Neste momento delicado pelo qual passamos, ou falamos demais, ou ficamos sem palavras. O planeta já vem gritando sofridamente há décadas juntamente com os fragilizados. Contudo, a cada amanhecer, a cada olhada rápida nas manchetes dos jornais, mais e mais nos chocamos. O medo e a incerteza do amanhã crescem mundialmente. Em meio a isso tudo, fomos instigados a repensarmos nossas vidas, rotinas, escolas fechadas, perda de emprego, de esperança e de vidas humanas.
Aqui abordaremos um retrato de uma família americana de mãe brasileira e imigrante – a minha própria família. Como sou trabalhadora essencial em pesquisas genéticas, meu marido – Brian é quem fica em casa com as nossas três filhas aqui no estado de Washington, EUA.
Antes da pandemia, as duas meninas mais velhas, Anna e Abby (primeiro ano e pré-escolar) acordavam as 6 e meia da manhã e embarcavam no ônibus escolar às 7 horas. Ficavam na escola regular integral até as 15 horas, depois disso teriam aula de espanhol, piano ou natação até as 17 horas.
A Amy, ainda bebê, frequentava a baby-sitters de 4 a 5 dias por semana. Nos finais de semana, quase sempre, viajávamos em família. A mãe trabalhando fora e o pai em casa, mas seguindo com projetos ambientais e editoria acadêmica. Desde a metade de março, tudo mudou drasticamente.
Resolvi entrevistar meu marido, que tem Ph.D. em Engenharia dos Sistemas Biológicos, mas está 100% em casa cuidando das filhas há dois anos.
Optamos por ter um de nós ficar em casa com elas porque babás não são comuns nos EUA. Nos revezamos desde 2013 com a primeira filha Anna que ele cuidou por 1 ano, com a segunda filha Abby que eu cuidei por outro ano. Na terceira filha Amy, foi a vez dele novamente e, então, inesperadamente, veio a pandemia, seguida de recessão e crise. Situação posta: não posso parar meu trabalho e ele não pode recomeçar.
Como profissional da área ambiental, como você está vendo o Covid-19?
Brian – Ao longo dos anos, as pessoas foram destruindo habitats naturais e foram se alimentando de animais selvagens para sua sobrevivência, devido a pobreza econômica. É surpreendente a rapidez com que a pandemia cresceu, circulando pelo globo em poucos meses e está em quase todos os países do mundo. A velocidade é assustadora, não sabemos para onde estamos indo. Uma recessão econômica se seguiu.
A razão que a velocidade de contágio pelo Covid-19 é alta porque vivemos numa sociedade globalizada, os vôos são de fácil acesso. Quando o patógeno passou para o ser humano, se achou em novo hospedeiro. Quanto mais animais e pessoas interagem como nos mercados de carne, maiores as chances de novas doenças zoonóticas.
Quando o Covid-19 chega em algum novo lugar, em vez das pessoas se unirem contra o vírus, elas são xenofóbicas culpando outras etnias, os governantes brigando entre si, escondendo dados científicos e não compartilhando equipamento de proteção individual como máscaras, luvas e visores.
A OMS tem cientistas unidos para desenvolver uma vacina, mas os políticos brigam entre si. Até que o governante dos EUA anunciou a saída da organização, infelizmente tudo vira política.
E como pai, o que mudou na sua vida com o Covid-19 aqui nos EUA?
Brian – Na metade de março, começou o isolamento aqui. Nosso estado de Washington foi o primeiro a aparecer casos. Aqui ainda há contagio diário, mas tem outros estados em situação mais grave. Tem um presídio a 30 minutos daqui, com o maior número de casos ainda. O problema é que nem todos levam a sério, as máscaras são recomendadas, porém não são obrigatórias.
Desde a metade de março, não conseguimos encontrar mais desinfetantes no mercado. O papel higiênico que temos foi presente de diferentes amigos. As pessoas aqui ainda estão comprando no modo pânico, o álcool gel sumiu das prateleiras desde janeiro. Semanas de confinamento e isolamento. É desafiador que as crianças queiram sair, mas não é seguro lá fora. As crianças estão entediadas em casa.
Qual a situação educativa das crianças no momento?
Brian – As escolas estão fechadas. Embora eu tenha sido um educador no passado, eu não sou professor de ensino fundamental e eu também tenho que cuidar da bebê. Especialmente porque há 10 anos, neste país, eles mudaram a forma como a matemática tem sido ensinada, ficou mais difícil para quem aprendeu de outro jeito. A metodologia de como você aprende é diferente. Eu posso ensiná-las do jeito que aprendi, mas esse não é o sistema nas escolas atuais, então quando elas retornarem as aulas, isso será um problema.
Uma vez por semana, o distrito escolar envia um pacote com atividades de matemática e inglês para os alunos. Também recebo um e-mail uma vez por semana com um vídeo de ciências. Quase todas as tarefas enviadas para casa pela escola exigem atenção dos pais ou responsável. Não temos um faxineiro ou uma babá no momento porque não é seguro, devemos manter o distanciamento social.
No ensino em casa (homeschooling), o pai ou responsável toma a iniciação de escolher um currículo online e ensinar diferentes assuntos por 6 horas ou mais diariamente. Porém, na pandemia, o ensino regular tornou-se a distância, um ensino de casa. Os professores não fornecem mais do que 30 por criança por dia de atividades.
Neste país, cada Estado tem poder sobre a educação, não o governo federal. No nosso estado, fica a critério de distritos escolares regionais, sendo que o distrito dá poder a cada escola. Assim não há uniformidade. Então usamos pacotes de duas escolas, sendo que uma escola é mais avançada.
As escolas acabam por decidir por conta própria. Quando os pais reclamam, eles passam a culpa para gestores ou professores. Uma quantidade relevante dos pais nesse distrito escolar é considerada essenciais, têm que trabalhar o dia todo e não podem acompanhar seus filhos. Alguns não têm wi-fi em casa e a biblioteca está fechada. Então, basicamente, para algumas crianças, aqui a educação parou em março.
O maior desafio para mim é que as crianças iam à escola 6 horas por dia, e agora a escola fornece materiais que duram de 5 a 10 minutos por dia para minhas filhas sem completar ou dar maiores instruções.
Não há perspectiva de retorno de aulas presenciais. As aulas iniciariam no final de agosto aqui, mas já não há mais como saber. Infelizmente, 99% das crianças nesse distrito serão prejudicadas porque não estão aprendendo em todo seu potencial. Num total de 80-90% das crianças americanas correm esse risco. A menos que você tenha dinheiro para transferir a escolas particulares com tutores disponíveis (mas tutores presenciais também não são permitidos no momento).
Minhas esperanças são de que isso não durará pra sempre. A esperança de uma vacina que está em estudos de campo avançado. A pergunta aqui e quem irá utilizar e quanto custará essa vacina. Tem um movimento anti-vacina aqui e também existem algumas religiões que proíbem. Então, mesmo assim, haverá incertezas. Quando se alega princípios religiosos você não precisa se vacinar aqui.
Existe um número grande de pais que desistiram de ensinar os filhos nessa pandemia e eu entendo porque, realmente, não e fácil. O Covid-19 vai estar com a gente por um grande tempo, mas a vacina é uma proteção. O ponto positivo é que aqui entramos em férias agora e os pais podem descansar.
Você pode descrever sua nova rotina com o covid-19?
Brian – No começo, estávamos perdidos, tanto pais como professores. A minha rotina demorou quatro dias para ser elaborada, mas quando nos encontramos, ficou mais fácil.
Acordamos e como cada criança recebeu emprestado um computador laptop da escola, elas entram em jogos educacionais, tomam café da manhã e retornam aos jogos. Na metade da manhã elas trabalham nos pacotes escolares por 30 min. Então fizemos um intervalo e almoçamos. Depois do almoço é brincadeira livre, elas podem ir no pátio, brincar, ver TV até a mãe delas chegar do trabalho para, então, jantarmos juntos.
A bebê, nesse tempo, assiste as irmãs jogarem e durante as atividades escolares eu a carrego no colo enquanto oriento as outras duas meninas (uma em casa série). Depois do almoço, a bebê dorme por uma ou duas horas e daí eu tenho que limpar a casa, cozinhar e juntar os brinquedos. Durante meu dia há choro do bebê e rivalidade entre as irmãs, mas não o tempo todo. Depois que as crianças vão dormir, eu finalmente tenho algumas horas para ver um filme, editar artigos acadêmicos ou simplesmente aproveitar momentos de calma e paz.
A única diferença no final de semana é que não precisamos ter 30 minutos de instrução. Eu ou a mãe delas vai fazer compras, as crianças ficam com o outro adulto. Porém, até mesmo ir ao mercado, tornou-se estressante com covid-19. Há falta de produtos, as pessoas estão super estressadas ou não tomam precauções. Longas filas com espera de 30 a 40 minutos para entrar no supermercado. Isso tudo soma-se ao stress de ter que tentar conseguir comprar tudo o que está na lista para evitar voltas desnecessárias.
Pode mencionar algo sobre os protestos recentes no seu país?
Brian – Há um “bias racial” comprovado nesse país, em que as pessoas negras são vistas como ameaça a ordem (o que é absolutamente falso). No caso de George Floyd, houve uma reação inaceitável e “bias” dos policiais envolvidos, um por assassinato cruel e os outros por omissão de socorro colaborando com o crime. Outra pessoa foi morta simplesmente por estar correndo na rua. Isso vem acontecendo há décadas e nós atingimos o limite.
Eu apoio os protestos, mas não apoio violência e destruição. Também acho que deveriam utilizar máscaras porque estamos enfrentando uma pandemia.
Para encerrar, estamos entrando numa crise econômica jamais vista na história e caminhamos incertos quanto ao futuro. Aqui esperaremos as eleições em novembro e, talvez, alguma mudança se apresente.
Notas conclusivas
Encerro a entrevista com meu marido e confesso que estou um pouco anciosa sobre o futuro. Porém quero dizer que nós, pais e mães, devemos continuar a ser fortes e criativos. Por exemplo, nossa filha do meio, Abby, fez aniversário dia 18 de maio e sempre celebramos com uma festinha, o que é proibido devido a aglomerações e risco de contágio pelo covid-19.
As crianças estavam muito tristes com a situação e então tivemos a ideia de fazer uma drive-thru para comemorar. Montamos um pacote festa individualizado e personalizado para cada uma das famílias que são nossas amigas. Decoramos uma mesa e colocamos os pacotes na entrada da garagem. As famílias dirigiam em horários separados e pegavam seu pacote sem descer do carro e deixavam seus cartões ou presentes em outra mesa. As crianças assistiam à distância e vibravam a cada carro de convidados! A alegria durou até o outro dia no qual elas abriram os cartões e presentes. Gestos simbolizando abraços e carinho a distância foram expressos. Enfim, creio que devemos tentar encontrar a felicidade nas pequenas coisas em tempos de pandemia para que nossa saúde mental e física seja mantida.
O medo é legitimo, mas é como o paradoxo do copo com 50% de água. Alguns vão reclamar que o copo está incompleto e enxergar somente o 50% que faltam, afirmando que o copo está 50% vazio. Outros vão receber o copo alegremente e enxergar que há ainda água no copo e está assim 50% cheio.
Temos que agradecer pelo que temos e contar as nossas bênçãos, pois sempre haverá alguém enfrentando, ou que já enfrentou, dificuldades maiores que as nossas. Ter fé é preciso para superarmos nossos problemas, mas ter empatia é preciso para um mundo melhor. Quando eu puder ajudar outro ser humano (ou outra espécie), me torno um ser humano melhor.
“O que se pode esperar de uma criança da vila? Uma das possíveis respostas para essa pergunta é: “pode-se esperar o que essa criança quiser – o céu é o limite”. Apenas, mantenham essa criança viva e alimentada dentro de vocês pois essa criança aceita desafios, não tem julgamentos prévios ou preconceitos e, acima de tudo, ela possui a humildade e a alegria que devemos celebrar cotidianamente para a harmonia planetária”.