… Sempre no cio

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As estratégias para o enfrentamento do fascismo não contam unicamente com recursos centrados no discurso argumentativo, precisarão de estratégias de mobilização de afetos.

Ainda que aquele que dirigiu sua instalação no aparelho de Estado e que colaborou para que se expressasse com força na sociedade brasileira viva seus últimos e penosos dias de presidência, se o fascismo está “sempre no cio”, cabe muito mais do que celebrar esta derrota eleitoral e política estando desafiados a imediatamente construirmos caminhos de resistência permanente e de ação sistemática para uma vez mais derrotá-lo e reduzi-lo à convivência com os “cães de sua laia”, ao mínimo possível deles, neste ano em que é também do centenário da triste memória da Marcha sobre Roma (28 Out 2022) e no qual o povo brasileiro imprime um revés significativo ao fascismo à brasileira.

Não é momento de acreditar que tudo está resolvido. A extrema direita saiu fortalecida das eleições, o Congresso abrigará muitos de seus representantes mais ativos nos últimos anos e o agora já praticamente ex-mandatário também estará em ação (com qual legitimidade e força, ainda a ver).

A frase que é o epílogo da peça “A resistível ascensão de Arturo Ui”, de Bertolt Brecht: “A cadela do fascismo está sempre no cio”, faz lembrar que as práticas fascistas, as antigas e as atuais, patrocinadas pela extrema direita, não cessam e dificilmente serão eliminadas completamente. Ademais, bastaria que sejam criadas condições e retornam com força, particularmente em momentos de profunda crise e de falta de perspectivas coletivas fica como possibilidade para “salvar” o capitalismo, quando a democracia já não lhe favorece.

No mundo todo, estamos num momento no qual estas características estão presentes, com variações e forças nos mais diversos lugares, inclusive no Brasil.

A frase de Brecht lembra, todavia, que o modo do fascismo é antinatural, visto que o cio é uma realidade temporária na vida das cadelas, por volta de duas vezes ao ano. Seria, portanto, cíclico. Ao dizer que “está sempre” nesta condição de disponibilidade para acasalamento, alerta que o fascismo é um artifício fabricado como forma de organização e ação.

Sua presença, ainda que permaneça à espreita para retornar a cada tempo, não está sempre protagonista. E mais, se permanecer vigente como disponibilidade efetiva é porque estão criadas condições não naturalmente disponíveis para tal. Seria o caso de um “fascismo eterno”, ainda que nem sempre vigente em termos hegemônicos? E se assim o é, também haveria de ser a ação contra ele: precisará estar permanentemente vigilante e em resistência organizada.

O segundo aspecto presente na frase de Brecht é que o fascismo é comparado ao “cio”, um momento próprio no qual a cadela está disponível e desejosa de acasalamento. A comparação metafórica remete para o fascismo como uma experiência erótica, do campo do desejo, mais do que uma posição estritamente sócio-política e sustentada em bases racionais. Tem sim uma racionalidade, talvez uma das expressões mais perversas dela, mas não só. A dimensão erótica é, desde há muito, conhecida como importante para a vida social e política. Já está bastante documentada e estudada.

As estratégias para o enfrentamento do fascismo não contam unicamente com recursos centrados no discurso argumentativo, precisarão de estratégias de mobilização de afetos. Há uma subjetividade moldada ao fascismo e modelada pelo fascismo, uma subjetividade fascista, que passa pela “personalidade autoritária”, mas não só, também pelo lugar paradoxal da “ilusão” na vida em sociedade.

E entender isso não significa reduzir a abordagem do fascismo a uma questão estritamente individualista ou moralista. Requer que se tenha em conta estas dimensões, sem as quais a crítica ao fascismo poderá chegar à boas explicações, mas ainda insuficientes.    

As cadelas, assim como todos os animais, são seres com dignidade, aquela própria a seu modo de ser animal, e talvez não merecessem ser, nem metaforicamente, tratadas como portadoras do fascismo. Por isso, com a devida vênia, as cadelas nos ensinam, a nós humanos, que enfrentar o fascismo exige construir estratégias de denúncia sim, das práticas machistas, misóginas, patriarcais, racistas, lgbtiap+fógicas, normalistas, enfim, todas as práticas desumanizadoras, patrocinadas por ele.

Mas exige ir muito mais além e identificar as raízes que levam à sua adesão e que, certamente, entre elas está não aceitar que aqueles/as humanos/as, sempre tidos por “quase humanos” ou até “não-humanos” permaneçam não sendo incluídos na humanidade, num supremacismo escondido numa versão distorcida dos “melhores” que faz da aristocracia e da plutocracia o modelo de convivência (não compatível com a democracia popular).

Esta raiz está sempre junto com outra que é a que o capitalismo soube e segue sabendo valorizar demais, que é a concentração cada vez maior da riqueza pela expropriação dos bens comuns (os da natureza e os da sociedade).

A acumulação privada “pelos melhores”, aqueles “que merecem”, justifica que a desigualdade e a exclusão sejam aceitáveis e legítimas. Mais, que toda iniciativa de promoção da igualdade, da justiça social, da equidade… sejam vistas como ataques à ordem “natural” e exijam reações fortes, se necessário violentas, para mantê-la.

O ódio aos pobres (aporofobia), o ódio de classe, o ódio ao/à outro/a, é necessário, para enfrentar e eliminar o “inimigo maior” (o comunismo, o socialismo, os demônios…). Mas, retornando a Brecht, assim como o fascismo, ele não é natural. É intencionalmente produzido para guardar os “privilégios” e impedir o avanço do “todos/as”.

Querer um mundo no qual o fascismo, ainda que em cio, esteja controlado pela convivência social e por orientação política, requer reafirmar o “todos/as”, próprio de um universalismo de novo tipo, um pluriversalismo, no qual a diversidade da condição humana, que reconhece a cada singularidade como humanidade e a humanidade com presença em cada singularidade, sem que qualquer tipo de restrição moral, racial, sexual, geracional… se interponha como determinação condicionante para o exercício da vida em sociedade, a vida em comum.

Assim que, recolocar na agenda a igualdade e a não-discriminação como tarefa primeira da ação social e política é fundamental para enfrentar o fascismo.

Junto com elas, o compromisso para que sua realização seja dada em bases democráticas com a mais ampla participação direta, dado que direitos não se realizam nem por representação e nem por procuração. Isso não significa desconsiderar que vivemos em sociedades cada vez mais massificadas nas quais as práticas de reciprocidade podem já não ser suficientes. Por isso, a reconstrução dos espaços de participação direta exige que novas formas de proximidade sejam implementadas, sem o que, a indiferença e a apatia se alimentarão e alimentarão o fascismo.

Mascaro, em Crítica ao Fascismo, lembra que “[…] a maior parte das críticas ao fascismo, ao não alcançar a materialidade de suas causas, contribui para sustentar as condições de possibilidade e reafirmação de tal existência” (2022, p. 13). Alerta para as críticas liberais e as moralistas, insuficientes, nesse sentido.

Compreender o fascismo e enfrentá-lo requer identificar as bases de sua estreita relação com a reprodução do capitalismo, daí que reformas morais ou institucionais para seu enfrentamento sempre ficarão muito aquém do que é necessário para tal. Mas, elas não poderão ser dispensadas, ainda que precisem fazer parte de uma agenda de transformações muito profundas e radicais da vida em comum.

O desafio de fazer a crítica radical por “alcançar a materialidade de suas causas” é o que se coloca com principal agenda para os/as que acreditam que este não é um combate pontal, simplório ou circunstancial… pelo contrário, acreditam que fazê-lo é somar esforços para avançar na transformação profunda da realidade social, econômica, cultural e política.

Esta crítica é obra do discurso e da elaboração teórica, mas terá que ser também ação concreta e que chegue aos cotidianos dos mais pobres, sobretudo daqueles/as que seguem “engambelados” por falsas promessas.

Autor: Paulo César Carbonari

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