Pennac diria: “é preciso dar de farejar a uma orgia de leitura”. Monteiro afirmou: “um país se faz com homens e livros”. E eu vos digo: “salvem o prazer de ler!”
Adentro ansioso o portão do local. Situada dentro de uma escola, a biblioteca municipal está resplandecente. Tudo fora preparado com muito zelo naquele espaço diminuto, mas cheio de vida, para que eu, o contador de histórias, pudesse realizar meu trabalho. Cada detalhe devidamente pensado por minha amiga Nilva.
Nilva, de sobrenome Belo, de vocação docente, cuja missão é contar histórias, é uma companheira que conheci em um festival. Ela, do interior goiano; eu, do planalto gaúcho. Uma verdadeira vencedora em sua vida, dizia-se salva pelos livros. Ultrapassara as condições adversas nas quais havia nascido e, por meio do estudo e da dedicação constante, tornara-se professora e, àquela época, coordenava o programa municipal de livro e leitura da cidade de Alexânia, em Goiás. Foi essa a mulher de trajetória intensa que me acolheu naquele lugar.
Um dos grandes feitos de minha amiga foi ter provocado, em seu município, uma mudança de paradigma. Sabedora da importância da leitura, começou a se questionar como poderia fazer de suas aulas mais atrativas. Foi o ponto de partida para a carreira de contadora de histórias, desenvolvida em um carinhoso projeto chamado Leiturégua – Carroça da leitura, que levava em uma carroça a magia dos livros a diversos cantos. Sua figura irreverente e questionadora conseguiu um feito e tanto: a abertura de duas bibliotecas públicas em âmbito municipal. Uma grande vitória.
Sob esse contexto de um lugar extremamente atencioso com a causa da leitura que me inseri. Meu segundo livro nascera lá, no coração do Brasil, terra de Cora Coralina, e por intermédio de Nilva fui pela primeira vez ao estado para contar histórias. Estava ansioso não apenas para partilhar as narrativas que conhecia e as que eu já havia escrito, como também para reverenciar a movimentação corajosa dos defensores da leitura.
Ao entrar em contato com eles, senti-me em casa. Todos nós, ali, já havíamos viajado muitas vezes para os mesmos lugares, pelas páginas de um livro. Tratava-se, portanto, de uma conexão entre velhos companheiros.
A escrita acima é mais retórica do que qualquer outra coisa, reconheço. O foco da reflexão vem agora.
Era o meu dever, porém, falar dessa experiência, de minha amiga, dessa gente. Principalmente para fazer entender algo de grande relevância: a leitura e sua defesa podem brotar de qualquer lugar. E pessoas comprometidas podem, por conta própria, dar vida a esse apelo, encamparem projetos, moverem iniciativas, fazerem a diferença. Afinal de contas, há um cenário bastante preocupante no que diz respeito ao Brasil leitor.
Segundo informações do Instituto Pró-Livro, em seu tradicional estudo Retratos da Leitura no Brasil, a média de livros lidos pelos brasileiros, em 2019, foi de aproximadamente 5 obras, sendo apenas 2,5 lidas inteiramente. Na média geral, averiguada pelo instituto com os entrevistados, apenas 8% das pessoas leem todos os dias, 12% leem ao menos uma vez por semana e 54%, por exemplo, simplesmente não leem. Entre os leitores de literatura, apenas 38% leram o último livro por gosto.
Se não quisermos nos aprofundar nos números, basta olharmos a realidade próxima. Em meu trabalho como artista da palavra, estando em contato com inúmeras escolas de toda parte, não raro encontro locais com bibliotecas abandonadas, onde falta efetivo de profissionais para cuidar desses espaços, fora o descaso com o material riquíssimos que muitas delas possuem. Ora, se no espaço dedicado à educação e ao conhecimento não há esse estímulo, é sinal de um desvio muito grande na condução daquilo que se almeja como sendo uma formação humana e social de qualidade.
Agora, é preciso tomar parte desse desafio no cotidiano. É preciso ler e compartilhar livros, independente do lugar. Falar de leituras, espalhar obras pela cidade, formar clubes de leitura e debates. Começar de baixo; primeiro em casa, depois em comunidade, dentro do próprio bairro. É preciso que os pais leiam, mas que os professores também o façam. Somente na chamada orgia de leitura, propagada por Pennac, é que se poderá encontrar um caminho para que comecemos a modificar as nossas vidas.
Os livros mudaram Nilva. Nilva, empenhada, ajudou a transformar uma comunidade. O Bartolomeu Campos de Queirós, famoso escritor infanto-juvenil já falecido, criou o Movimento por um Brasil Literário. Diversas pessoas, famosas ou anônimas, estão se movimentando.
Acreditam na palavra. Acreditam no potencial do ser humano. É nessa gente que devemos nos espelhar. Como diz a sabedoria popular, uma andorinha só não faz verão. E também, ainda parafraseando o povo, é junto dos bão que nós fica mió.
Falando nisso, estou mergulhado na leitura de Ortodoxia, de Chesterton. E você? Quais são as tuas novidades literárias?
Autor: Gabriel Cavalheiro Tonin (Gabito)
REFERÊNCIAS
Retratos da Leitura no Brasil. In: www.prolivro.org.br