Terá o choro da criança mais efetividade comunicativa
que nossos esforços de construção de coesão para
resistir aos retrocessos e aberrações?
Passou o tempo em que a conversa de portão com os vicinais bastava à necessidade de informação. Já não se está mais em momento onde acatar passivamente as ponderações do repórter da rádio local é a única opção de saber sobre fatos e acontecimentos. Âncoras de telejornais também já perderam a exclusividade do palco e das lentes das câmeras. Por sua vez, esse novo cenário demanda um conjunto de conhecimentos (alguns bastante simples, outros ainda pouco investigados) sobre comunicação. Não é mais suficiente comunicar: está-se diante do imperativo de saber como comunicar. A velha máxima do “quem não se comunica, se trumbica”, parece estar sendo precedida por “quem não se trumbica, se comunica”.
Como estamos nos comunicando? Tal problematização não põe em questão, primariamente, os meios e instrumentos de comunicação. Que, diga-se de passagem, nunca foram tão diversos e de acessibilidade objetiva, ainda que padronizada. Em primeiro lugar, esta provocação quer despertar para o quão preparados estamos para comunicar.
O choro de uma criança é ato de comunicação. Ato fundamentado, objetivo, baseado em fatos. Ato eficaz. Com uma única opção de forma de comunicação, com um palco social restrito, sem qualquer conhecimento de teorias de comunicação e de capacidade de manuseio de tecnologias, ainda implume, a criança é capaz de, através do recurso do choro, comunicar e reivindicar condições para sua sobrevivência. Por sua vez, o/a cidadão/ã contemporâneo, crítico/a, civilizado/a e alfabetizado/a, esbraveja em diferentes palcos, hora até em caixa alta e, mesmo assim, passa desapercebido/a, como apenas mais uma “aparição” qualquer nas “linhas da vida”.
Como recuperar nossa efetividade comunicativa? Como sermos ouvidos/as em meio a uma sociedade de “diplomados/as a falar”? Terão as redes sociais e as formas contemporâneas de comunicação realmente democratizado o ato de comunicar?
Democracia é, sobretudo, condição de comunicação. Mas não de qualquer forma de comunicação. Comunicação organizada, coletiva, discutida, sistematizada, consensuada. Teremos perdido nossa capacidade de comunicação? Será que não estamos nos trumbicando, apenas emitindo ruídos? Quantas conversas acabam em defesas egoístas e até irracionais de pontos de vistas? Quantas ponderações são rechaçadas com alegações de não ter, o interlocutor, gabarito para falar sobre o assunto em questão? A arrogância que inviabiliza a “conversa de portão”, desmobiliza a construção da democracia, que se dá, também, pela comunicação. Será que não estamos nos trumbicando mais que comunicando?
O pretensioso discurso “dono de si” dos/as fulanos/as em suas padronizadas (mas personalizáveis) redes sociais tem pouco ou nada de autonomia e maturidade. Para que a tortura física, se a dominação social pode ser conquistada pela moldagem do pensamento, lícita, limpa, não-reativa. A comunicação efetiva controla a rua, influencia o povo, garante a sobrevivência. Comunicação é poder de manipulação, mas pode também ser instrumento de resistência e construção democrática. Discursos odientos, ao disseminarem a imbecilidade, fortalecem e afirmam a comunicação como ato de dominação, de manipulação, de subjugação. Somente o discurso aberto, crítico e desarmado (que não significa despreparado) pode construir e ser espaço de resistência.
Não se ser quer aqui um retorno ao “na minha época era assim…” Mas, aqueles e aquelas que se pretendem agentes sociais na construção de sujeitos, precisam compreender que o atual contexto demanda que qualifiquemos nossa atuação, que repensemos processos. O que era efetivo e eficaz em contextos aparentemente lineares, se esvai no atual contexto, cuja complexidade torna difícil até mesmo uma analogia figurativa. E o passo preliminar para isso é recuperarmos nossa condição de comunicação. Uma condição que não significa apenas capacidade de fala, mas também de escuta e, fundamentalmente, de discernimento do que escutar. Estamos tendo a capacidade de discernir o choro de fome, fralda suja ou dor de barriga, daquele “choro de manha”?
Somos muitos. Podemos ser fortes. Comunicaremos o coletivo ou nossa necessidade mais animalesca de sobreviver ocupando o centro do espetáculo? É isso que faz a criança. Para sobreviver, com seu choro, ocupa o centro do espetáculo. Em nossa ânsia por “reconhecimento”, expresso no número de curtidas e compartilhamentos, nos esquecemos que o real engajamento se dá na conversa de portão, que, como se disse no início, não precisa mais “ser no portão”, mas precisa ser tão efetiva e significativa como “a do portão”.