Percebe-se que muitos homens não conseguem conviver, para dizer o mínimo, com as conquistas e lugares ocupados pelas mulheres por se sentirem reféns das suas vidas ridículas. Presos à impotência do estado psíquico de ressentido, acreditam que eliminar, impedir, tolher é o antídoto ao destino de homem fracassado e diminuto.
Longe de apresentar uma tese que poderia responder/corresponder como modelo explicativo para o feminicídio, tendo em vista que a violência contra a mulher implica fatores que não podem ser negligenciados e, inclusive, assumem maior ou menor relevância em momentos e culturas distintas, quero oferecer uma pequena contribuição para tentar “compreender” esse fenômeno.
Atenho-me a constatação de que as transformações histórico-culturais, as conquistas femininas, os avanços tecnológicos e epistêmicos que liberam a mulher de certos paradigmas, por exemplo, se de um lado pactuam uma condição social mais equânime entre homens e mulheres, por outro, são insuficientes para deter a escorchante violência praticada a cada segundo contra as mulheres.
A minha questão é tentar entender como e apesar dos avanços e independente do nível cultural e intelectual, homens são capazes de violentar e matar mulheres. Como já referido, há muitos aspectos que devem ser levados em conta, mas tenho pensando na estreita relação entre ressentimento e feminicídio.
A temática do ressentimento é um dos pontos nevrálgicos da filosofia de Nietzsche, permeando a cultura ocidental por meio de uma axiologia própria, cadenciando uma disposição psíquica padecente e passiva. O estado psíquico do ressentimento responderia, de acordo com Nietzsche, pela decadência da vitalidade humana.
O indivíduo ressentido é incapaz de criar valores afirmativos da existência, pois “Ao sofrer uma ofensa, tal indivíduo, impotente em reagir efetivamente, desenvolve no seu íntimo o anseio por uma reparação imaginária, motivada pelo sentimento de vingança. O ressentido sofre de enfraquecimento da vitalidade, e perde qualquer tipo de vínculo efetivo com a realidade” (BITTENCOURT, p. 1, 2009)
A “moral dos escravos”, que seria própria da condição do ressentimento e que prevaleceu na civilização ocidental, – muito em razão da moral cristã que inverteu os valores ativos pelos decadentes -, desentranha-se como uma espécie de incapacidade dos indivíduos para interagir com as diferenças e com os antagonismos, atribuindo ao outro a responsabilidade pelo seu fracasso ou decadência. Incapaz de responder ativamente a estímulos externos, acaba assimilando negativamente a experiência, deixando de agir efetivamente.
Escravo desse sentimento em que se sente cada vez mais ensimesmado e reagente ao mundo, o indivíduo desentranha-se imobilizado e avesso aos outros, responsáveis pelo seu insucesso. No caso, escravo do ressentimento, o homem ressentido busca, através da violência praticada contra a mulher, uma espécie “de reparação imaginária, motivada pelo sentimento de vingança”, entre outros, por ocuparem, as mulheres, um lugar (família, sexo, prazer, política, trabalho, etc.) que “seria” seu por “natureza”. Pelo interior de um registro psíquico, uma atração por aquilo que causa repulsa, sofrimento.
Claro que se trata de uma breve apresentação de uma tema caro e complexo que deve ser tratado com o máximo rigor teórico, mas percebe-se que muitos homens não conseguem conviver, para dizer o mínimo, com as conquistas e lugares ocupados pelas mulheres por se sentirem reféns das suas vidas ridículas. Presos à impotência do estado psíquico de ressentido, acreditam que eliminar, impedir, tolher é o antídoto ao destino de homem fracassado e diminuto.
Autora: Marli Silveira
Poeta e escritora. Acadêmica da Academia Rio-grandense de Letras. Também publicou no site a reflexão “A banalidade do mal”: https://www.neipies.com/a-banalidade-do-mal/
Edição: A. R.