que o tornaram um educador universal, aprendendo da própria vida. Sendo direto e sincero, ele nos diz: “É um livro assim, escrito com raiva, com amor, sem o que não há esperança” (Freire, 1992, p.12).

Como um homem de esperança e de profunda crença no ser humano, afinado com a escrita da palavra, em 1996, escreve Pedagogia da Autonomia. Uma autonomia que é também fruto da Pedagogia do Oprimido, que ao se libertar, tornar-se-á um ser autônomo. Nesta reflexão, aposta no empoderamento e humanidade dos educadores, elencando as qualidades exigidas na prática de um educador que se compromete com a educação libertadora porque se pretende revolucionário. É uma obra que dá subsídios para nos tornarmos mais competentes no ato de ensinar-aprender, sermos mais gente, mais políticos e éticos, formando cidadãos autônomos. Se tomadas cronologicamente, lidas e estudadas, estas três obras referidas acima, afinadas entre si, porque tratam da necessária educação do ser humano, se prestam a um verdadeiro romance de formação humana, porque grávidas de pedagogia social, política, econômica.

Continuando nossa memória, no ano de 2000 é publicado, por Ana Maria Freire, Pedagoga da Indignação – cartas pedagógicas e outros escritos, no qual encontra-se seus últimos escritos, deixados sobre a mesa, inacabados – com três Cartas, pela primeira vez denominadas de “pedagógicas”. Neste sentido, se evidencia que a Questão Pedagogia acampou nele de forma sábia, do início aos seus últimos escritos[4].

Pela última Carta Pedagógica, especialmente, é notável seu sentimento de perplexidade e indignação. Como nós, se indignava ver as injustiças comedidas contra o ser humano, como foi do assassinato de Galdino Jesus dos Santos – índio pataxó, em Brasília. Relendo sua última carta, suponho que seu coração parou, com certo temor do porvir. Não sabe Freire que brutalidades semelhantes vem se repetindo com mais crueldade nos dias atuais, lembrando as centenas de mortos pelo rompimento de barragens, o assassinato de Sem Terras, as mortes coletivas pela Covid/19, sem a necessária assistência pelo Sistema Único de Saúde nos hospitais públicos. Sem, contudo, haver sensibilidade por parte do Presidente da Nação, que insiste em dizer: “vai morrer muita gente, a maioria idosos”, como se estes já estivessem descartados. Podemos dizer: uma total ausência de humanidade.  

Nesta perspectiva, lembremos também o Projeto de Escola Cívico-Militar, cuja força vem se avizinhando nas escolas públicas, especialmente. É assustador pensar, que sendo nós herdeiros da Pedagogia que deu voz aos oprimidos, e tendo Freire como o nosso maior farol pedagógico, vemos a escola pública sendo invadida pela disciplina cívico-militar, que desconsidera a função social dos educadores, a educação dialógica, as práticas pedagógicas democráticas de direito, e civilizadas.   

Como acabamos de ver, a palavra Pedagogia, com tudo o que nela cabe, acampou em Freire e o ocupou até o final da vida. Esta palavra, muitas vezes usada por nós rapidamente e sem aprofundamento, manteve o Mestre incomodado, ocupando-se para entender qual Pedagogia habita o opressor e o oprimido, ambos dentro de nós. Que Pedagogia dá conta de ensinar, educar e formar um ser humano, filho de trabalhadores? Que pedagogia dará conta de ensinar, educar e formar crianças, adolescentes e jovens das periferias, dos acampamentos e assentamentos dos Sem Terra, crianças ribeirinhas, quilombolas, indígenas?


Vida e Obra: munição e alimento

Nesta perspectiva, vemos o quanto seus escritos nos dão munição para pensarmos e recriarmos sua instigante e comprometedora Pedagogia, vivenciada e recriada por diferentes povos e nações! Hoje, não temos dúvida, Paulo Freire fez a sua parte, com amor e determinação. É isto que vemos em suas obras – um legado expressivo e generoso que nos orienta a prestar atenção às falsas acomodações, alimentando nossa consciência crítica, ética. O tempo dedicado a convivência com os oprimidos, lhe deu a condição de reconhecer o opressor e o oprimido dentro de cada ser humano. E que a libertação não é uma questão simples de troca de papéis. Pois, para haver humanidade, livre e feliz, precisamos da conscientização, condição para nos libertar de dois monstros, que não cabem no projeto de ser humano. Uma luta a ser enfrentada a vida inteira, desde o nascimento até a morte. Sem vacilar em momento algum. Para Freire,

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos (Freire, 1968, pp. 30-31).

Educador nato, intuitivo e perspicaz que sempre foi, seu último recado, foi de que para ensinar não basta ter conhecimento. O processo de ensinar exige o cultivo de qualidades/virtudes, tais como: humildade, tolerância e luta na defesa do direito dos educadores. Notadamente se percebe a ausência do pensamento freiriano nos cursos de formação de educadores, nas Universidades Públicas ou particulares, ao alcance e a condição de cada um.

Há jovens professores, pedagogos, que se quer leram uma obra de Paulo Freire. Sendo assim, há professores que se impactam com a falta destas qualidades/virtudes, assim que entram em sala de aula em uma escola pública, e desesperados, buscam na pedagogia de Paulo Freire um caminho. Enquanto outros, as ignoram, tão logo que se encontram com os educandos das periferias, filhos de trabalhadores, e continuam dando aula com métodos autoritários e antidialógicos. Na luta pela terra, no projeto de Educação do Campo desde 1998, não concebemos formação de educadores, ensino médio ou superior, sem o diálogo permanente com as obras freirianas. Geralmente o Pedagogia do Oprimido é a primeira obra que os estudantes são desafiados a estudar.   

À primeira vista, pensei que eram exageradas e quase impossíveis de concentrar em um só educador, em um só tempo, tantas qualidades, sendo ele tão desvalorizado e desconsiderado em sua função social de educador das novas gerações. Todavia, dei-me conta de que são qualidades/virtudes a serem perseguidas, cultivadas e avaliadas durante toda a vida, através de um longo e penoso processo de formação humana integral, mediado por boas leituras, debates coletivos, sistematização de práticas, envolvimento nas causas sociais e nas lutas em favor da vida e da democracia. Estas são condições para entendermos o lugar social dos educandos, filhos da classe trabalhadora. Porque são estes sujeitos que frequentam a Escola Pública da qual Freire se referiu e fez a defesa incondicional, durante toda a vida, nos diferentes continentes por onde viveu durante o exílio, sujeitos/educandos, sem-terra, sem teto, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, dos quais falamos aqui.

Seguramente, é no ambiente da escola pública, hoje, aquém das políticas públicas de Estado, rebaixada e desqualificada que podemos construir os aprendizados, aprimorando a metodologia de ensinar e aprender com nossos educandos, com tolerância, humildade e decência.

Esta vivência nos dará a condição para entender o educando como ser único, com tempos e estilos diferentes de aprendizagens. A postura e abertura para o diálogo do educador com seu educando, fará a diferença na libertação de ambos, porque, sem o exercício permanente de liberdade na relação entre ambos, não absorvemos o conhecimento necessário para a liberdade e autonomia. No entanto, nem sempre o educador, detentor de um determinado e limitado conhecimento, se deixa educar pelos processos formativos, mantendo-se indiferente ao que escuta, lê e vê.

A este educador, perguntamos: O que fará um educador frente aos educandos nas escolas do campo, por exemplo, com postura autoritária? Se deixará educar e transformar pelos educandos, cuja vida é dedicada ao trabalho familiar, vivendo em agrovilas, participando de uma cooperativa de produção? Como exigir respeito aos seus direitos se não dialoga, não busca cultivar as qualidades necessárias ao ato de ensinar?  Que capacidade terá de educar para um projeto de desenvolvimento do campo, baseado na relação social, na produção de alimentos saudáveis, e na permanência do trabalhador no campo?  Estas são algumas questões, cujas respostas estão aguardadas, de modo especial, pelas escolas onde os educadores estão refletindo, organizando e lutando contra os ventos da opressão, tendo em vista alcançar uma educação emancipatória.

Penso ser oportuno trazermos ao debate e a atualidade o conteúdo contido na Pedagogia da Autonomia, porque os descompassos que vive a Escola Pública nos dias atuais, requerem uma nova leitura, um novo pensar, e uma nova prática pedagógica que dá conta de ensinar, educar e formar as novas gerações. Tanto mais, porque estes últimos escritos de Freire nos inquietam. E a inquietude, nos move para as mudanças.

É importante ressaltar que Freire sempre acreditou e incentivou o trabalho do educador, porque ele entendia de qual tarefa estava se referindo, ou seja, a dele própria, e da qual se orgulhava.

Lembremos quantas vezes ele nos alertou para que sua pedagogia fosse recriada, continuidade, e nunca reproduzida, tendo presente os desafios de cada tempo histórico. Neste gesto também se evidencia a humildade de Freire. E hoje temos contradições de sobra, para aprofundarmos os processos dialógicos ancorados nas virtudes sinalizadas pela Pedagogia da Autonomia.

Mais do que nunca, hoje, em tempos da pandemia, tendo que ensinar à distância, mesmo que a maioria não tenha acesso à mínima tecnologia, será necessário reavaliar o ato de ensinar, ou seja, ensinar a quem, em que tempo, e com qual metodologia?

Como tratar pelo ensino à distância, as grandes diferenças sociais que separam os poucos ricos da imensa maioria do povo pobre, desprovida de políticas públicas de educação, cultura, saúde, saneamento básico? O que temos visto é que apenas os conteúdos mínimos, a certeza dos dias letivos que venham garantir o ano escolar é que são contabilizados nesta opção. Há que se pensar um novo jeito de ver o ensino, educação e formação. 

Um desafio que se mostra atual para a educação, é pensarmos que os processos educativos precisam ser vivenciados para além da sala de aula, para a realidade dos sujeitos deste processo. A escola nunca foi o único lugar de aprender, porque a própria vida ensina. Para entender estes desafios, o educador precisa ser leitor, pesquisador da realidade onde atua, planejando e construindo pontes, para que ele e o educando compreendam que o processo educativo se dá em diferentes espaços e experiências de vida. 


Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos Educadores

Na parte que me coube trazer à atualidade desta obra, a frase acima é emblemática. Mas como veremos, é um desafio, um projeto de vida. Contudo, creio: Humildade, Tolerância e Luta, não são qualidades/virtudes escolhidas ao acaso e espontaneamente por Freire, ao tratar do ensino e aprendizagem. A meu ver, são qualidades, educadas nele próprio, portadoras de significados singulares, por nós a serem desvendados no rigor de nossas práticas sociais. Somente um político na qualidade e maturidade pedagógica, no exercício humilde de escuta da palavra, especialmente dos oprimidos, chegará a reflexão-ação, tão verdadeiras e éticas. Nossa gratidão pela sua lucidez, pela decisão de gastar seu tempo em escrever, nos deixando como orientação para a vida. 

Em que pese a importância deste seu escrito, penso que é hora de fazermos a nossa reflexão sobre a Pedagogia da Autonomia, ou, autocrítica pela falta dela em nossas práticas educativas nas escolas do campo, conquistadas nas últimas quatro décadas.

É importante dizer aqui, em forma de denúncia, todavia, de que os sujeitos sociais que frequentam estas escolas, atravessam um momento extremamente complicado e conflitivo, porque constantemente ameaçados de perdê-las pelo atravessamento de projetos governamentais, cuja aposta é pelo retrocesso da Educação do Campo para a velha e Educação Rural. Uma questão que parecia resolvida pelas Diretrizes Operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Resolução CNE/CEB nº 1 de 3 de abril de 2002. Ministério da Educação, e pelas Diretrizes Estaduais/RS, de 2018.

Neste cenário, será preciso atenção às investidas do Projeto Hegemônico do Capital, contrários aos avanços e conquistas de direitos adquiridos nos últimos anos pela maioria dos trabalhadores. Em que a Pedagogia da Autonomia nos subsidia a continuar na luta para assegurar as parcas Políticas Públicas conquistas, nos mantendo, lúcidos, éticos, contrários a governos autoritários, e com pressa, construindo o Projeto de Educação do Campo? Qual a autonomia assegurada aos educandos de fazer questionamentos, de trazer o seu aprendizado para a escola, buscando entender o que o trabalho lhes exige?   

Seguindo nossa leitura para atualizar este escrito, é bom lembrar que Freire admirava o trabalho do educador no MST, porque percebia o forte vínculo entre a Pedagogia da Autonomia e a Pedagogia do Movimento. Ele entendeu o quanto este educador era fortalecido pela formação humana, pela experiência de viver em acampamentos e assentamos que se constituem como escolas de formação humana.  Por isso, vemos que as qualidades exigidas a quem ousa educar para a liberdade, são pressupostos imprescindíveis nos processos de formação humana de educadores, sem as quais não se educa. Sem elas, se adestra, como se vê cotidianamente ser feito com os animais de estimação, para lembrar a opção preferencial de pessoas, preferindo a companhia de um animal, que conviver e enfrentar os desafios da convivência humana, que tem como principal exigência – se importar com ela. Portanto, mesmo que tenhamos avançado nas escolas do campo, se comparado aqueles educadores, sem causas para lutar, a humildade, a tolerância e luta, precisam ser exercitadas e reavaliadas, no dia a dia, em todas as oportunidades e relações estabelecidas. Nenhum ser humano nasce com qualidades tão sóbrios, sem ter que lutar para conquistá-las.

Pois bem, entre tantas, lembremos de um exercício de profunda humildade de Freire no percurso de sua vida. Colocando dúvidas sobre sua escrita, entregou o primeiro capítulo de Pedagogia do Oprimido a uma aluna negra em Harvard, solicitando que lesse. Segundo ele: “na semana seguinte, me trouxe a escrita dela, e a do jovem filho (16 anos) a quem pedira que lesse o texto. Este texto, disse ele, foi escrito sobre mim. Ele trata de mim” (p. 75,).

A meu ver, ele sugere e nos orienta nesta direção, porque educou, exerceu e internalizou as qualidades, virtudes pedagógicas na sua prática, sem as quais não se tornaria o educador do povo, reconhecido no mundo todo, especialmente em Guiné-Bissau. Lembremos que ao alcançar a independência, em 1975, com 93,7% de analfabetos, por coincidência ou não, lá estava Freire, junto, buscando encontrar um caminho de libertação. Estar e ouvir este povo, porque poucas pessoas sabiam escrever, levou Paulo Freire a exercitar a humildade de quem sabe que nenhuma obra grandiosa se faz sozinho e sem amorosidade. E que no caso de Guiné-Bissau, somente criando laços organizativos e afetivos fortes de trabalho coletivo, poderia resultar na alfabetização e formação do povo.

O respeito e a defesa dos direitos dos educadores requerem muita atenção por parte das políticas públicas no atual cenário educacional brasileiro.

Em primeiro lugar é preciso rever o salário tão indigno por eles recebido. É preciso ser sindicalizado, participar das lutas de sua categoria e juntos, brigarem por salários menos imorais. Juntos, lutar para se contrapor ao ataque aos professores e de modelos de privatização da Educação Pública, que trazem incertezas e medos para sua carreira. E para os mais experientes e vividos no magistério, sérios problemas para a perspectiva de aposentadoria.

Nós, aprendizes da Pedagogia freiriana, sabemos de que só a luta e o conhecimento liberta, estamos convencidos de que as lutas educacionais não podem cessar, em momento algum.  As ameaças à educação brasileira, desde o ensino básico ao ensino superior, exigem a energia militante do educador para pautar um debate em defesa das escolas púbicas democráticas, inclusivas, laicas, com liberdade de ensinar e aprender, tendo sua profissão e carreira valorizados, em contraponto ao que hoje alcança contorno de barbárie em nosso país.

A formação permanente é outro aspecto do qual o educador precisa prestar atenção permanente, inclusive para rejeitar treinamentos, impostos por governos autoritários, não cabíveis a um educador, cuja ação pedagógica é nutrida pela prática da liberdade nas escolas públicas.

Não se sustenta um trabalho pedagógico transformador sem que o educador tenha formação humana, que tenha lido, pelos menos algumas obras de Freire. Que tenha tempo de estudo, de reflexão e sistematização de sua prática docente, tempo de estudo e debate com os colegas. É importante que tenha tempo de planejar, avaliar, visitar seus educandos, conhecer a comunidade ao entorno da escola. E o direito ao lazer, qual tempo ocupa na vida dos educadores?  É imoral um professor ter que lecionar 60 horas para fugir de um salário menos digno. É imoral ter que aceitar lecionar disciplinas em áreas de conhecimento que não domina, porque o conhecimento adquirido na academia ainda tem facetas divididas, sem conexão entre si. É desumano, não ter tempo para nada além de estar na escola, diria o Mestre!

Nessa ótica, é bom trazendo para os dias atuais, o que Freire, em plena maturidade de seus últimos dias nos disse: 

Um dos piores males que o poder público vem fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação pública, existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. Não há o que fazer, é o discurso que não podemos aceitar (Freire, 2004, pp. 70-71).

O ambiente de trabalho, acolhedor e agradável na escola é importante para a autoestima de educadores e educandos. Uma escola com sua estrutura, descolorida e desbotada, com cercas e muros ao seu redor, longe da vida dos educandos, ao estilo de prisões, desencanta a todos nós. Ao chegar nela, alimentamos a vontade de sair dela, às vezes, ainda, desejosos de não mais retornar.

A saúde física e mental dos educadores precisa ser preservada, cuidada, e tratada nos casos em que houver complicações, com direito ao tempo de tratamento, sem perdas na sua carreira. Hoje, tem sido comum encontrarmos educadores, ainda em sala de aula, exaustos, deprimidos, sem esperança, à pura espera pela aposentadoria, cujo salário será ainda mais indigno, num tempo de vida em que sua saúde estará mais fragilizada.

Outra condição indispensável, porque se tem que lutar todos os dias, de modo particular nas escolas do campo, é pelo transporte escolar seguro, que leva e busca os educandos e educadores às escolas mais distantes das residências familiares. Pelo processo de sistematização de quatro escolas do campo, em diferentes regiões do RS, realizado entre 2017-2018, o que vimos é um puro descaso. Um transporte terceirizado, de qualidade duvidosa, transportando crianças e adolescentes sem cinto de segurança.  Em dias de chuvarada, os ônibus não chegam à escola, atolando pelo caminho, porque a manutenção das péssimas estradas não é feita regularmente, contudo, reservada e prioritária, para tempos de campanha política. Em consequência desta realidade, educandos são prejudicados nos processos educativos, porque esse tempo escolar não é recuperado. 

Ainda no que diz respeito a autonomia, não concebemos uma escola pública que se presta a formar sujeitos para a autonomia e liberdade, sem uma ampla biblioteca escolar, com obras literárias de diferentes épocas e contextos. A biblioteca deverá ocupar um espaço importante na escola, de livre acesso dos educandos, educadores e comunidade. Um espaço bem iluminado, amplo, acolhedor. Biblioteca e escola são duas instituições que se encontram na história humana e na educação do ser humano.

Se perpassarmos pela Pedagogia Freinet (1896-1966), a Pedagogia Socialista (1917-1930) a Pedagogia Freiriana e a Pedagogia do Movimento Sem Terra, todas são unânimes na defesa incondicional e na orientação de que para haver autonomia e liberdade é preciso que biblioteca e escola estejam juntas. No entanto, pelo visto, esse direito não está assegurado. Historicamente, a escola capitalista dá pouca importância a biblioteca, porque é negadora de conhecimento à classe trabalhadora.

Nas escolas do campo, tem se exercitado a pedagogia da ocupação da biblioteca escolar, forjando o direito a denunciar as péssimas condições destes espaços, muitas vezes uma pilha de livros na dispensa, fundo do corredor ou no banheiro. A falta de políticas públicas para a aquisição de obras críticas, e a imposição do recebimento de livros que sustentam o agronegócio e o uso de agrotóxicos em alguns estados. Enfim, na maioria das escolas há duas lutas a serem enfrentadas: a primeira, é para que haja um espaço adequado para a biblioteca; e a segunda, para que haja a liberdade de acesso a este espaço, tão o mais importante que a sala de aula.        

Nessa direção é fundamental avançar um pouco mais, buscando nos nutrir de esperança, porque lutamos juntos, contra o capital que desqualifica e desvaloriza o professor à medida que determina seu salário inferior a qualquer outra profissão. Quando admite que este trabalhe 60 horas para sobreviver, quando não é incentivado a ser pesquisador. Quando é machucado em sua dignidade, porque contratado temporariamente, sem nenhum direito legal de futuro.

Pois bem, Paulo não está aqui para nos ajudar a entender a maldade opressora que está subliminar ao projeto de Escola Cívico-Militar, que ronda a Educação Pública, proposta pelo Governo Federal. Mas estamos nós aqui, neste tempo histórico, orientados por seu legado de luta e esperança.

Vejamos, a escola, um lugar de ensino, educação e formação é ameaçada todos os dias a ser transformada em um lugar que adestra em vez de educar, ensinar e formar o ser humano.

Mais grave ainda, porque há casos em que o projeto invade a escola, com a adesão da comunidade e alguns professores, cujo período de ditadura lhe passou ao largo, sem se importar com a leitura e memórias dos que a sofreram. Desta forma, o projeto vem gradativamente avançado e se consolidando, retirando a força pedagógica dos educadores éticos, conscientes de que não há docência sem discência, liberdade e autonomia. No bojo do projeto cívico-militar é exaltada a submissão, a negação da palavra, do diálogo, o retorno da “ordem e obediência” cegas. E sobretudo, o projeto controla o trabalho e o conteúdo veiculado pelos educadores, que na ordem do dia tem que ser acríticos, antidialógicos, sem relação alguma com a educação para a transformação social.

A formação de sujeitos sociais, capazes de pensar, projetar e ter cidadania é vista como partidária, e fora de ordem. Nestes casos, penso, a luta pelo direito a uma educação libertadora, democrática, decente, terá que perpassar o cotidiano destes educadores, no diálogo permanente com seus educandos, exercitando e educando em si próprios a humildade, a tolerância e a luta cotidiana. Não há como compreender a maldade deste projeto, e como podemos nos contrapor e ele, sem relermos por exemplo a obra Medo e Ousadia – o cotidiano do professor, um diálogo entre Paulo Freire e Ira Schor, de 1986, e o segundo capítulo de Pedagogia do Oprimido, um verdadeiro tratado sobre a educação bancária. Nestes escritos, tão atuais, encontraremos pistas para fazermos o nosso caminho, caminhando e enfrentando as tensões e contradições próprias da instituição escolar que há séculos foi criada e mantida a serviço do sistema hegemônico do capital, sempre inimigo da classe trabalhadora. Uma instituição pública, que vem sendo interrogada e forjada a caminhar na direção da formação da classe trabalhadora, desde a criação do Projeto de Educação do Campo, em meados de 1998.   

Para concluir, deixo aqui um rastro de pura esperança, porque somos muitos, e unidos somos fortes. Paulo Freire, patrono da educação brasileira, sempre esteve ao nosso lado, temos certeza, o lado certo da história, porque não concebemos Educação divorciada da Humanização. São trilhas de mãos dadas. Nos orgulhamos de termos tido formação humana integral em boa companhia, aprendendo a cada dia de seu legado. Vivendo em outra dimensão, feliz por nos vermos construindo resistências, perseguindo um mundo que seja menos difícil amar, nos assegura: esperançar é preciso! Tão necessário como nos manter vigilantes contra todas as práticas de opressão e desumanização, especialmente racistas e sexistas, fortemente vivenciadas na atualidade. São coerências para as quais o educador revolucionário precisa prestar muita atenção na escola e na sociedade. 

Em seu legado pedagógico encontramos lições de aprendizados de que vale a pena ser educador do povo, estudioso, ético e comprometido com a classe trabalhadora, e persistente em seus sonhos. Aquele que dá aula pensando na transformação social, sem medo e com ousadia. Aquele, cuja luta é sua munição cotidiana, e que não se deixa abater por mais de cinco minutos.

Queridos educadores/as, espero que a Pedagogia do Oprimido, da Esperança, da Autonomia, da Indignação, dos Sonhos Possíveis, da Tolerância e do Compromisso, continue a indagar, mexer e mover nossas práticas sociais na perspectiva da transformação, anunciado que sem educador revolucionário, não haverá prática pedagógica revolucionária.

Por fim, que tenhamos coragem de começar hoje, continuar amanhã e depois, construir a Esperança coletiva, alimentados pelo que Paulo disse certa vez: “Quem espera na pura espera, vive um tempo de espera vá. Por isso, não te esperarei na pura espera….”

Em outro artigo publicado no site, já escrevemos:Vejam bem, nestes estágios de elaboração, as preocupações, angústias, medos, inseguranças não tem espaços, ou são minimizadas porque estamos ocupados com o ato de pensar, criar, bordar as páginas com as letras. Desta forma, ficamos bem ocupados, e intencionalmente focados. Para quem deve e pode manter-se no isolamento, eis uma sugestão, experimentada no exercício da disciplina consciente”. Leia mais.




Bibliografia

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BOLETIM DA EDUCAÇÃO N. 14. Literatura, Sociedade e Formação Humana. Lutar, Construir Reforma Agrária Popular. São Paulo, MST, 2018.

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CAMINI, Isabela. Escola Itinerante – na fronteira de uma nova escola. São Paulo, Expressão Popular, 2009. Primeira Reimpressão em 2011.

CAMINI, Isabela. Cartas Pedagógicas – aprendizados que se entrecruzam e se comunicam. São Paulo, Outras Expressões, 2012.

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FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sergio. A África Ensinando a Gente – Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo, Paz e Terra, 2003.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. Cartas Pedagógicas e outros escritos. São Paulo, Editora UNESP, 2000.

______Pedagogia da Esperança – Um reencontro coma Pedagogia do oprimido. São Paulo, Paz e Terra, 1992.

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Autora: Isabela Camini, Doutora em Educação pela UFRGS. Do Setor de Educação do MST/RS. Autora dos livros: Escola Itinerante – na fronteira de uma nova escola, São Paulo, Expressão Popular, 2011; e, Cartas Pedagógicas – aprendizados que se entrecruzam e se comunicam, São Paulo, Expressão Popular, 2012.


[1] Lembramos que se Freire estivesse vivo, em 19 de setembro de 2021, estaria completando 100 anos de vida.

[2] Como de costume, antes da publicação, meus textos são testados por diferentes leitores, meus interlocutores. Por isso minha gratidão a Diana Daros, Soloá Sitolin, Letícia Camini Colen, Fernanda Paulo, Roseli S. Caldart, Daniel Momoli e Solange Todero Von Onçay.

[3] A palavra Pedagogia vem do grego (pais, paidós = menino, filho) e agogué—agogia = conduzir, guiar. Daí a ciência de guiar, educar. Outrora, o conceito fazia, portanto, referência ao escarvo que levava os meninos à escola. Atualmente, a Pedagogia é considerada como sendo o conjunto de saberes que compete à educação enquanto fenômeno tipicamente social e especificamente humano. Trata-se de uma ciência aplicada de caráter psicossocial, cujo objeto de estudo é a educação. A pedagogia recebe influência de diversas ciências, como a psicologia, sociologia, a antropologia, a filosofia, a história e a medicina, entre outras. A pedagogia também tem sido relacionada com a andragogia, a disciplina educativa que se encarrega de instruir e educar permanentemente o homem em qualquer período de seu desenvolvimento e em função da sua vida cultural e social. “Andragogia é vista como arte e a ciência de ajudar os alunos a aprender, em contraste com a pedagogia como a arte e a ciência de ensinar crianças”. Kmowles, Malcolm S. The modern practice of adult educatiion: andragogy versus pedagogy. New York: Association Press, 1970.  

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[4] Para quem interessar, Ana Maria Araújo Freire continuou a publicar obras póstumas de escritos de Paulo Freire, tais como: Pedagogia dos Sonhos Possíveis, 2015; Pedagoga da Tolerância, 2012; e Pedagogia do Compromisso, 2018.

Pedagoga, mestre e doutora pela UFRGS. Do Setor de Educação do MST/RS.

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