A vida se equilibra,
saudavelmente, entre fé e dúvida.
Quando a fé aumenta, diminui a dúvida, e,
quando a dúvida aumenta, diminui a fé.
Recordo, como se fosse hoje, mas já se passaram trinta e três anos, de uma cena que dá o que pensar. Eu estava voltando da universidade, à noite e, no caminho, entre a universidade e a parada do ônibus, havia uma igreja aberta e decidi entrar.
No exato momento em que entrei estavam sendo distribuídos envelopes para a oferta e, o pastor, no alto de sua técnica persuasiva, utilizou um único argumento de motivação para despertar a generosidade dos fiéis. Ele dizia: a dúvida é a presença do diabo na vida da gente. Quem estiver com dúvida não precisa colaborar com Deus…! Repetiu o mantra umas três vezes e parou…! Os envelopes foram passando e, em seguida, recolhidos…! Acho que só eu não fui generoso, naquela noite…! E não foi por falta de fé, ou por estar endemoniado.
Cuidado: não há nada de errado em ser generoso com a igreja, até pelo contrário, a generosidade é uma das melhores virtudes humanas.
A fé, também, é uma virtude, uma das três virtudes teologais.
A fé, também, é uma virtude, uma das três virtudes teologais, mas a dúvida não é um vício diabólico. Insisto: a dúvida não é a presença do diabo na vida da gente. A dúvida é irmã gêmea da fé e lhe presta um auxílio inestimável a fim de que não seja terreno fértil para aproveitadores.
A fé não nasce da dúvida e nem a dúvida nasce da fé, mas ambas são filhas da mesma mãe: o mundo da vida. A vida se equilibra, saudavelmente, entre fé e dúvida. Quando a fé aumenta diminui a dúvida e quando a dúvida aumenta, diminui a fé. Ou será que quanto mais a fé aumenta, mais a dúvida também aumenta e quanto mais a dúvida aumenta, a fé também aumenta? Fica a dúvida!
Contudo, o certo é que uma não vive sem a outra, como a cara necessita da coroa para ser moeda.
Não pretendo, contudo, falar da dúvida, mas da fé, apesar da dúvida.
A fé tem seu habitat natural nas religiões, todavia, a fé é uma experiência humana importante demais para ser deixada somente para os profissionais das religiões.
Antes da fé religiosa, que em alguns sequer se manifesta, ocorre a fé antropológica, isto é, a fé em si mesma e nos outros. Uma não se opõe a outra, pelo contrário, se complementam e se retroalimentam.
Há uma dialética frutífera ou um círculo virtuoso entre fé antropológica e fé religiosa. A fé antropológica favorece a fé religiosa e a fé em Deus fortalece a fé no humano.
Por uma questão de método, quando nos aventuramos conversar sobre a fé, deveríamos começar pelo cotidiano da fé antropológica e, só depois, falar da fé em Deus, para proceder do elementar ao complexo, do mais evidente ao mais misterioso, do antropológico ao teológico.
Sem fé em si e nos outros, na vida cotidiana, acabaríamos por adoecer. Se alguém descrê de si, não crê ser capaz para nada e desconfia da própria sombra, que se pode esperar? A fé em si mesmo é a mais primária e genuína atitude de uma biografia saudável. Mas, saudável é, também, a fé que depositamos no outro, sem a qual nos tornamos paranoicos.
Sim, o contrário da fé não é a dúvida, mas o medo e o medo leva à paranoia. Não queira viver ao lado de um paranoico, não é uma experiência edificante. O paranoico vê inimigo e perigo lá onde inimigo e perigo não há. O universo mental e psicológico de um paranoico é povoado por conspiradores por todos os lados. O medo paranoico é doentio, a fé e a confiança, saudáveis.
Na vida cotidiana, se de tudo tivéssemos medo, não tomaríamos o ônibus, pois, quem nos garante que o motorista não seja um terrorista disposto a nos queimar vivos? Se fôssemos movidos pelo medo, então não comeríamos num restaurante ou mesmo em casa, pois a cozinheira pode não ter acordado de boa fé e decidido temperar, com veneno, a saborosa comida. Alguém subiria em um avião se tivesse medo paranoico? Duvido. O amor entre duas pessoas seria possível se um tivesse medo e a suspeita, permanentemente, do outro? No começo e no fim do amor está a fé no amor. Nem a obra do amor, como nos diz Kierkeggard, é prova suficiente do amor. O amor se revela na obra, mas a obra pode enganar e, por isso, é preciso crer no amor.
Há risco? É óbvio que há, é da condição humana. Apesar do risco, contudo, cremos. No começo está a fé que vence o medo, mas, cuidado, a dúvida acompanha, saudavelmente, a fé como um anjo bom, nos alertando e protegendo do perigo!
O que vale para a fé humana, vale também para a fé religiosa, a fé em Deus. E até mais, pois a Deus ninguém viu. Se há risco na fé humana, imagine na fé em Deus! Há muitos indícios para crer, mas crer continua sendo um salto no escuro.
Em algumas coisas é fácil crer, por exemplo, que a paz, o amor, a fraternidade, o perdão e a comunidade são divinos, quem duvidará disso? Mas crer que Deus existe e é trindade eterna, que Jesus é Deus, que a ressurreição dos mortos é o destino de todo humano vivente, que Deus pode intervir na natureza e fazer milagres etc., é fé em estado puro. Contudo, é melhor continuarmos acreditando, apesar do risco e da dúvida. Afinal, como diz o apóstolo Paulo, a fé é a certeza do que não vemos e uma posse antecipada do que esperamos.
Note bem, a dúvida é saudável e é divina. O que é doentio é o medo paranoico. Duvidar de Deus não nos torna doentes e diabólicos, mas se tivermos medo de Deus e nele não depositarmos a confiança e, ao invés de cremos no seu amor e misericórdia, vivermos com medo do seu castigo, adoeceremos espiritualmente, com certeza.
A fé sem a dúvida nos fanatiza.
O pai da fé, Abraão, é prova disso. Engana-se quem pensa que Abraão era um tonto e um fanático. A fé de Abraão não se mede pela disposição de matar o filho, se preciso for, mas pela decisão de não matar o filho, sabendo que isso era o desejo de Deus. Mas, como sabia que esse era o desejo de Deus? Pela fé dos que acreditam na vida e não na morte. Abraão ouviu dois mandatos, um dizia: mate o filho. Desse ele duvidou. Outro dizia: não lhes faça nenhum mal. Nesse ele acreditou.
A sua fé foi contra tudo e todos, pois a tradição era de sacrifícios humanos. Abraão rompe a tradição, diz não à morte obedecendo o anjo que lhe pede para não sacrificar e por isso mesmo se torna o pai da fé. Quando se fala da fé de Abraão, portanto, não é qualquer fé, sobretudo não é a fé do fanático e do tradicionalista, mas a fé no Deus vivo e da vida, isento de sacrifícios humanos, essa é a fé de Abraão.
De qualquer forma e, apesar de tudo, a melhor atitude ainda continua sendo do pai do menino epilético endemoniado que procura Jesus para que este o ajude. Diz o pai: “se tu podes, ajuda-nos, tem compaixão de nós”. Ao que Jesus responde: “Se tu podes!… Tudo é possível àquele que crê!” Imediatamente, o pai do menino gritou: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade! ”
A fé é uma certeza do que não vemos e posse antecipada do que esperamos. Mas, para não virarmos fanáticos fundamentalistas é melhor rezar, dia após dia: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade”!