Sobre a Potência da Docência

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Sentimos necessidade de fazer um grande elogio à docência, uma ode à professora e ao professor, ajudando a superar argumentos inibidores em relação à profissão docente.

O que é preciso para melhorar a qualidade da educação escolar? Certamente, esta pergunta já foi feita milhares de vezes, e não pretendemos ter uma resposta definitiva, até porque esta resposta não existe, em função do movimento, do fluxo do real. É sempre uma aproximação.

Antes de tudo, cabe indagar: de que qualidade estamos falando? Entendemos que Educação de Qualidade Social/Democrática é aquela que, pautada num Projeto Humanizador, é visceralmente comprometida com o direito à Aprendizagem Efetiva, ao Desenvolvimento Humano Pleno, na perspectiva do Bem Comum, e à Alegria Crítica (Docta Gaudium), por parte de cada um e de todos os educandos, através da apropriação Crítica, Criativa, Significativa e Duradoura dos Saberes Necessários (conceituais, procedimentais e atitudinais-Proposta Curricular) visando a potencialização da Consciência, do Caráter, da Cidadania e da Formação para o Trabalho, pautada na Solidariedade, na Autonomia Crítica, na Justiça Social, na Paz e na Responsabilidade (por Si, pelo Outro e pelo Planeta).

Comumente, quando perguntamos sobre o que é preciso para melhorar a qualidade da educação escolar, três elementos são destacados.

1.Condições de Trabalho do Professor (salário, plano de carreira, concurso, número de alunos em sala, trabalho coletivo constante, gestão democrática, instalações e equipamentos adequados, quadro funcional completo, material didático, interação com a comunidade, inclusão, Projeto Político-Pedagógico, superar a rotatividade do grupo, a neurose da avaliação externa, o excesso de burocracia, etc.)

2.Formação do Professor, inicial e continuada (Saberes da Realidade; Saberes Éticos, Políticos, Estéticos, Filosóficos, Afetivos; Saberes da Atividade Humana; Saberes da Área de Conhecimento; Saberes da Profissão Docente; Saberes Pedagógicos, trabalhados de forma integrada e interativa, articulada à realidade – Práxis)

3.Prática Pedagógica (basicamente, superar o currículo disciplinar instrucionista e a avaliação classificatória e excludente)

Essas exigências, com toda certeza, são absolutamente fundamentais! Todavia, temos sentido falta de uma outra exigência, a nosso ver tão ou, em alguns casos, até mais relevante que estas.

Potência da Docência

Trazemos aqui uma categoria que não tem estado presente nas análises que circulam nos meios educacionais, tanto no âmbito da escola, como da academia. Trata-se de uma quarta exigência para a melhoria da qualidade da educação escolar que estamos denominando Potência da Docência. Na mesma franja de significação, podemos citar: boniteza da docência, dignidade da docência, sentido da docência, valor da professora e do professor, valor da docência, subjetividade da docência, grandes alegrias da docência, importância, relevância, magnitude, grandiosidade, imprescindibilidade, papel, potencialidade, poder da docência

Perguntamos: que sentido tem a mudança das condições de trabalho, da formação e da prática pedagógica para alguém que não quer ser Professor? Pode haver uma preocupação geral em relação ao futuro da nação, da formação das crianças, etc., mas nada que seja de cunho mais profundo, um apelo pessoal, existencial.

A valorização da atividade docente por parte da Sociedade é muito importante, até para que, no limite, as três exigências apontadas acima sejam cumpridas. No entanto, não adianta a Sociedade valorizar a docência se o próprio professor, ou aquele que está se preparando para ser professor, também não valorizar, não ver sentido, enfim não querer ser professor. Esse é um elemento decisivo, uma exigência absolutamente fundamental.

Por exemplo, mudar a metodologia de trabalho de pouco adiantará se o professor não estiver comprometido (ou seja, se não tiver amor) com a efetiva aprendizagem de cada um e de todos os alunos! De que adianta oferecer uma sofisticada formação para quem não quer ser professor? De que adianta ter um bom salário, poucos alunos em sala de aula, para alguém que não vê sentido na docência? Pode se manter no emprego, em função das boas condições, mas, digamos assim, “não entrega a alma”, não se compromete profundamente com a aprendizagem efetiva, o desenvolvimento humano pleno e a alegria crítica/docta gaudium de cada um e de todos!

Não queremos, de forma alguma, estabelecer uma dicotomia entre a Potência da Docência e as demais categorias de análise. Neste sentido, poderíamos interrogar: de que adianta o muito querer ser professor se as condições materiais, a formação e a possibilidade fazer um trabalho diferenciado lhes são negadas? Insistimos: não se trata de uma coisa ou de outra, mas de uma coisa e outra, em movimento dialético de superação por incorporação, avançando mais, na nova direção, onde for possível, sem perder a perspectiva de conjunto. Como dizia Hegel, a verdade é o todo!

O que desejamos propor é que esta quarta exigência, a Potência da Docência, seja incorporada quando pensamos no processo de melhoria da qualidade da educação escolar, isto é, que seja levada em conta, junto com as demais exigências, como fator decisivo para a melhoria da qualidade!

Utilizamos propositalmente o termo Potência, em princípio um tanto provocativo, para chamar a atenção a um grande problema, a um grande vazio nas análises e a uma grande necessidade de o professor desenvolver ou resgatar sua autoestima, de tomar consciência de sua relevância histórica e cultural. Vale lembrar que a Potência implica tanto a capacidade de realizar suas potencialidades, de transformar-se, quanto a de exercer o poder, sua capacidade de agir, influenciar, interferir, transformar.

Nos dias correntes, temos notícias de muitas situações de professores e professoras que estão em processo de desistência, além de muitos outros que já desistiram, mudando de profissão ou dando “graças a Deus” por terem se aposentado (fazendo questão de divulgar nas redes sociais). A falta de interesse dos jovens pela profissão docente é outro indicador extremamente preocupante. Nos induziram a desacreditar de nós mesmos, do nosso valor, de nossa importância, do nosso poder, de nossa capacidade de provocar mudança.

Sentimos necessidade de fazer um grande elogio à docência, uma ode à professora e ao professor, ajudando a superar argumentos inibidores em relação à profissão docente.

Há um certo costume de se afirmar uma pretensa tautologia de que a “a realidade é a realidade”, especialmente por alguns setores conservadores, que não desejam a mudança. Certamente, existem elementos bastante objetivos da base material da existência.

Por outro lado, sabemos que não temos acesso, digamos assim, à absoluta essência da realidade, que a visão que cada um tem é sempre uma construção, que pode/deve se aperfeiçoar no confronto com a dos demais. O que percebemos é a representação mental que muitos professores têm está muito marcada pela desvalia. Esta representação tem, certamente, um fundamento na vivência, já de um bom tempo, de tantos professores de um cotidiano escolar com muitas marcas de degradação e desrespeito. O sentimento de muitos é mesmo o de impotência, insignificância e desejo de desistência.

Ora, a constituição desta representação, além de elementos objetivos da realidade, tem também uma carga subjetiva marcada por ideias que acabam se tornando argumentos inibidores: conhecimento atualmente se tem em qualquer lugar (reforçado recentemente pelos avanços da Inteligência Artificial); que quem aprende é o aluno, donde se deduziria que o professor é dispensável; que o aluno fica apenas 4 ou 5 horas na escola, e que o que lá é feito é logo desfeito pela família ou sociedade; que a escola não tem os recursos tecnológicos capazes de encantar as novas gerações, etc. Estes argumentos, marcados por visões parciais, por meias verdades, uma vez assumidos pelos professores, minam sua potência!

Como qualquer atividade humana, a docência também é marcada por limites, falhas, contradições. Mas isto tem sido bastante dito e divulgado tanto pelos canais de WhatsApp dos familiares, pelas redes sociais, por uma certa mídia safada que só mostra os problemas das escolas (especialmente as públicas), ou mesmo a perseguição aos professores por governos neofascistas. Queremos aqui, justamente, fazer um contraponto!

Deixamos claro que a ênfase que estamos dando à Potência da Docência não é para um eventual reforço da imagem do professor como o grande demiurgo, o destinatário final da prática educativa escolar.

O fortalecimento da potência do professor é para que possa exercer, de fato, seu papel de mediador, fazer a articulação entre alunos, conhecimentos e realidades, qual seja, a centralidade não está nele (instrucionismo), nem nos alunos (escolanovismo), e sim nas relações que estabelecem em vista de um projeto, da construção de algo melhor, para os alunos e para o mundo (e para ele também, certamente, tanto no imediato – prazer, alegria, realização, sentido – , quanto no longo prazo, enquanto parte da Humanidade).

Focamos no professor inicialmente, de forma estratégica, não para ficar nele, mas para que possa abrir; ajudar a desbravar, colocar em movimento, de forma substancial o processo de ensino-aprendizagem, o cuidado com o aluno de maneira que possa alcançar, pessoal e coletivamente, a aprendizagem efetiva, o desenvolvimento humano pleno e a alegria crítica (docta gaudium).

Afinal, que sentido teria a docência se sistematicamente os alunos não aprendessem? Ao contrário, quando realiza isto, o professor consolida uma base extremamente sólida para sua Potência!

O Querer Ser Professor é uma Construção

Ao nos referirmos à relevância do Querer Ser Professor, cabem duas observações:

O Querer Ser Professor admite gradação e não “nasce pronto”; pelo contrário, será um desafio ao longo de toda a trajetória docente. Vemos situações de professores que nunca desenvolveram um autêntico querer pela docência; outros que desenvolveram e que, ao longo do tempo, por uma série de causas, foram perdendo o entusiasmo; assim como há aqueles que, apesar das dificuldades, conseguem manter um nível de mobilização para com a docência. Desde os tempos dos bancos escolares, ou antes, ao fim do exercício profissional, ou depois, o querer ser professor está em (re)construção!

– O Querer Ser Professor é uma construção que se dá no sujeito, porém numa base histórico-cultural, qual seja, muitas vezes o sujeito não quer ser professor em função daquilo que vivenciou ou tem notícia em termos de condições de trabalho, formação e práticas pedagógicas dos professores em atividade. Ao mesmo tempo, sabemos que esta constituição do Querer Ser Professor não é um reflexo mecânico das condições materiais da existência.

A relação é dialética, isto é, uma dimensão pede a outra, uma nega a outra, e neste processo vão se superando, avançando por aproximações sucessivas, e por superação por incorporação, preservando elementos válidos da dimensão negada (e não simples negação). Sempre há uma Zona de Autonomia Relativa. Basta ver que há pessoas, no atual momento, muitas vezes bastante degradado, que querem ser professores (querem vir a ser ou querem continuar sendo professores)!

O Amor Importa

Ao incluir a Potência da Docência como uma categoria a ser levada em conta no processo de melhoria da qualidade da educação escolar, o que visamos também é apontar para a necessária tomada de consciência de algo que está tão presente na realidade em geral e na educação escolar: os afetos, as emoções, os vínculos, os desejos, as necessidades, a mobilização, a curiosidade, enfim, tudo aquilo que o Amor abarca, e fazem parte, que são elementos indissociáveis da tecitura do real.

O Amor importa! Desta forma, é preciso refletir sobre este elemento central que é o Querer Ser Professor, o Amor à Profissão: querer ensinar, querer que o aluno aprenda, porque acredita, tem um amor pelo saber, pelo conhecimento, pelo conteúdo, vê a importância daquilo que está ensinando, tendo em vista um horizonte melhor tanto para a vida singular de cada um e de todos os estudantes, quanto para a transformação da Sociedade, na perspectiva da Emancipação Humana.

A tão necessária “atratividade da profissão docente” não pode ficar restrita aos aspectos objetivos da prática. Se o professor não encontrar um Sentido maior para sua Atividade, não há condições objetivas (salário, número de alunos em sala, cursos, ou metodologia inovadora, etc.) que possam realizá-lo!

Brevíssima Nota sobre o Amor

O Amor é uma das palavras mais faladas, mas também uma das mais distorcidas, banalizadas. Há zonas nebulosas em todas as partes, desde a questão conceitual (afinal, o que é o Amor?), até questões atitudinais (discurso negado pelas ações concretas), e mesmo éticas (sendo usado como estratégia de manipulação) e política (como forma de “adocicar” a realidade, levando ao apassivamento e comodismo, à alienação).

Não estamos falando do amor romântico, nem religioso, nem da autoajuda, nem de “receituário pedagógico”, nem do amor associado à frouxidão, à falta de limites, ao “passar a mão na cabeça do aluno”, e muito menos à associação com “sacerdócio” do professor (lembrando que “amor não paga as contas”…)!

Nossa abordagem do Amor se pretende antropológica, ontológica, filosófica, ética, política, psíquica e pedagógica.

Diferentes pensadores, de diferentes épocas, nos ajudam com suas formulações sobre o Amor: Eros, Philia e Ágape; Affectus; Energética da Ação; Amor Mundi; Aceitação do Outro como Legítimo Outro; Amorosidade, Amor como Revolução, Reconhecimento, Ressonância, Alteridade, Relação Ético-Política, etc. O conceito de Amor que temos assumido como referência maior é: “O Amor é a afinidade do ser com o ser”, justamente por seu caráter genérico, universal, cósmico (já que não é exclusivo do ser humano), admitindo uma gradação de enorme espectro que vai da força física (no caso das partículas subatômicas, por exemplo) ao amor incondicional pelo outro!

Retomando…

O que é mesmo essencial para melhorar a Educação Escolar?

Entendemos que quatro grandes exigências devem ser, em alguma medida, satisfeitas:

1.Garantir as Condições de Trabalho do Professor (e dos Trabalhadores da Educação em geral)

2.Rever a Formação do Professor

3.Rever a Prática Pedagógica

4.Resgatar a Potência da Docência

Lembrando que toda esquematização é uma simplificação da complexa realidade, com fins didáticos de a compreender. Não deve ser absolutizada; deve/pode ser usada e depois deixada de lado, analisando se de fato está ajudando a entender a realidade com vistas a nela intervir para transformar!

Autor: Celso dos S. Vasconcellos

Bibliografia de Referência

VASCONCELLOS, Celso dos S. Currículo: a Atividade Humana como Princípio Educativo, 4ª ed. São Paulo: Libertad, 2017.

__________ Avaliação da Aprendizagem: Práticas de Mudança – por uma práxis transformadora, 12a ed. São Paulo: Libertad, 2017.

__________ Avaliação: Concepção Dialética-Libertadora do Processo de Avaliação Escolar, 20ª ed. São Paulo: Libertad, 2015.

__________ Construção do Conhecimento em Sala de Aula, 18a ed. São Paulo: Libertad, 2017.

__________ Coordenação do Trabalho Pedagógico: do projeto político-pedagógico ao cotidiano da sala de aula, 16a ed. São Paulo: Cortez, 2020

__________ Indisciplina e Disciplina Escolar: fundamentos para o trabalho docente, 4ª reimpressão. São Paulo: Cortez, 2017.

__________ Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como Sujeito de Transformação, 14a ed. São Paulo: Libertad, 2018.

__________ Planejamento: Projeto de Ensino-Aprendizagem e Projeto Político-Pedagógico, 26ª ed. São Paulo: Libertad, 2018.

Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, pesquisador, escritor, conferencista, professor convidado de cursos de graduação e pós-graduação. Foi Professor (Educação Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior, Pós-Graduação), Orientador Educacional, Coordenador Pedagógico e Diretor de Escola. É consultor de secretarias de educação, responsável pelo Libertad - Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica. celsovasconcellos@uol.com.br www.celsovasconcellos.com.br

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