Pergunto-me se, no fim das contas, a ignorância não seria mesmo uma bênção. O conhecimento liberta, mas também dilacera. Ele não vem apenas com asas, mas com espinhos.
Acordar dói. Mas dormir pode matar.
Quantos de nós, embrulhados no conforto pegajoso da ignorância, preferimos o abraço sufocante das mentiras ao grito áspero da verdade? Até quando vamos fingir que não vemos? Que não sabemos? Que não ouvimos os gemidos do mundo despedaçando-se à nossa volta?
Há uma violência brutal na lucidez. Ela rasga véus, incinera ídolos, expõe as costuras podres da realidade. Mas será que temos estômago para digerir o que descobrimos? Ou vamos, como crianças assustadas, cobrir os olhos e gritar até que o pesadelo passe?
A verdade não pede licença. Ela invade. Escancara. Arranca máscaras. E aí, quando nos vemos nus diante do espelho, resta a pergunta mais cruel: “E agora, o que você faz com isso?”
Alguns preferem a anestesia do “não sabia”, do “não foi assim”, do “isso não é comigo”. Mas a verdade não some só porque viramos as costas. Ela fica ali, latejando, como um dente cariado que recusamos a extrair. Até que um dia, a infecção se espalha.
E você? Quantos espelhos já quebrou para não encarar seu próprio rosto? Quantas vozes abafou para não ouvir o que não queria? Quantas vezes trocou a libertação dolorosa pela prisão aconchegante da mentira?
A ignorância é uma cela com paredes macias. Você até pode bater e achar que está livre—mas ainda é um prisioneiro.
E quando a verdade finalmente vier—e ela virá—você vai engolir em seco, fingir que sempre soube, ou vai ter coragem de assumir que preferia o escuro?
Porque a verdade não machuca. O que machuca é o golpe de descobrir que você mesmo ajudou a construir as correntes que agora lhe apertam o pulso.
Então, antes de perguntar “quanta verdade somos capazes de suportar?”, responda: quanto de mentira você ainda consegue carregar sem desmoronar?
Quão frustrante e angustiante é perceber que as pessoas à nossa volta estão adormecidas e não logramos despertá-las. Algumas porque não querem. Outras porque simplesmente não podem. Estão presas a uma espécie de hibernação existencial, atravessando a vida como sonâmbulos, sem notar as engrenagens ocultas que movem o mundo.
Sentimo-nos sozinhos nessa vigília incômoda. Como canta Renato Russo em Monte Castelo: “Estou acordado e todos dormem.” Mas será que vale a pena tentar despertá-los? E se, ao invés de gratidão, recebermos ódio?
Pergunto-me se, no fim das contas, a ignorância não seria mesmo uma bênção. O conhecimento liberta, mas também dilacera. Ele não vem apenas com asas, mas com espinhos. Quantas dores evitaríamos se simplesmente fechássemos os olhos? Mas, ao mesmo tempo, qual o preço de permanecer cego?
Se a verdade tem o poder de nos libertar, a ignorância nos acorrenta. Mas eis a grande questão: quanto de verdade somos realmente capazes de suportar?
Um doente terminal tem o direito de saber que está morrendo? Ou seria mais justo poupá-lo dessa verdade cruel? A ignorância não elimina o sofrimento—apenas posterga a preocupação. A dor vem de qualquer jeito. O que muda é se estamos prontos para enfrentá-la.
Somos como crianças que se esticam no banco traseiro do carro e dormem tranquilas, confiando cegamente na destreza do pai ao volante.
Eu mesmo já fui assim. Dormia sem medo em qualquer viagem—de carro, de ônibus, de avião. Até que, certa madrugada, enquanto cruzávamos a estrada entre o Rio e Brasília, a realidade me arrancou desse sono ingênuo. Um boi surgiu no meio da pista. Meu primo, ao volante, tentou desviar, e o carro acabou avançando mata adentro, parando a poucos metros de uma enorme pedra. Por um triz, não morremos ali. Desde então, nunca mais consegui dormir em viagem. Em vez de fechar os olhos e confiar, prefiro me manter desperto, atento à paisagem e aos perigos ocultos no caminho.
Alguns, mesmo quando sacudidos pela verdade, insistem em pedir “só mais cinco minutinhos.” E assim adiam o inevitável. Quando finalmente despertam, o dia já se foi. O ano passou. A década escorreu pelos dedos. E, sem perceber, dormiram a vida inteira.
Se ninguém acordar, quem avisará os demais passageiros do perigo iminente? Quem os preparará para enfrentar os desafios que o futuro impiedosamente trará?
Se a ignorância for uma bênção, então que eu carregue o peso da maldição do conhecimento. Prefiro a dor da verdade ao conforto da ilusão. Se for atingido, quero saber exatamente o que me atingiu e o que poderia ter feito para evitar. Não quero véus, eufemismos ou falsas seguranças.
Não me esconda nada. Deixe que eu mesmo decida como lidar com a verdade, por mais amarga que seja.
Mas antes de sair por aí despertando quem dorme, lembre-se: nem todo mundo quer acordar. E alguns não apenas resistirão—mas odiarão quem os arrancou do sono.
Pergunte-se: você está pronto para lidar com a ingratidão de quem preferiria continuar sonhando?
Autor: Hermes C. Fernandes (Trecho no meu novo livro “Pegos na Mentira”, disponível na A m a z o n). Também escreveu e publicou no site “Do que você jamais deveria se arrepender”: www.neipies.com/do-que-voce-jamais-deveria-se-arrepender/
Edição: A. R.
Mais uma grande reflexão de Hermes Fernandes, um religioso que tem uma formação humanista e uma percepção crítica da realidade. Parabéns!