Na cidade onde você mora mais da metade da população é formada por mulheres. Engraçado, todas as representações da Câmara de Vereadores são homens.
A única mulher que aparece é a que serve o cafezinho.
E aí, você ia querer ser mulher numa sociedade como esta?

 

Você saiu de casa para ir trabalhar. Está no ponto de ônibus.
Alguém passa de carro, diminui a velocidade e baixa o vidro.
O carro passa. Você mexe no celular.
O carro passa novamente, em velocidade ainda mais baixa.
A pessoa que dirige olha fixamente para você. Você não a conhece.
O carro passa.
Volta a mexer no celular, quando é surpreendido pelo mesmo veículo.
A pessoa que dirige começa a sorrir e falar que tipo de situações sexuais gostaria de viver com você.
O ônibus chega antes da próxima situação acontecer.
Você agradece ao deus que acredita (por ter paciência e pela história ter acabado aí) e entra no ônibus.
Trabalha dois turnos. Está cansado. Quer ir para casa.
Lembra que precisa ir ao mercado.
Você está de vestido, escolhendo tudo que precisa levar para casa.
Uma pessoa se abaixa para pegar um produto e espia embaixo do seu vestido.
Não uma, nem duas, mas várias vezes.
Você está cansada, prestando atenção nas suas compras, sequer percebe a atitude do cidadão.
Ele mexe nas calças, parece estar incontrolável.
Você termina suas compras, vai para casa.
Dorme. Mais um dia de trabalho.

No Rio Grande do Sul, uma mulher é agredida a cada 20 minutos.

 

Você escuta do chefe que pode ser que eles não contem mais com você no quadro da empresa.
Ele deixa claro que você já não é mais nenhuma mocinha e que carteira suja só não é pior que mulher passada.
Diz que ao menos você não engravida mais então a próxima empresa não precisa se preocupar.
Ri e encerra dizendo pra você não se preocupar, porque ainda dá um caldo.
Você chega no outro emprego. Tem reunião.
Você pede sua vez de falar, todos se inscrevem para fazer sua intervenção, mas na sua vez o seu colega acha que pode fazer adendos e mais adendos e quando você insiste em terminar de falar, ele começa a falar mais alto para abafar o que você diz.
Você é especialista no assunto, estudou muito tempo, mas o seu colega que não entende do assunto acredita que tem uma solução melhor.
Todos concordam com ele. É coisa de homem, dizem.
Você está esgotada. Vai embora.
Chega em casa e todo o serviço doméstico está por fazer.
Você faz tudo enquanto seu companheiro faz suas tarefas pessoais, pois acredita que limpar a casa não é tarefa para quem mora na casa, mas para você.
Termina o serviço e liga a TV na sessão plenária, quer acompanhar a política da sua cidade. Na cidade onde você mora mais da metade da população é formada por mulheres. Engraçado, todas as representações são homens.
A única mulher que aparece é a que serve o cafezinho.
E atrás do cafezinho, e apenas ali, está Ela.
Única guerreira no meio de tantos.
Parece que as coisas mudaram mas nem tanto nos últimos séculos.

 

Em outro artigo, a autora reflete sobre a questão da cultura do estupro no Brasil:
“Os brasileiros fazem questão de perpetuar a cultura de estupro, que nada mais é que o fato de tirar o foco do criminoso e colocar na vítima.
Seissentos segundos. Esse é o intervalo entre um estupro e outro no Brasil. A cada dez minutos uma pessoa é violentada sexualmente no nosso país. Esses dados assustadores foram declarados pelo estudo mais recente do Ministério da Justiça, que aponta que 50 mil mulheres são estupradas por ano no Brasil. Veja mais aqui.

 

O telefone toca, é uma pessoa que você mal conhece
Ela quer saber se seu companheiro está com você antes de falar.
Você diz que não faz diferença.
Para a pessoa que liga, se você não está acompanhado naquele momento, faz diferença sim.
E você está dando abertura para ela falar o quanto tem desejos sobre você.
Mesmo você nunca querendo causar esses desejos e pouco se importando com quem ligou.
Mas claro, se estivesse acompanhada merecia respeito.
Sozinha nunca merece.
Existindo nunca merece.
Bem na verdade, parece que nunca merece.
Em situação nenhuma, em lugar nenhum, com roupa nenhuma.
Isso é ser mulher.
Todo dia, de uma forma tão frequente, acabamos naturalizando todo tipo de barbaridade que a sociedade nos submete.
E aí, você ia querer ser mulher numa sociedade como esta?

A trajetória política da bióloga, botânica, tradutora e educadora responsável pelas conquistas dos direitos civis das mulheres brasileiras contada por quem a conheceu. 

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