Quando a vigilância compromete a liberdade

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A vigilância que nos torna melhores não é aquela que vem de fora, imposta autoritariamente, mas a melhor vigilância é “a lei moral dentro de mim” que se desenvolve por meio de um processo autêntico de formação e por escolhas livres de uma cidadania autêntica que somente cria raízes se vivermos numa sociedade democrática.

O que seria de nossa liberdade, do nosso comportamento, das nossas atitudes e das nossas relações se fôssemos vigiados o tempo todo e em todos os lugares?

Há os que defendem que, se assim fosse, haveriam menos crimes, vandalismos, comportamentos indecentes, corrupção, desonestidade, falta de caráter, enfim, “as pessoas andariam na linha”, pois estariam sendo vigiadas e qualquer atitude imprópria seria mais facilmente punida. Alguns chegam a se entusiasmar com a ideia e pensam que instalar câmeras em todas as ruas das cidades nos daria segurança e tranquilidade para evitar o indesejável. Mas será isso mesmo? Não haveria algo de perverso nesse processo de vigilância total?

No mundo da ficção e da literatura já tivemos esse tipo de situação ilustrada de várias formas. O livro intitulado 1984 do britânico George Orwell, por exemplo, é uma distopia escrita em 1949 no qual o escritor projeta como seria a vida no futuro distante de 1984 onde tudo seria vigiado.

George Orwell, na verdade é o pseudônimo de Eric Arthur Blair, nascido em 1903 em Bengala na Índia, filho de um funcionário britânico e de uma francesa. Publicou diversos livros, dentre os quais destacam-se “Na pior em Paris e em Londres e “A revolução dos Bichos” em 1945. Foi um visionário em suas obras, pois antecipou um conjunto de situações que se fizeram realidade na segunda metade do século XX e no início do século XXI.

No romance distópico de 1984, o totalitarismo é o percurso que embala a narrativa passada em Londres. Trata-se de um mundo fictício onde existem inúmeros televisores monitorando e controlando toda a população e onde ninguém tem mais direito à privacidade.

Wiston Smith (principal personagem do romance), um solitário funcionário do setor de documentação do Ministério da Verdade, responsável pela propaganda e pela reescrita do passado, é o protagonista da história. Ele detesta seu trabalho, pertence à classe média-baixa, e sua função é reescrever os jornais e documentos antigos de modo a apoiar o partido no poder. Tudo o que não for favorável ao governo e ao seu partido é destruído. O Governo é regido pelo Grande Irmão (Big Brother), um ditador e líder do partido que nunca foi visto pessoalmente, mas que tudo vê e tudo controla. No Estado não existe leis e impera uma única ordem: todos devem obedecer. A propaganda é a base do regime e garante a manutenção do poder. Vigilância total, inclusive do pensamento.

Um dos elementos importantes a serem destacados no romance distópico de Orwell é a forma como ele faz a construção psicológica do trama, ou seja a maneira de como o Partido consegue influenciar a mente dos indivíduos que garante poder ao Grande Irmão.

A delação, a censura, a desintegração humana, a falsidade, a tortura, a crueldade dos homens vão sendo mostrados no decorrer da obra descortinando a perversidade que pode haver quando somos engolidos pelo poder autoritário e pelo pleno controle.

1984 não deixa de ser uma obra profética em termos da quebra da privacidade. Sem saber, graças ao avanço tecnológico e a forma como cada um expõe seus dados de inúmeras formas, estamos sendo monitorados o tempo todo.

A simples criação de uma conta no Facebook, as compras no cartão de crédito, o preenchimento de um cadastro para acessar gratuitamente um serviço, se transforma numa servidão voluntária em que estamos revelando nossos dados que são amplamente comercializados por grupos econômicos, ideológicos e políticos. Com base nestes dados, estes grupos nos oferecem produtos e nos induzem ao consumo, as escolhas, as ideologias, as preferências.

Muitos perdem sua própria identidade, pois o que pensam, o que acreditam e o que defendem foi sutilmente influenciado por estes mecanismos perversos de indução de pensamento e de atitudes provenientes da vigilância.

A obra de Orwell certamente nos apresenta um gigantesco desafio educacional: como evitar que o fanatismo (religioso, político, ideológico) se transforme num mecanismo perverso de submissão das pessoas?

Talvez a escola, a universidade e as instituições educacionais de modo geral ainda possam ser um espaço importante de pensamento crítico, de autonomia e experiência formativa.

É necessário compreender que a vigilância que nos torna melhores não é aquela que vem de fora, imposta autoritariamente e que nos condiciona pela psicologia do medo a um comportamento inautêntico: a melhor vigilância é “a lei moral dentro de mim” que se desenvolve por meio de um processo autêntico de formação e por escolhas livres de uma cidadania autêntica que somente cria raízes se vivermos numa sociedade democrática.

Autor: Dr. Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com

Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF

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