O grande dilema do homem é não empobrecer a autocrítica e saber evitar o egocentrismo intelectual.
Não é o exercício de profissões (aparentemente) eruditas, nem o privilégio de usufruir de titulações acadêmicas elevadas (ou cargos), que asseguram a um indivíduo o grau de intelectual. Tampouco servem os estereótipos dos bancos escolares (óculos fundo de garrafa e ares de c.d.f.). E muito menos as definições dicionarizadas: “pessoa que tem gosto predominante ou inclinação pelas coisas do espírito, da inteligência”.
Em tempos de criticismo à intelectualidade brasileira, cabe a indagação: afinal, que é um intelectual? Quem é esse raro espécime?
Talvez só não menos raro que um Oryx leucoryx (antílope do deserto que inspirou o mito do unicórnio e que se tornou virtualmente extinto no começo dos anos 1960).
Não sou eu quem afirma, e sim Edgar Morin (em Meus Demônios), que um indivíduo só se torna um intelectual a partir do momento em que é capaz de tratar, de maneira não especializada e além do seu campo profissional restrito, por meio de ensaios (gênero híbrido entre filosofia, literatura, jornalismo e sociologia), textos em revistas ou artigos de opinião em jornais, dos problemas humanos, morais, filosóficos e políticos.
Ou seja: os rótulos de “professor”, “pesquisador”, “sociólogo”, “cientista político”, “escritor”, “crítico literário”, “juiz de direito”, “procurador”, “advogado”, “médico”, etc., que costumam estar apensos aos nomes de pessoas, geralmente acompanhados de titulações acadêmicas adicionais, não dizem absolutamente nada quanto ao exercício da intelectualidade. Dizem meramente o que representam: o exercício de funções. Há que superar a profissão nas ideias, para alguém ser merecedor da designação de intelectual.
A missão do intelectual é trazer à tona reflexões sobre o mundo, a vida, o ser humano e a sociedade de modo geral. Servindo quase como uma espécie de consciência da humanidade (mas sem exageros).
O seu principal papel é combater as forças que prejudicam a reflexão, a análise crítica dos fatos e levam ao erro. E a grande ameaça ao exercício da intelectualidade é a especialização, o tecnicismo e a profissionalização (também muito necessários), que não raro, quando fora dos seus domínios, grassam na cabeça de técnicos e cientistas não mais que ideias vazias e superficiais, em se tratando de pensar abstratamente a sociedade (especialmente no diagnóstico político).
Mas, o pior de tudo é o espírito de corpo que costuma reinar absoluto no seio das disciplinas científicas, em que o especialista (ou pretenso) se julga proprietário do domínio (físico, técnico, ético e cultural), acreditando ocupar o centro do mundo, e passando a atacar aqueles que imagina como competidores, à semelhança do instinto territorial dos animais irracionais. Sintetiza assim o mito do perseguidor-perseguido.
Ninguém ignora que há também a casta dos intelectuais, cuja corporação, em nome do espírito de grupo, costuma manifestar o seu próprio conformismo, defendendo idéias ou fatos que, em essência, podem não ser totalmente defensáveis. Existe neste caso uma competição não-confessa em busca da glória e do reconhecimento dos pares, uma espécie de obsessão pela admiração da crítica, que, a exemplo da seleção darwiniana, tende a reduzir a biodiversidade intelectual.
Há ainda aqueles que, na dependência do sistema de produção cultural vigente, professam apenas ideias de consumo de massa. Ou os que se julgam o soberano juiz de todas as coisas, não prestando atenção nos discursos alheios ou sendo incapazes de ouvir um argumento sem deformá-lo, considerando ignorantes todos os que não possuem a sua cultura. Portanto, não se trata, de maneira alguma, de uma comunidade que esteja imune a críticas (e a erros também). Acima de tudo, porque é indiscutível que o erro é o risco permanente do conhecimento e do pensamento.
O grande dilema do homem é não empobrecer a autocrítica e saber evitar o egocentrismo intelectual.
Eu, por exemplo, tenho muito claras minhas carências intelectuais. Como oriundo das ciências agrárias, nas quais, sem que muitos (e importantes atores) se dêem conta, triunfou (e insiste em persistir) o pensamento do paradigma científico positivista, cotidianamente, luto para “matar” Auguste Comte.
(Do livro Cientistas no Divã, 2007.)
Autor: Gilberto Cunha