Realidade assombrosa

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Qualquer um que se interesse minimamente pelo desempenho da vida moderna sabe bem, e não é difícil assim concluir, que já não é mais possível aceitar a existência de um modelo econômico (cujo crescimento é sempre o ponto de destaque) que coloque em perigo o equilíbrio ecológico.

Para começo de conversa, é preciso considerar que vivemos sob uma crise sistêmica provocada por nós mesmos que não tem precedente na história. Particularmente, como não é difícil presumir, dado os efeitos nocivos de nossas atividades que alimentam o nosso sistema de economia global e a nossa ordem política atual, temos configurada uma crise multiforme constantemente retroalimentada que coloca o destino da humanidade, isto é, o nosso destino, numa situação limite. É esse o ponto grave diante de nós.

Gostemos ou não, os saberes da ciência apontam que todos os sistemas de vida do planeta estão ameaçados – alguns seriamente ameaçados.

Ocorre que, ao acatarmos padrões insustentáveis estabelecidos (os processos produtivos globais e o consumo global, ainda hoje vistos como referenciais da modernidade), é frequentemente espantoso perceber, pelo lado ambiental, que seguimos atrapalhando os sistemas naturais na tarefa de autorregeneração. Isso, por óbvio, tem um claro desdobramento: à medida que se amplia o impacto dos seres humanos (antropocentrismo dominador, usemos de saída essa expressão bastante precisa) sobre o meio ambiente e se aceleram as mudanças climáticas, aumentam – e muito – o peso das ameaças (sociais), dos riscos (ecológicos) e dos custos (econômicos). 

Na direção da esfera ecológico-ambiental, dois dos mais adversos pontos já bem perceptíveis – a degradação do meio ambiente e o pesadelo climático – elevam de vez nosso nível de preocupação. Assim, sendo taxativo, convém estar atento para os mais diversos avisos que temos recebido. Sobre isso…

OS GLACIÓLOGOS ALERTAM: o gelo está derretendo a uma velocidade três vezes maior do que eles temiam apenas dez anos atrás;

OS CIENTISTAS DO IPCC PREVÊEM: os danos causados por enchentes vão aumentar de cem a mil vezes até o final deste século. (E não custa lembrar aqui que dois terços das maiores cidades do mundo estão a centímetros do nível do mar);

OS CLIMATOLOGISTAS AVISAM: um aumento de 3°C na média global de temperatura afetará drasticamente todas as formas de vida;

OS OCEANÓGRAFOS DENUNCIAM: até 2030, o aquecimento e a acidificação dos oceanos ameaçarão 90% de todos os corais que sustentam pelo menos um quarto de toda a vida marinha;

OS CIENTISTAS DA TERRA CONJECTURAM: apenas entre 1992 e 2015, os humanos alteraram 22% da massa terrestre do planeta;

OS BIÓLOGOS ADMITEM: de 40 mil espécies estudadas, 12% de todas as aves, 13% das plantas e 25% dos mamíferos correm risco de extinção;

OS DEMÓGRAFOS ANUNCIAM: a cada dia, em todo o mundo, uma a cada seis pessoas padece de fome e malnutrição – o número mundial de subnutridos já alcança 800 milhões, sendo que 100 milhões desses passam fome devido aos choques climáticos;

OS ESPECIALISTAS EM GESTÃO PÚBLICA ARGUMENTAM: em 2025, metade da população mundial passará pela falta de água potável por pelo menos um dia da semana;

OS TÉCNICOS DA ONU PROJETAM: até 2050, o mundo conhecerá 200 milhões de refugiados do clima;

OS ECONOMISTAS ECOLÓGICOS SENTENCIAM: os limites físicos do planeta colocam em xeque à ideia de crescimento sem fim;

OS CIENTISTAS SOCIAIS CONCLAMAM: devemos reorientar nosso modelo de civilização, e mais do que isso, devemos alterar o sentido civilizatório;

OS AMBIENTALISTAS NÃO CANSAM DE DIZER: nenhum progresso será viável se não buscarmos manter o equilíbrio entre a nossa espécie e o resto da natureza.

Embora esteja claro que tudo isso provoca múltiplos desdobramentos em graus variados, pelo lado da questão social, e importa mencionar isso, há de se dizer com muito pesar que as evidências continuam mostrando que desigualdades e diferenças socioeconômicas, ao afetar o cotidiano das populações vulneráveis (vítimas das circunstâncias), minam de vez expectativas de uma vida com mínima segurança, o ponto vital. E nesse caso, somos confrontados de imediato com uma realidade assombrosa.

A fratura social (totalmente fora de controle e moralmente indefensável) é de tamanha ordem que atingimos absurdos e extremos: o 1% mais rico do mundo equivale aos 99% seguintes.

Pela realidade brasileira, ainda sobre esse assombroso assunto, apenas 0,5% dos brasileiros concentram quase 45% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Convencionalmente considerada como uma sociedade bastante desigual, não mais do que seis brasileiros – isso mesmo, apenas 6 indivíduos – concentram, juntos, a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres do país, ou 47% da população. 

E mais: esses dados em particular, quando vistos em conjunto, continuam a nos deprimir. Para entrar no detalhe, em 2019, por exemplo, resumindo numa única situação, apenas 2.153 indivíduos mundo afora detinham mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – o equivalente a cerca de 60% da população mundial. O pior é que, em tais circunstâncias, apesar de ser escandaloso, assombroso e estarrecedor, isso não é nenhuma novidade, tanto que o sempre iluminado Boaventura de Souza Santos esbraveja com razão: “um sistema com desigualdades gritantes sobrevive há séculos”.

E como tudo está interligado, a questão que se coloca diante de mais essa indecência é relativamente simples de entender.

Vejamos: gestadas por um dominante modelo de crescimento ecologicamente predatório, esses custos, ameaças e riscos socioambientais – capazes de destruir as bases ecológicas de produção e de subtrair a possibilidade de uma vida com qualidade – trazem em si marcas de anormalidade que carregam nomes próprios: pobreza, miséria, aprofundamento de vulnerabilidades, secas, inundações, ondas insuportáveis de calor, recuo de geleiras, elevação do nível do mar, proximidade de esgotamento dos ecossistemas, excesso de rejeitos (cultura de descarte, e, dá no mesmo, economia do desperdício), poluições atmosféricas, exército de refugiados ambientais, sistemática degradação ecológica e acentuada diminuição da biodiversidade, para o caso de citar por esse momento apenas algumas das situações mais desconexas e alarmantes possíveis.

Ainda assim, diante de mais essa dura realidade, o detalhe apavorante contido em toda essa ideia, e que precisa ser bem explicitado, é que já fomos longe demais com nossas loucuras, inclusive as consumistas. Sabendo disso, num quadro de críticas justificáveis, há um ponto importante de toda essa discussão que não podemos perder de vista: onde quer que nos encontremos, precisamos ter sempre em mente que, por conta do violento capitalismo global, a grave predação planetária, conjugada ao pesadelo climático que paira sobre toda a população global, não pode continuar a ser “administrada” do modo como estamos acostumados a fazer.

À primeira vista, apesar dos pesares, se quisermos superar os principais sinais da crise do mundo globalizado (incluindo aí, é claro, a questão climática) temos o dever de passar à ação imediata, a começar por empreender mudanças radicais, incluindo o rompimento com as ideias tradicionais. Isso pode parecer simples, mas não é. Toda ação de ruptura, em muitos casos, se traduz num rompimento com uma dimensão normativa. Nesse caso, a referência aqui diz respeito à posição padrão da racionalidade econômica ainda muito presente no imaginário coletivo, vide o exemplo vivo da ideia do crescimento sem fim (tolice imaginar que isso seja possível) colocado como selo de salvo conduto.

E mais um detalhe: não se trata aqui de apenas criticar o crescimento sem uma base de fundamento, mas sim procurar enfatizar a necessidade que temos de romper tradições. Afinal, qualquer um que se interesse minimamente pelo desempenho da vida moderna sabe bem, e não é difícil assim concluir, que já não é mais possível aceitar a existência de um modelo econômico (cujo crescimento é sempre o ponto de destaque) que coloque em perigo o equilíbrio ecológico.

Em outras palavras, não será tirando a qualidade dos ecossistemas, do qual dependemos, que o sistema vida irá progredir. É justamente o contrário.

Logo, em termos claros, o que mais precisamos é de uma sociedade e uma economia que não abandone sua face humanista e sua reverência à Natureza (matriz de tudo e parceira da vida). O que mais precisamos, insistindo no assunto que sabemos ser urgente, é de uma economia equilibrada que esteja à serviço da comunidade humana, e que opere dentro dos limites planetários.

Para se chegar a isso, os desafios que nos espreitam são conhecidos. Para além de tudo, os especialistas não cansam de dizer que precisamos: (1) redesenhar uma nova estratégia planetária; (2) equilibrar os diversos interesses (“só os interesses são o motor da história”, dirá Daron Acemoglu); (3) administrar disputas entre os que decidem o destino do mundo; (4) mudar nossa cosmovisão; (5) desconstruir o paradigma do economicismo; (6) conter a expansão desenfreada das finanças mundiais (onde de fato reside o poder econômico); e, (7) abandonar, como uma espécie de prêmio final, a mania do crescimento (a growthmania, termo utilizado pelo economista inglês E. J. Mishan [1917-2014]).

Em síntese, precisamos repensar a economia global de uma forma inclusiva e sustentável, socialmente justa e ambientalmente segura, e isso requer, notadamente, impor o que tem sido discutido desde as negociações do Protocolo de Kyoto (1997): a definição de um preço global (taxação) para o carbono (ironia ou não, aqui é a lógica econômica a favor de benefícios climáticos), facilitando a reconversão da estrutura produtiva, imperativo à correção climática.

Com efeito, à medida que avança essa atual economia movida a combustíveis fósseis (que a economia ecológica acertadamente chama de economia entrópica) e que tanto nos aproximam de pontos de ruptura (tipping points), a agenda do futuro sustentável acaba imprimindo mais prioridades de realizações, entre as quais: (i) melhorar o padrão de vida da sociedade moderna, aumentando o bem-estar, a participação social e a inclusão; (ii) olhar na direção da descarbonização absoluta da economia, partindo para superar de vez a economia “fóssil-nuclear”; (iii) levantar esforços para ampliar o investimento em energia limpa com vistas a alcançar a meta do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) de emissão zero (eliminar as emissões indiretas) até 2050, consolidando assim o movimento global por justiça climática, reconhecido jeito que a humanidade tem de fazer as pazes com o planeta.

De novo: tudo isso porque está muito claro que o modelo econômico convencional dos dias de hoje não funciona em favor da maioria. Daí a ênfase para a busca de uma nova economia e de um novo projeto político global à serviço do bem-estar humano e planetário. É nesse sentido, único e abrangente, que devemos nos esforçar para inaugurar novos e promissores modos de vida solidários. Nosso entendimento mais imediato aqui, além do mais, é que necessitamos de uma economia plural construída pela e para a sociedade. Uma economia que seja capaz de “colocar o progresso a serviço dos mais pobres” (M. S. Swaminathan).

No ponto que move as decisões econômicas e políticas, nada pode estar acima da certeza de que necessitamos de uma economia de todos, e para todos. Uma economia para propósitos humanos que vá além da economia monetária. Uma economia de cooperação com olhos postos na “escala humana do desenvolvimento” (Manfred Max-Neef).

Mas qual desenvolvimento? De um desenvolvimento, por fim, que tenha o necessário “semblante humano”, como ensina o filósofo alemão Elmar Altvater.

No melhor dos casos, para alcançar a desejada transformação, é nosso dever exigir a organização de um novo plano político voltado ao alcance de práticas sustentáveis, necessariamente alinhavando atividades econômicas sustentáveis.

Dito isso, a discussão está na mesa: se Mary Robinson (2021), ex-presidenta da Irlanda, estiver certa quando anuncia sem meias palavras que “nosso prazo está chegando ao fim”, todos os que se preocupam com a justiça ambiental (environmental justice) e a justiça climática (climate justice), ou seja, todos os que se preocupam em defender a sustentabilidade da vida e projetam um mundo melhor, tem o dever de entender como mais um sinal de alerta (quiçá, um lembrete de urgência), as contundentes palavras do Dalai Lama (2001), um dos maiores líderes religiosos da atualidade: “É senso comum que não conseguiremos sobreviver se continuarmos trabalhando contra a natureza”.

Em outra reflexão, já escrevemos: “o que mais queremos é ter a possibilidade de construir oportunidades e meios de reorientar os rumos do planeta para igualmente levantar uma nova economia devidamente combinada à conscientização ecológica, isto é, a base para se chegar numa civilização verdadeiramente humana”. Leia mais: https://www.neipies.com/civilizacao-insustentavel-a-difusao-do-mal-estar/

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DALAI LAMA, QUAKI F. & BENSON, A. “Imagine all the people: a conversation with the Dalai Lama on Money, politics and life as it could be”. Boston: Wisdom Publisher, 2001

 ROBINSON, Mary. “Justiça climática”, São Paulo: Civilização Brasileira, 2021.

Autor: Marcus Eduardo de Oliveira

Edição: Alex Rosset

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