Timbres de clareza e leveza literária

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Gilberto Cunha é uma daquelas pessoas que a gente quer sempre por perto, justamente porque concilia habilidades e detém um universo de conhecimentos gerais e específicos que envolvem filosofia, literatura, cultura e ciência. Cunha possui uma fala articulada, consistente e fundamentada pela experiência, pelas leituras e por muitos estudos que perpassam a trajetória de sua vida.

Possui graduação, mestrado e doutorado em Agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária-EMBRAPA, desde 1989. Foi Chefe-Geral da Embrapa Trigo, de 2006 a 2010. Atua na área de Agrometeorologia, com ênfase em bioclimatologia de cereais de inverno, zoneamento agrícola, gerenciamento de riscos climáticos e uso de previsões de tempo/clima em agricultura. É autor da série de livros Meteorologia: Fatos & Mitos (1997, 2000 e 2003), Cientistas no Divã (2007), Galileu é meu pesadelo (2009), A ciência como ela é… (2011) e Ah! Essa estranha instituição chamada ciência (2021), além de ter sido editor e autor de diversos livros sobre história e tecnologia de produção de trigo no Brasil.

É membro da Academia Passo-Fundense de Letras, tendo presidido a agremiação nas gestões 2014-2016 e 2020-2022. Em 2009, foi patrono da 23ª Feira do Livro de Passo Fundo. É colunista de O NACIONAL desde 1995, editor da revista cultural Água da Fonte e Editor-Chefe de AGROMETEOROS, o periódico científico da Sociedade Brasileira de Agrometeorologia.

O jornalista de nossa cidade, Passo Fundo, RS, Celestino Meneghini assim o descreve:

“Sem apego aos pragmatismos elabora pensamento crítico de elevada consistência nas verdadeiras conquistas inabaláveis da ciência. Pela sua larga experiência de vida dedicada à pesquisa na Embrapa, acumula saber notável. Saliente é o talento na dimensão universal do conhecimento humano, orientando a ciência pela filosofia específica”.

E acrescenta: “Cunha alcança raro timbre de clareza e até leveza literária, ensejando fruir agradável à leitura. Tem o raro dom de compor as frases de modo criativo e com arte. A decidida atitude em relação às versões que contrariam o bom senso, ou a tentativa malsinada dos que desrespeitam a ciência como instituição, fica bem explícita. Esta justa ira contra os predadores do saber honesto vem fortemente nutrida pela argumentação do autor”.

Conheçamos um pouco mais de Gilberto Cunha, por ele mesmo.

Como, quando e por que a sua fascinação pelo universo da ciência?

Cunha – Talvez porque a atividade científica seja a minha profissão. Lá se vão 45 anos desde que comecei como auxiliar de pesquisa, em setembro de 1978, no extinto Instituto de Pesquisas Agronômicas (IPAGRO), em Porto Alegre. Passei, nesse período, por todos os postos dentro de uma instituição de ciência e tecnologia, de auxiliar, pesquisador, até dirigente, quando ocupei o posto de Chefe-Geral do Centro Nacional de Pesquisa de Trigo, a Embrapa Trigo, em Passo Fundo.

Eu tento exercer com certa competência aquilo que faço. E, até porque, nessa fase da vida, chegado aos 65 anos, não há mais volta. Mas, sim, independente de ser uma profissão, na qual me considero alguém bem-sucedido, eu gosto do mundo da pesquisa científica, pelos desafios que são postos e, acima de tudo, pela oportunidade de poder contribuir com coisas que podem ser relevantes para a sociedade.

Como vês ciência?

Cunha – É possível que, por vivenciar ao dia a dia e conhecer o ambiente científico pelo lado de dentro das organizações, a minha visão seja, radicalmente, diferente da idealização romantizada da ciência e dos cientistas que muitas pessoas têm. É um ambiente competitivo, normatizado, que tem, veladamente, o seu Ethos particular, cujas regras nem todos conseguem seguir sem sofrimento. Um ambiente onde a competição tem levado muita gente a abalos emocionais ao não se encaixar nos colégios invisíveis que controlam o mundo da ciência.

Mas, para o bem ou para o mal, eu vejo a ciência como a base da criação de conhecimentos e de inovações tecnológicas, que podem se materializar numa vacina ou numa mortal arma de guerra, como uma bomba atômica, a critério da sociedade que a patrocina e demanda. Os cientistas, na sua maioria, costumam acompanhar as sociedades que os financiam. E, geralmente, sabem menos do que supõem os leigos. De maneira nenhuma formam uma casta de “superdotados” que sabem de tudo e que todas suas opiniões mereçam ser levadas a sério.

Como se dá o processo de formação científica? Quais são os grandes marcos da ciência?

Cunha – A formação científica atual segue o formalismo acadêmico universitário. A especialização e a complexidade da atividade, cada vez mais, tem exigido que, após a graduação, os interessados em seguir uma carreira científica, cumpram programas de pós-graduação, envolvendo a busca de titulações de mestrado e doutorado. Mas, a massificação de cursos de pós-graduação no Brasil e no mundo, não assegura que apenas títulos sejam suficientes, como outrora fora, para garantir uma posição numa instituição cientifica, seja na esfera publica ou privada. Eu diria que a formação cientifica começa ainda na graduação, com o envolvimento em programas de iniciação científica das universidades. A maioria que segue essa carreira tem esse início. O grande desafio e saber transpor os limites das disciplinas, pois os grandes saltos, cada vez mais, se darão em zonas de fronteira das disciplinas. E, no caso, faz-se necessária a mudança de percepção da utilidade de um mestre ou de um doutor na iniciativa privada, pois o principal empregador desses profissionais ainda continua sendo o Estado no Brasil. As nossas academias precisam se preocupar, além de avançar o conhecimento, também materializar esse conhecimento em tecnologias que mereçam e justifiquem um instrumento de propriedade intelectual.

Os marcos da ciência, que realmente mudaram paradigmas e fizeram a diferença, são muitos e dependem de cada área do conhecimento. Nas ciências agrárias, onde eu tenho maior familiaridade, sem retroceder muito na história, eu destacaria, como principais, a redescoberta das Leis de Mendel, no começo do século XX, que deu forma ao chamando, hoje, melhoramento genético convencional das plantas cultivadas e que, termos de padrão de plantas cultivadas, nos trouxe até aqui. A descoberta da estrutura do DNA, 1953, o código genético, anos 1960, a técnica do DNA recombinante, na sequência, a clonagem de DNA pela técnica de PCR, a edição gênica e todos os desdobramentos da biologia molecular, que já deram e ainda darão muitos frutos na agricultura mundial. Esses são apenas alguns exemplos, muitos outros me vem, de imediato, à mente: Leis de Liebig, Haber-Bosch, fixação biológica de Nitrogênio, na área de nutrição de plantas, Sistema Plantio Direto, em agricultura conservacionista, etc., e, em tempos mais recentes, agricultura de precisão e toda a tecnologia digital que dão forma à chamada Agricultura 4.0.

Fale-nos sobre a essência das crônicas do livro “Ah! Essa Estranha Instituição Chamada Ciência”.

Cunha – Esse é mais um livro que, insisto nisso, foi ditado pelas minhas dúvidas, que não são poucas, sobre o que é ciência? que caracteriza a atividade científica? e para que serve a ciência? A busca do entendimento do que “é ciência” e do que “não é ciência” dá sustentação especial à primeira parte do livro. Depois, na sequência, encontram-se textos dedicados a Jorge Luis Borges, um dos escritores canônicos mais lidos e citados pela comunidade científica mundial. E, fechando a obra, ensaios diversificados que, sem outras pretensões, buscam unir literatura e ciência no trato de questões afetas à humanidade, como bem exemplificam os textos dedicados à pandemia da Covid-19, que assolou o mundo a parir de dezembro de 2019.

Já declarei, publicamente, que à primeira vista, por temática e estilo, este livro pode parecer uma espécie de dèjá vu de livros anteriores que publiquei: Cientistas no divã (2007); Galileu é meu pesadelo (2009); e A ciência como ela é…(2011). Eu diria que, em tese, sim, mas que são obras complementares e independentes. E, mais uma vez, volto a reiterar que não me alvoroço em reivindicação de originalidade. Em quase todos os ensaios/crônicas, com base no meu “direito de leitor”, usei ideias alheias, sempre que possível dando o devido crédito, e espalhei, acredito, pitadas de criatividade que, de tão dispersas e raras, talvez nem eu mesmo consiga identificar, embora, no primeiro momento, tivesse julgado serem as minhas melhores palavras e os meus melhores pensamentos.

E, reprisando o que escrevi no prólogo dessa obra, sigo atormentado por imaginar que, depois de lidas as 520 páginas desse livro, alguém ainda não consiga diferenciar o que “é ciência” do que “não é ciência”, ou que, a se ver desprovido de suas certezas, sinta-se mais confuso do que antes. Oxalá isso não aconteça!

Gilberto Cunha entre os finalistas do Prêmio Literário 2023

Como vês literatura?

Cunha – Não é tão simples quanto aparenta definir literatura. Nem perceber o valor da literatura. Ou a sua importância. Isso talvez explique a razão que distancia o discurso e a prática quando entra em jogo investir em literatura ou, mais simples ainda, a dificuldade, para muitos, sem qualquer limitação financeira, de se disporem ao mero ato de comprar um livro (e ler). Eu vejo a literatura como uma criação humana de valor imensurável. Uma obra, na minha visão, para ser considerada literária tem de interagir com a sensibilidade do leitor. Quando isso acontece, realidades, mesmo que seja no imaginário, podem ser transpostas e, por que não, futuros condicionados.

Lamentavelmente, ainda que o acesso tenha sido facilitado pelo ambiente digital, não se percebe a valorização que a literatura mereceria da sociedade, especialmente como fonte de produção de cultura e de geração e desenvolvimento social e econômico. Inclusive, para nossa tristeza, vale destacar, que vivemos tempos de muitos questionamentos equivocados em relação aos investimentos públicos na área cultural.

Qual é a tua trajetória de escritor e como se deu, até agora, a tua participação na Academia Passo-Fundense de Letras?

Cunha – Eu não sou escritor de ficção. E, sendo assim, tenho dificuldade em me perceber como escritor. Escrevo, até por obrigação profissional, mais textos técnicos e científicos. Dentro da chamada linha de popularização da ciência, desde 1995, tenho escrito sobre assuntos variados, em linguagem que intento seja acessível ao público geral, no formato de crônicas ou pequenos ensaios, para jornais e revistas de divulgação. Esses textos, de tempos em tempos, são reunidos em volumes, com alguma identidade, dando forma a livros. Os três primeiros, da série Meteorologia: Fatos & Mitos, para minha felicidade, foram e ainda são muito usados em disciplinas de climatologia de cursos de Agronomia e Geografia, em muitas universidades brasileiras. Essas obras, escritas semanalmente, nas páginas de O NACIONAL, me levaram, em 2001, à Academia Passo-Fundense de Letras, agremiação da qual fui alçado à presidência em duas gestões, e a ocupar o honorável posto de Patrono da 23ª Feira do Livro de Passo Fundo, em 2009. Sou muito grato à Academia Passo-Fundense de Letras, pela acolhida, e por tudo que tenho aprendido no convívio com os membros desse Sodalício.

Qual é a importância de editar a revista Cultural “Água da Fonte” desde sua primeira edição?

Cunha – ÁGUA DA FONTE, o periódico cultural da Academia Passo-Fundense de Letras, iniciou com a sua edição princeps, o número ZERO, em dezembro de 2003. Surgiu para suprimir a lacuna deixada por anuários e jornais que a agremiação publicara no passado, mas que, lamentavelmente, tiveram vida curta (nenhum durou mais de quatro edições). Uma nova proposta editorial, norteada pela pluralidade, primando pelo respeito à diversidade, aberta à comunidade e, acima de tudo, voltada à valorização dos escritores e dos artistas plásticos locais, que foram especialmente convidados para a assinatura das capas das revistas.

Os originais dessas capas compõem o acervo da Galeria das Capas, no auditório da agremiação. Além de, cada número, trazer entrevista central com uma personalidade de reconhecida relevância para Passo Fundo. Vinte anos depois, 22 números publicados (alguns em conjunto), ÁGUA DA FONTE não decepcionou os acadêmicos que, em 2003, foram unânimes no apoio à sua criação. Nas suas páginas, assim eu percebo, está registrada a história das letras locais no século XXI. É uma honra, em parceria com o acadêmico Paulo Monteiro, ter sido editor dessa revista. Acredito que essa revista, se não tivesse alguma relevância, não teria durado tantos anos. Vida longa para ÁGUA DA FONTE!

Como concilias e articulas ciência com literatura, através de tuas crônicas semanais, publicadas no jornal O NACIONAL?

Cunha – Na verdade, a intenção, ainda que nem sempre seja alcançada, é sempre, via essa união, tornar mais atrativo o tema ao leitor, sem perder a essência do conteúdo, dentro de uma proposta de popularização da ciência. E, embora eu tenha ciência que o establishment acadêmico tem preconceitos contra os chamados “popularizadores” da ciência, gente que escreve (ou procura escrever) de uma maneira inteligível para não iniciados, tenho feito isso, semanalmente, desde 1995. Isso fica claro na forma desdenhosa com que frequentemente são feitas referências a esse tipo de atuação acadêmica ou na valoração que é dada aos trabalhos dessa natureza no conjunto dos indicadores de produção científica: NENHUMA!

Como enxergas e vislumbras o futuro da humanidade?

Cunha – Eu gostaria de enxergar, embora os tempos atuais estejam embaçando o horizonte, um futuro promissor. Sei que, chegado aos 65 anos, já tenho mais passado do que futuro, mas ainda acredito que haverá de chegar o dia que nos daremos conta dos absurdos que muitas vezes defendemos e dos atos insanos que praticamos, seja contra o ambiente, contra outros seres vivos e, especialmente, contra outros seres humanos. Apesar de tudo, acredito na humanidade, mesmo ciente que utopias sejam lugares que não existam. Um pouco mais de respeito às diferenças, idealmente que nos tornemos indiferentes às diferenças, seria um avanço muito grande.

Uma mensagem final.

Cunha – Que deixemos cair o véu que nos impede de ver a necessidade de não darmos voz ao obscurantismo que grassa pelas redes sociais; que não se flerta com autoritarismo, pois a democracia deve prevalecer acima de qualquer outro regime que se apresente, uma vez que o verdadeiro democrata jamais lamenta resultado de eleição; que equidade social deve ser defendida sempre; e que empatia precisa ser melhor cultivada na sociedade.

Gilberto Cunha é convidado do site. Conheça algumas de suas crônicas: https://www.neipies.com/author/gilberto-cunha/

Edição: A. R.

2 COMENTÁRIOS

  1. Bom dia.
    Parabéns pela entrevista.
    Trata-se de um escritor intenso, que aborda assuntos da realidade e do que muito necessitamos ler e compartilhar.
    Pesquisa, realidade e vida.

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