Sociedade do cansaço: reflexões sobre as mídias digitais

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Arrastamo-nos atrás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em conjunto. Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual. (HAN, 2018, p. 10)

Byung-Chul Han nasceu em Seul, Correia do Sul, em 1959. Migrou para a Alemanha em 1985 onde graduou-se em Filosofia, em Literatura Alemã e em Teologia. Posteriormente, doutorou-se em Filosofia e, atualmente, atua como professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlin. É autor de várias obras, mas, para a presente reflexão serão utilizadas três: Sociedade do Cansaço (2017a); Sociedade da transparência (2017b); No enxame: perspectivas do digital (2018). A epigrafe do livro No enxame pauta o problema de fundo que é objeto das reflexões de Han nessas três obras: os impactos das tecnologias nas subjetividades e nas interações sociais.

Na obra No enxame (2018) ele diagnostica um dos problemas gerados pelas mídias (tecnologias) de comunicação digitais que é o excesso de informação. Consequentemente, desaparece o respeito que pressupõe um olhar distanciado. Han contrapõe o respeito, derivado de spectare, que implica em distância epistêmica, ao espetáculo derivado de respectare que é um ver sem distância. “A comunicação digital desconstrói a distância de modo generalizado” (2018, p. 12). Daí decorrem problemas como a mistura entre o espaço público e o privado e a ruptura com hierarquias entre remetente e destinatário: “todos são simultaneamente remetentes e destinatários, consumidores e produtores” (2018, p. 16). Ele vai discutir essas ideias mais detalhadamente na obra Sociedade da transparência (2017a). Uma das consequências da transparência excessiva é a eliminação da ambivalência. “O tempo transparente é um tempo sem destino e sem evento” (2017a, p. 10). Tudo isso gera uma sociedade cansada (2017b).

Han observa que vivemos numa sociedade com um excesso de positividade. Qual o fundamento dessa crítica?

Ele parte do princípio e do papel da negatividade na dialética hegeliana de que nos movemos pela negatividade, ou seja, é a negação que nos faz avançar. A negação, numa perspectiva dialética, é fundamental porque é ela que nos move a sair do lugar, da mesmice. Em palavras mais simples, a positividade acomoda porque traz respostas e não indaga e nem estranha, condições que nos fazem sair do lugar e pensar em utopias, ou seja, em outras possibilidades.

Como observa Han, “transparência e verdade não são idênticas. A verdade é uma negatividade na medida em que se põe e impõe, declarando tudo o mais com falso”. Nessa perspectiva, não é o acúmulo de informação em si que produz verdade. “A hiperinformação e a hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade, sim, a falta de ser. Mais informação e mais comunicação não afastam a fundamental falta de precisão do todo, pelo contrário, intensifica-a ainda mais” (2017a, p. 24-25. Grifos do autor).

O excesso de exposição e de positividade paralisa a capacidade humana de criar. Tudo isso tem implicações profundas na vida das pessoas e nas novas formas de sociabilidade.

Em Sociedade do Cansaço Han diagnostica um problema crucial no século XXI: “visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal” (2017b, p. 7). Isso quer dizer que estamos diante de situações novas, distintas daquelas dos séculos precedentes quando as doenças provocadas por bactérias ou vírus que, por serem negativas, exigiam reações dos corpos humanos quando atacados.[1] No contexto atual, ao contrário, “não são infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade” (2017b, p. 8. Grifos do autor). O autor não está negando a ação de vírus ou bactérias, mas focando no que há de novo: doenças de outras naturezas que são mais complexas na medida em que não provocam o sujeito a reagir. Ao contrário, ele aponta para duas consequências que são características do século XXI: ansiedade e depressão.

As reflexões de Han ajudam a compreender o paradoxo que vivemos: de um lado, a fartura de possibilidades de acesso às informações, muito além de qualquer capacidade humana individualmente, e, de outro, a angústia crescente pelas dificuldades de assumirmos a condição de sujeitos criativos frente a tudo o que é disponibilizado. Não apenas há um excesso de possibilidades, mas elas apassivam as pessoas devido ao excesso de positividade, ou seja, da ausência de reflexividade.

Em síntese, para o autor as mídias atuais produzem muito barulho, mas poucas mobilizações que de fato tenham consistência. Daí sua avaliação de que o enxame digital consiste em indivíduos atomizados. “Uma alma de massa ou um espírito de massa falta inteiramente ao enxame digital. Os indivíduos que se juntam em um enxame não desenvolvem nenhum Nós” (2018, p. 27).

Frente a esse diagnóstico quais as perspectivas possíveis? É fundamental, diz Han (2017b, p. 74), transformar o cansaço do esgotamento em um cansaço translúcido que “permite acesso a uma atenção totalmente distinta, acesso àquelas formas longas e lentas que escapam à hiper atenção curta e rápida” (2017b, p. 74).

A superação do cansaço depende de experiências formativas, de reflexões, autorreflexões e reelaborações. Daí a necessidade dos processos educativos e comunicativos dialógicos pautarem novos pressupostos que afrontem a economia da eficiência e da aceleração, geradores do cansaço do esgotamento. Daí o desafio de trazer de volta “ao mundo a admiração” (2017b, p. 74).

Han (2017b) opõe o cansaço-eu ao cansaço-nós. O cansaço-eu é fruto do esgotamento de excesso e saturação da sociedade ativa e do desempenho. É um cansaço que atua individualizando e isolando. Provoca a incapacidade de ver (contemplação sensível e reflexiva) e mudez (capacidade de expressar, contrapor e comunicar). Interrompe o diálogo porque é incapaz tanto de ouvir/ver, como de se expressar. A hiperatividade dos fluxos, da recepção e do consumo de informação e suas restrições de participação limitam a ação livre. A violência do cansaço-eu reside, segundo Han (2017b, p. 71), na capacidade de destruir a ideia de comunidade, o elemento comum, a proximidade e a própria linguagem e o político como espaço público.

Referências

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017a.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2017b.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectiva do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.

Autor: Telmo Marcon, Doutor em História Social pela PUC de São Paulo, pós-doutorado em Educação intercultural pela Universidade de Santa Catarina. Professor na graduação e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) do Instituto de Humanidades, ciências, Educação e Criatividade (IHCEC).


[1] Essa obra de Han foi publicada na Alemanha em 2010, antes da pandemia quando o vírus voltou a atacar e foi necessário que os corpos humanos, com ajuda das vacinas, reagissem ao vírus. Hoje, 2023, o vírus da Covid-19 está relativamente sob controle, mas isso deve-se, em parte, a reação dos corpos à negatividade do vírus. O mesmo não ocorre com os problemas neurológicos.

Edição: A. R.

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