O escritor, as crônicas e os acontecimentos
Refletindo sobre o nascimento de um escritor, é evidente que não se pode pensar no seu parto, feito naturalmente ou através de cesariana. Muito menos na ideia de que ele já nasceu com o dom de escrever. Ou pior, que escreve por ter a graça da divina inspiração. Porém, o que se pode afirmar é que o escritor nasce no momento em que se torna leitor de múltiplos textos, especialmente os literários. Ainda buscando afirmação como escritor, dirige-se ao saudoso escritor gaúcho Moacyr Scliar para obter dele um retorno positiva sobre seus textos. A expectativa vem positiva e elogiosa:
– Meu caro Nei! Obrigado pelo e-mail, por sua apreciação e pelos textos que me enviaste. Li a todos com muito prazer. Tens a vocação do cronista, que fala de coisas que interessam a todos, numa linguagem elegante, mas acessível. Parabéns!
De minha parte, lendo, relendo e trelendo os textos do Nei, pude confirmar que o novel escritor não navega sozinho pelo vasto rio da cultura literária, pois seus contos e crônicas estão repletos de epígrafes, citações diretas e indiretas de fragmentos produzidos por escritores, filósofos, poetas, educadores, políticos, cientistas, sites e pessoas que conheceu nos locais de trabalho.
Os textos de Nei, portanto, estão de mãos dadas com as escrituras de Paulo Freire, Rubem Alves, Lya Luft, Cervantes, Gandhi, Martha Medeiros, Gonzaguinha, Saramago, Eduardo Galeano, dentre tantos outros. Nesta perspectiva, seu processo de produção da escrita pode ser visto como resultante de leituras previamente efetuadas por um sujeito leitor, que reescreve seus textos do ponto de vista do dialógico – prosa que estabelece com seus antecessores – alimentando-se das sugestões, formas e estruturas já elaboradas pela tradição literária. Portanto, sai a noção de originalidade e entra o conceito de subjetividade. Não existe inocência, assim como não existe neutralidade.
Sob este ponto de vista, cada novo texto é feito de saberes antigos e fragmentados. Eles vêm descendo pelo colossal rio da memória cultural e literária, lidos e avaliados por leitores, os quais nunca são os mesmos, assim como os rios, como ensinou o filósofo Heráclito de Éfeso.
O procedimento “fágico” dos escritores renova-lhes a capacidade de recriar os textos clássicos – canônicos – como ensina Harold Bloom. É acertado, então o que Augusto Mayer sugere a respeito do procedimento machadiano – extensivo também ao texto do Nei: “…esse profundo bucho de ruminante, que todos trazemos na cabeça e onde todas as sugestões, depois de misturadas e trituradas, preparam-se para uma mastigação, estranho quimismo…” Nei, prioritariamente, navega pelo rio das crônica, feito um lutador, como poetiza Drummond:
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas tão fortes
Como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse,
Teria poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
Apareço e tenho
Apanhar algumas
Para o meu sustento.
Nei Pies optou escrever através do gênero crônica, embora também tenha escrito alguns contos. A crônica conta um fato comum do dia a dia, relatando a vida real das pessoas e dos acontecimentos sociais. O conto narra uma história ficcional, tendo comumente personagens, marcas de tempo e espaço, estruturados a partir de uma situação inicial, complicação, clímax e desfecho. A finalidade do conto é demarcar histórias que não são do dia, ou de um certo dia, mas as que têm sentido e sabedoria. Essa praticidade tem atraído leitores de todas as idades e níveis intelectuais, inclusive aqueles que não têm o costume de ler, ou que ainda estão começando a adquirir o gosto. Entretanto, a finalidade da crônica é registrar, de forma criativa, os acontecimentos cotidianos. Eles são de ordem histórica, política, social. Não constituem textos densos. Por isso o gênero é bem aceito nos diversos meios de comunicação. É tão comum ler nos jornais e revistas crônicas esportivas, sociais, políticas e filosóficas. Buscam refletir sobre os acontecimentos atuais. A propósito, Nei cita um dos últimos pronunciamentos do romancista português José Saramago: “Falta-nos reflexão, pensar. Precisamos do trabalho de pensar. Parece-me que, sem ideias, não vamos à parte nenhuma”.
Refletindo sobre seu tempo, Nei tece seus textos, trafegando pelos grandes e pequenos acontecimentos, vindo desde os episódios da infância, passando pelos acontecimentos de ordem política e histórica do Brasil, sem esquecer dos episódios que o marcaram em seus trabalhos de engajamento social, tipo Mulheres da Paz. Imbricadas entre si, as crônicas do Nei lembram um rio, talvez o Uruguai, onde os pequenos acontecimentos, uma vez juntados, nos dão a exata noção da força, grandiosidade, beleza e os saberes, advindos da rara e difícil arte de escrever. Leitor, apresento-te Nei, o cronista que luta com as palavras, procurando pensar e compreender o contexto na companhia de seus leitores.
Eládio Vilmar Weschenfelder
Professor de Literatura na Universidade de Passo Fundo
* Texto publicado na Apresentação do livro Conviver, educar e participar: nos palcos da vida, de Nei Alberto Pies (Passo Fundo, Editora IFIBE, 2014)